Ensaio

Quando Pinóquio aderiu ao fascismo IV

Change Size Text
Quando Pinóquio aderiu ao fascismo IV

LIVRO 4 A viagem de Pinóquio [Il Viaggio di Pinocchio

 Il Viaggio di Pinocchio foi publicada em 1944, ou seja, nos estertores do governo fascista de Benito Mussolini. O pano de fundo é a última tentativa do fascismo de refundação da pátria, a República de Salò, nome assumido em setembro de 1943 pelo governo fascista por ocasião de sua transferência para a cidade homônima, localizada no Norte da Itália. A região era ainda dominada pelos nazistas, ao contrário do resto do país, quase todo em mãos aliadas. A República de Salò foi reconhecida como estado independente apenas pela Alemanha, Hungria e Japão. Em abril de 1945 se configurou sua queda, com a tentativa de fuga e posterior execução de Benito Mussolini. 

A Viagem de Pinóquio foi escrita, portanto, no calor da hora, já que a República de Salò durou apenas dezenove meses e no meio deste tempo o livro foi publicado. No decorrer de suas de aventuras e infortúnios, Pinóquio se depara com soldados que estão abandonando a luta fascista, aos quais tece críticas contundentes, numa clara defesa do regime empreendida pelo autor. É o enredo mais próximo do original, tanto em relação aos acontecimentos quanto por retomar personagens criados por Collodi. Nele não faltam menções ao herói nacional Giuseppe Garibaldi. 


A viagem de Pinóquio 

Texto de Ciapo, ilustrações de Fulvio Bianconi  Veneza, Edizioni Erre, 1944, 56 p. 


I. Pinóquio, tendo escapado do perigo de ser frito na frigideira, pretende retornar à casa da fada, mas seus companheiros o arrastam até a cidade, onde se celebra uma grande festa. 

Enquanto caminhava com rapidez pela estrada principal, Pinóquio remoía em pensamento as peripécias daqueles dias. Foram dias de aventuras depois que a raposa e o gato lhe haviam enganado belamente, levando embora aquelas cinco moedas de ouro que o bonequeiro Mangiafuoco havia lhe dado para que desse a seu pai! 

Pobre Geppetto! Teria que esperar um mais um pouco! 

E agradecia a Deus por ter conseguido escapar primeiro dos policiais que queriam prendê-lo, em seguida das garras daquele pescador que, ao encontrá-lo na sua rede em meio a pescadas, tainhas, linguados e peixes-aranha, queria a todo custo jogá-lo na frigideira, depois de bem enfarinhado. 

– Estou frito! – havia dito Pinóquio, não sem razão, vendo seus minutos contados… 

Mas Alidoro, o enorme cão, em reconhecimento por ter sido salvo do afogamento, tinha arrancado Pinóquio das mãos do pescador e lhe posto a salvo. 

A salvo, sim, mas nu e despido assim como Geppetto o fizera, porque suas roupas os peixes haviam comido. 

Foi preciso se contentar com um pequeno saco destinado a guardar tremoços cedido generosamente por um bom homem encontrado por acaso. 

Pinóquio tomou o saco dos tremoços, vazio naturalmente, fez nele um pequeno buraco no fundo e outros dois nas laterais e o enfiou como uma blusa. 

Com aquela roupa, daquele modo improvisada, e após agradecer ao magnânimo doador, Pinóquio tomou a direção do povoado, onde sabia poder encontrar a casa da boa Fada. 

No entanto, não se sentia exatamente tranquilo. Ela perdoaria aquela nova traquinada? Acreditaria em suas boas intenções 

 A Fadinha teria razão em duvidar dele. Por mais que tivesse bom coração, Pinóquio se deixava facilmente levar pelas más companhias; prometia uma coisa e fazia outra; foi assim quando vendeu o abecedário novo para comprar o ingresso para o teatro de marionetes, quando seguiu a raposa e o gato até o Campo dos Milagres, quando se deixou arrastar até a beira do mar para ver a baleia monstruosa… que não estava lá. 

 Mas tudo isso precisava acabar. Pinóquio estava agora decidido a se emendar, a pedir perdão, a reencontrar a Fada dos cabelos azuis e o papai Geppetto, a acabar de vez, em suma, com as escapadas. 

  Mas o homem (mesmo de se madeira) propõe e Deus dispõe. 

 Não tinha completado meio quilômetro e viu vindo a seu encontro um grupo grande de meninos cantando e gritando. 

  Quando se aproximaram, os reconheceu. 

– Pinóquio! Pinóquio! 

Eles o cercaram, abraçaram, por pouco não o levantaram nos braços. 

– Como assim – perguntou Lucignolo, que fazia parte do grupo, após examiná-lo de cima a baixo – por que você está vestido assim como um indigente? 

Pinóquio deu início a uma daquelas suas estórias atrapalhadas, da qual os meninos somente abstraíram que, tendo perdido suas roupas, o boneco precisou se contentar com um saco de tremoços para se cobrir um pouco. 

– E agora – perguntou Lucignolo – para onde você vai? 

– Vou procurar a Fada para que me perdoe, me ajude a reencontrar meu pai e a me transformar em um menino bem comportado. 

As palavras de Pinóquio jogaram um balde de água fria no entusiasmo do grupo de meninos. 

– Que bobagem essas ideias! – exclamou Lucignolo, resumindo a impressão geral – Para fazer isso que você diz, sempre há tempo. Por que você não vem primeiro conosco? 

– E vocês, aonde vão? 

– Para a cidade. 

– E o que há na cidade? 

– Como você não sabe? – gritaram – Na cidade há uma grande folia. Se celebra uma grande festa…  

– E de que se trata? É dia do quê? Nunca ouvi dizer que em julho houvesse alguma festa grande e afamada! 

– Ué, você não leu os jornais? 

– A água fria me fez mal aos olhos e não posso ler… 

– Então te contamos nós. – interrompendo Lucignolo com ar solene – Se trata da festa da liberdade! 


II. Pinóquio e seus amigos celebram a festa da liberdade, mas têm a primeira surpresa ruim. 

Liberdade? Aí está uma santa que jamais havia ouvido falar. 

  Mas Lucignolo, quando Pinóquio lhe disse isso, deu de ombros. 

– Mas é como te digo. – lhe respondeu – Não tem no calendário. É um acontecimento que ocorre de vez em quando e quando ocorre devemos aproveitá-lo. 

 Pinóquio se deixou convencer. Podia perder uma ocasião como esta? Na fada pensaria depois: até porque não poderia se apresentar a ela daquele jeito, vestido somente com aquele saco miserável. 

– Você verá – lhe havia dito Lucignolo – encontraremos até um modo de refazer a sua roupa. 

De fato… O primeiro povoado pelo qual passaram, após caminharem poucos quilômetros, estava agitado; havia bandeiras nas janelas, mas pelas ruas os habitantes se engalfinhavam duramente. Aproveitando a confusão, aquela turba de meninos, sempre às risadas, tomou de assalto uma papelaria. Dividiram entre eles as canetas, os lápis, os pincéis coloridos, as figuras adesivas; os abecedários, os livros de leitura e os dicionários jogaram na sarjeta, porque não havia mais porque revê-los, e algumas folhas de papel floridas deram a Pinóquio para que refizesse sua roupa. 

 A velhinha, que era dona da papelaria, restou em sua pequena loja devastada e, enrugando a testa, disse a Pinóquio, que ficara para trás ajustando o casaco improvisado:  – Bela proeza! Eu fico sem pão, mas vocês cairão em desgraça! 

– Que ave de mau agouro. – balbuciou Pinóquio perturbado. Ué, a senhora não sabe, vovó, que hoje se festeja a festa da liberdade? 

Mas como não estava bem seguro de suas ações e aquela pobre senhora lhe dava pena, escapuliu depressa. E enquanto corria para alcançar os companheiros já afastados, refletia: 

Pobre coitada, sinto muito, palavra de honra… Mas o que fazer? Deveria me contentar com um saco de tremoços enquanto posso fazer uma bela roupa florida para vestir? A liberdade, se bem entendi, consiste exatamente nisso: em fazer tudo aquilo que se quer e nos agrada… Como me agradaria agora, por exemplo, comer um pãozinho lambuzado de manteiga por dentro e por fora! Mas é melhor nem pensar nisso… 

 E correndo alcançou os companheiros. 

 Eles também não estavam conseguindo resolver a questão da comida; os camponeses pelos quais passavam, assustados com aquela turba de pequenos salteadores, se trancavam em suas casas: caminhando, caminhando chegaram a uma taberna que se assemelhava com a afamada “Camarão vermelho”, mas que de vermelho não tinha nada além de um trapo preso na janela fazendo as vezes de uma bandeira. 

 O taberneiro, gorducho e rechonchudo, ouvindo a barulheira que faziam os garotos, veio até a porta. 

– O que querem, rapazotes? – perguntou. 

– Algo para comer! – responderam em um só brado. 

– E vocês têm dinheiro? 

– Eu – disse Pinóquio – tinha cinco moedas de ouro, mas com uma paguei o albergue e as outras me roubaram a Raposa e o Gato. 

  O taberneiro se pôs a rir. 

– E os outros? – perguntou. 

 Se fez um silêncio sepulcral, mas após um momento se ouviu a voz de Lucignolo que dizia: 

– Ouvimos dizer que hoje, para festejar a liberdade, dariam comida a todos, com a graça de Deus. 

– Ouviram mal… mas esperem. 

Voltou-se para falar com dois homens vestidos com aventais, depois um deles chegou à porta e perguntou em tom alto aos meninos: 

– Querem comer? 

– Sim – gritaram em coro. 

– Bem… Podemos dar um jeito… Venham aqui dentro! 

 Aqueles imprudentes não esperaram ouvir duas vezes; se meteram taberna adentro, se sentaram nas mesas debaixo de uma pérgola e o taberneiro lhes serviu sopa, pão à vontade e costeletas com batatas de lamber os beiços. 

– Oh beleza! – dizia para si mesmo Pinóquio – Encontramos a terra da Cocanha. 

 Assim que os alimentou, o homenzarrão veio lhes dizer aquilo que deviam fazer; subir em um caminhão que os conduziria até a cidade, agitando bandeiras que lhes dariam e gritando “Viva a liberdade” “Viva…”. 

 Viva qualquer outra coisa que Pinóquio não compreendeu bem; uma palavra que soava como “Ação” ou “Tapeação”… Sim, parecia mesmo “Tapeação”. 

 Mas isso contava pouco. O essencial era gritar “Viva” qualquer coisa e fazer muito rumor. E nisso Pinóquio era um especialista e os outros não eram menos que ele. 

Em poucos minutos o caminhão com sua carga embarcada se pôs em movimento através de uma via ensolarada e os meninos começaram a gritar e a fazer uma barulhada do inferno. Mas atravessando a ponte, Pinóquio vislumbrou, no barranco lateral, o corpo de um garoto estendido ao sol; ele vestia a camisa preta, estava pálido e sem brilho no rosto e seus olhos opacos olhavam para o céu. 


III. Pinóquio vivencia de novo a prisão e escuta palavras estranhas do Grilo Falante 

 A cidade parecia um mar em meio a tempestade: as ruas estavam cheias de gente que parecia não ter nada para fazer e de veículos e caminhões carregados de garotos uniformizados que gritavam forte e agitavam bandeiras e cartazes. 

 Por algum tempo o grupo do qual Pinóquio fazia parte se divertiu com a brincadeira, como se fosse um desfile de máscaras de carnaval, mas depois começou a ficar demais; abafamento, calor e suor, não viam a hora de esticar as pernas e se refrescar em uma das tantas magníficas fontes que viam pelas ruas. 

– E se descêssemos? – perguntou Lucignolo quando o caminhão freou, por causa de uma colisão entre veículos, exatamente defronte a uma daquelas fontes que atraíam os sedentos. 

– Não poderia haver melhor ideia! – respondeu Pinóquio, e sem esperar resposta saltou do caminhão e alcançou o chão. Girou o corpo para aguardar Lucignolo que se preparava para fazer o mesmo, mas naquele exato instante o caminhão retomou a marcha, enquanto Lucignolo agitava desesperadamente os braços, e em um momento desaparecia da vista do boneco.  

 Pinóquio restou sozinho; não tentou ao menos seguir atrás do caminhão, sabendo que seria esforço inútil, e estando ali a primeira coisa que fez foi andar até a fonte para matar a sede. Depois retornou até a rua apinhada, se misturou à gente e se deixou levar. 

 O que significava aquela algazarra? Todos aqueles gritos começavam a aturdi-lo e a despertar novamente aquele espírito de contradição e de rebeldia que fora a causa primeira de suas peripécias, porque o levara a fazer tudo ao contrário daquilo que lhe haviam sugerido o Grilo Falante, Gepeto e a Fada dos cabelos azuis. 

 Assim, de uma esquina, enquanto passava uma carroça carregada de manifestantes, todos gritando “viva!”, Pinóquio gritou forte, várias vezes:  

– Abaixo! 

Não tivesse feito! Em torno dele se fez silêncio e dois brutamontes saltaram sobre ele. 

– Você que gritou “abaixo”? 

– Sim, fui eu… 

– Então prende esse aí – disse um deles armando um murro. 

Mas Pinóquio era atilado; evitou o golpe e esticando uma de suas duríssimas pernas jogou o brutamontes por terra. 

Virou um tumulto; Pinóquio, seguro e amarrado feito um salame, foi conduzido à prisão e arremessado em uma cela úmida onde se deparou com outros companheiros de desventuras, gente cuja culpa consistia unicamente em ter expressado sentimento diverso daqueles dos manifestantes rumorosos. 

Pinóquio não se conformava. 

– Eis – dizia – o que ocorre quando você dá ouvidos aos maus companheiros! E eu que só queria ver a festa da liberdade! 

Um jovenzinho estendido sobre uma pilha de palha levantou a cabeça ao ouvir aquele choramingo de Pinóquio e lhe disse: 

– Queria ver a festa da liberdade? Você a viu. 

– Se a liberdade é assim, não sei o que fazer com ela isso quando. 

– Pois é… todos dizem isso quando experimentam esta liberdade tão especial que consiste em matar aqueles que não pensam como os que estão no comando naquele momento… Agridem tanta gente, depredam as casas, os monumentos, riscam os emblemas, como se, com isso, pudessem apagar a história. 

O jovem não perdia o fôlego e falava sem parar, mas Pinóquio não sentia vontade de continuar a ouvi-lo; estava cansado e tinha fome. Agora entendia porque aqueles homenzarrões da taberna tinham dado comida a ele e a seus companheiros, sem lhes cobrar nada; não se tratavam de almas caridosas, só queriam que eles causassem tumulto nas ruas da cidade. Que depois se virassem, isso não lhes importava nem um pouco… Mas que motivo teriam para agir deste modo? As razões fugiam da compreensão do boneco, que se achava pela primeira vez mergulhado no clima confuso das chamadas paixões políticas. 

Ouviu um deles que dizia: 

– … Disse que a guerra continua… Isso quer dizer que nada mudou, que devemos seguir a nossa estrada e manter os princípios como fazem as pessoas de bem… 

Pinóquio nem ao menos se interessou. Jogou-se por terra, morto de cansaço, fazendo um rumor parecido com o de um saco cheio de talheres de madeira caindo do terceiro andar. Mas enquanto procurava o sono uma voz sua conhecida lhe fez reabrir os olhos. 

– Cri… Cri… Cri… 

Viu o Grilo Falante que subia pela parede. 

– Não se deixe levar pelas aparências, meu menino. – dizia o Grilo com sua voz trinada – Não acredite nos homens que veem a honra como algo inútil, que pensam somente na sua barriga, que estão dispostos a sacrificar um amigo para salvar a própria pele. Faz teu dever a qualquer custo. 

Pinóquio queria responder qualquer coisa ao velho Grilo, que não o abandonava nos piores momentos, mas estava tão cansado que fechou os olhos e, sem se dar conta, adormeceu. 


IV. Pinóquio sai da prisão e reencontra a Raposa e o Gato que o convidam para almoçar 

– Estou mesmo livre? 

– Super livre. 

– Como assim? 

Os guardas se botaram a gargalhar. 

– Você saberá quando sair. – disse – E agora a guerra acabou e não sabemos o que fazer com um comilão como você. 

Pinóquio gostaria de receber maiores explicações, mas aqueles dois fecharam o portão na sua cara, sem ao menos dar adeus. 

O dia estava lindo e Pinóquio custava a acreditar que podia esticar um pouco as pernas e pegar um pouco de sol, após tantos dias de prisão. Quantos? Assim por alto calculava ter sido cerca de dois meses. 

Assim que se afastou daquela rua fora de mão onde se localizava a prisão e alcançou as vias centrais foi atingido pelo ar de festa que tomava conta da cidade. Talvez fosse outra festa da liberdade. Pinóquio, que havia tido uma amarga experiência anterior, cuidou para não se unir aos outros. Mas todos riam, cantava e dançavam. Um soldado jogava para o alto o quepe, gritando:  

– Viva a paz! 

– Agora é uma outra coisa. Deve ser de fato verdade. – disse a si mesmo o boneco – É a guerra que acabou, e nós somos os vencedores! Todos estão tão alegres!… 

Um pequeno grupo de gente estava parado numa esquina. Um deles lia as condições do armistício. Pinóquio parou curioso. Falava de rendição sem imposições, de entrega da frota, de colaboração com o inimigo… 

– Que jogada. – gritou Pinóquio com entusiasmo – Viva a vitória. 

Todos se viraram e o olharam enviesado. 

Mas um deles, um homenzinho minúsculo, com olhar torcido se pôs a rir. 

– Eu disse qualquer coisa errada? – perguntou Pinóquio surpreso. 

– Pode-se ver – respondeu outro – que você é um simples boneco… Podemos ficar contentes, sim; porque a guerra acabou e voltaremos a comer, se Deus quiser; mas falar de vitória, aí é estupidez! 

– Mas então aquelas condições: a rendição, a entrega dos navios… Não se referem ao inimigo? 

– Que ingênuo! Se referem a nós… Ou lhe parece que não as merecemos? 

E de novo se pôs a rir. 

Pinóquio ficou de boca aberta. Negava-se a acreditar naquilo. Dá para ver que tinha mesmo uma cabeça de madeira. Estava livre, encontrara a cidade em festa e a guerra fora perdida? Se os homens resolviam as coisas desta maneira, nem tinha mais vontade de se tornar um homem. 

Deixem-me, deixem-me, dizia o boneco descendo a rua; passava gente de todo tipo, passou um grupo de soldados de uma nação amiga e muitos olhavam-nos com hostilidade e pronunciavam palavras de desprezo. 

– Agora essa!!? Os amigos não então eram mais amigos? 

Confuso e perplexo, o boneco parou em uma praça, sem estar certo do que fazer, desorientado e desambientado, quando viu vindo ao seu encontro dois velhos conhecidos: a Raposa e o Gato. 

Se não tivesse daqueles dois malandros lembranças inesquecíveis, certamente não os reconheceria. 

A raposa não mancava mais, usava óculos, estava muito bem vestida e demonstrava uma grande elegância; quanto ao Gato, estava muito bem trajado, envergava uma grossa corrente de ouro no pescoço, da qual pendia um pingente em forma de triângulo, e tinha na boca um charuto grosso que dava um ar de banqueiro judeu americano, daqueles que se vê no cinema. 

E o Gato não estava de fato cego, aliás via muito bem: prova é que enxergou de longe o boneco e lhe gritou em tom festivo: 

– Olha o Pinóquio! 

Pinóquio recordando a trapaça que os dois lhe aplicaram, queria dar a entender que não os conhecia, mas os dois lhe barraram a passagem. 

– É assim – disse a Raposa – que você trata os velhos amigos? 

– Mas… 

– Não tem mas nem nada. – afirmou o Gato – O passado é passado e nos se pensa mais nele. Hoje é festa e queremos celebrar o nosso encontro com um belo almoço. 

Ao ouvir a palavra almoço Pinóquio, que não comia nada há muitas horas, alçou as orelhas… que Gepeto esquecera de fazer. 

– Naturalmente – acrescentou a Raposa – pagamos nós. Aquela vez, no Camarão vermelho, o rico era você e nós deixamos que pagasse; hoje os ricos somos nós e pagamos nós. Uma vez para cada.  


V. Pinóquio compreende pela primeira vez aquilo que fazem as “pessoas inteligentes” 

– Eu não tenho remorsos – disse a Raposa emborcando o enésimo cálice de vinho – roubei do Governo o máximo que pude… 

– Roubou? – perguntou Pinóquio surpreso. 

– Digo isso por dizer. Não é justo ganhar 300 por cento sobre os suprimentos? E não é legítimo empregar papelão ao invés de couro nos calçados destinados aos soldados? Todas as pessoas inteligentes fariam as coisas desse modo. 

– E eu? – perguntou o Gato, que havia espremido os olhos na direção do graçon para que lhes trouxesse três taças de café “daquele bom” com o respectivo calicezinho de conhaque – E eu? 

– Você também agiu como uma pessoa inteligente? – perguntou o boneco. 

– Sim, mas de outro modo. Eu me dediquei à Bolsa Negra. 

– O que seria a Bolsa Negra? O nome de uma gangue de bandidos?… 

– Vá lá; não seja assim… tão categórico: é simplesmente aquele meio através do qual o que custa dez é revendido por cem, e o que custa cem por dois mil. 

– Que beleza! E existem tolos que se jogam nessa? 

– Existem com certeza. Existem agora; existirão sempre: basta dar um jeito de fazer sumir o produto do mercado. E eu, você sabe bem, para fazer sumir… 

  Sim, sim. – disse Pinóquio imediatamente, com convicção – Eu sei… Eu sei! 

Assim, meu caro, nós não nos permitimos sofrer; temos muita adesão nos Ministérios… 

– Em suma, vocês se tornaram dois ricaços. 

 A Raposa se refestelou na cadeira com regozijo e o Gato emborcou outro calicezinho de conhaque. 

– Oh céus! – disse em seguida a Raposa com ar de modéstia – Não podemos reclamar. 

– Mas a guerra nós perdemos! 

 A Raposa olhou para o boneco por cima dos óculos com muita surpresa e o Gato ficou com o calicezinho no ar como se tivesse ouvido algo absurdo. 

– O que disse? – perguntou a meia voz a Raposa. 

– Eu disse que perdemos a guerra. 

– Mas isso – respondeu a Raposa abaixando o tom e olhando em torno – mas isso estava previsto, estava, diríamos assim, no programa… 

  Desta vez tocou a Pinóquio ficar aturdido. 

– Seria trabalhoso fazer você entender como as coisas funcionam. – respondeu o Gato dando uma picadela de olhos ao compadre – Basta que você saiba que tudo ocorreu da melhor maneira e que a derrota não tem nenhuma importância. Agora somos amigos dos nossos inimigos de ontem e inimigos de nossos amigos. 

– É uma confusão. E… parece uma bela porcaria! – exclamou Pinóquio. 

– Mas é uma porcaria que nos renderá um bom dinheiro, e que dinheiro! – disse a Raposa. 

  E assim dizendo tirou do bolso um punhado de dólares e de libras, de papel. 

 – Com estes, meu caro, conquistamos o mundo, sem mesmo precisar de qualquer combate! 

 Pinóquio estava chocado; não sabia se devia acreditar nos próprios ouvidos. Ouvira coisas que lhe pareciam absurdas e que decerto não seriam aprovadas pelo Grilo Falante. Não sabia como reagir e o que dizer. 

 Por sorte os dois companheiros comeram e beberam em demasia e, após tantos disparates, adormeceram feito anjos com a cabeça sobre a mesa. 

  Pinóquio aproveitou a ocasião para escapulir. 

  “Uma vez para cada” dissera a Raposa! 


VI. Pinóquio deixa a cidade e na estrada é novamente localizado pela Raposa e pelo Gato 

 O boneco retomou a estrada um pouco aturdido. Aquela Raposa e aquele Gato seguiam sendo os mesmos malandros astutos que uma vez o enganaram; enriquecidos por obra das novas artimanhas bancavam os senhores. Mas os ricos serão sempre assim? E existiam tantos patifes assim como eles, prontos a trair e especular à custa da pele do próximo? 

 À primeira vista parecia que sim, julgando pelo que vira na cidade. A promessa era de uma festa, mas parecia que participara de um funeral; de fato, por aquilo que pudera ver e ouvir, não faltavam nem mesmo os… mortos. Contudo, por mais que sentisse muita vontade de bater as pernas estrada a fora, abandonando a cidade, ainda assim se deteve para ver se achava os rastros de seus amigos. Mas eles estavam mesmo desaparecidos e então, em uns dias, decidiu ir embora. 

  Numa bela manhã se pôs a caminho, decidido a alcançar a Fada e o papai Gepeto que o esperavam e para os quais demonstrara sua total indiferença. 

  Saiu da cidade, pegou a estrada que se estendia pelos campos até se perder de vista. 

 Encontrou pastores que conduziam rebanhos de ovelhas, camponeses que retornavam do trabalho e, vez ou outra, algum grupo de jovens mal vestidos e aos farrapos, com um quepe militar na cabeça, indo embora: alguns silenciosos, outros cantando. 

 Um velho quebrador de pedras que parara seu trabalho para olhar os jovens, balançava a cabeça. 

O senhor sabe me dizer quem são eles? – perguntou Pinóquio curioso. 

  São soldados em fuga – respondeu bruscamente o quebrador de pedras. 

– Soldados em fuga? 

– Exato… Também esta vergonha vamos ter que enfrentar. Fogem os oficiais e naturalmente também os pobres soldados. Se meu pai, que esteve junto a Garibaldi, pudesse vê-los, choraria de raiva! 

 Pinóquio retomou a estrada sem dizer uma palavra. O caminho lhe parecia agora mais longo, interminável; aquela turba de desgraçados que fugia, que havia jogado fora seus fuzis, seus uniformes e os símbolos de valor, deixaram-no fora de prumo; as palavras do quebrador de pedras lhe pareciam as primeiras palavras sensatas que ouvia desde que dera início àquela estranha viagem, mas não eram feitas para encorajá-lo! 

 Caminhou, caminhou, já era quase noite; pensava em parar em qualquer choupana para passar a noite quando foi alcançado por um automóvel veloz que buzinando o ultrapassou. 

 Mas imediatamente ouviu vozes saindo do veículo, viu alguém que gesticulava e que parecia estar lhe chamando; o automóvel deu marcha ré, parou: Pinóquio vislumbrou dois senhores que lhe acenavam pedindo que se aproximasse e tomado pelo susto reconheceu que se tratava da Raposa e do gato. Sempre eles. Acreditava que os dois estivessem irritadíssimos com ele porque os havia abandonado ao final da refeição, aproveitando a sua ressaca. 

  Ao contrário, a Raposa lhe dirigiu a palavra com extrema gentileza: 

– Caro Pinóquio, estamos muito contentes por este reencontro – disse, dando-lhe a pata e cutucando seu pulso. 

Pinóquio teria colocado com prazer a mão no bolso, mas infelizmente, na pressa de fazer sua roupa com papel florido, esquecera de fazer os bolsos. 

– Muito contente – repetiu o Gato que sempre fazia eco ao companheiro. 

– Sobe aqui conosco e fará o trajeto como um raio e sem se cansar. 

Pinóquio, que estava cansado, não esperou dizer duas vezes, e enquanto colocava um pé no veículo, perguntou: 

– E para onde vão? 

– Isso – respondeu a Raposa – nós lhe diremos no caminho. 


VII. Os três viajantes vão até os amigos que lhes dão a primeira saudação 

 O automóvel seguia veloz pela ampla estrada: escurecia e começavam no céu a brilhar as primeiras estrelas. 

– Para onde estamos indo? – perguntou novamente Pinóquio, que se sentia levemente inquieto. 

– Vamos à praia! – respondeu o Gato espremendo os olhos. 

 Pinóquio, que não tinha boas recordações do mar, onde estivera na companhia dos peixes, não se sentia exatamente seguro. 

– À praia? – perguntou – Tomar banho de mar? 

  A Raposa e o Gato riram com entusiasmo. 

– Queremos leva-lo conosco – falou a Raposa quando recobrou o ar – porque queremos lhe fazer enriquecer. 

– Aham! – fez Pinóquio, desconfiando – Na outra vez vocês quiseram me fazer enriquecer enterrando minhas quatro moedas de ouro no Campo dos Milagres, mas na manhã seguinte quando fui até lá colher os frutos, não encontrei nem mesmo as sementes e vocês dois tinham desaparecido! 

– O que isso tem a ver? – gemeu o gato com enfado – Aquilo foi uma brincadeira e não se fala mais nisso. Mas agora falamos sério. 

– E isso quer dizer o quê? 

 A Raposa se inclinou sobre Pinóquio para que o motorista não os ouvisse e sussurrou as seguintes palavras: 

  – Vamos embarcar. Temos uma lancha a motor esperando por nós. 

– E para onde vamos? 

 – Para outro lugar! – e fez um gesto amplo com a pata como se indicasse um lugar ao longe. 

– Como? – pergunto Pinóquio estupefato – O que isso significa? 

– Significa que vamos nos juntar aos “amigos”! 

– Aqueles que eram nossos inimigos, e que não serão jamais nossos amigos?!?… 

  O Gato tapou sua boca com a pata para impedi-lo de falar.  

– Não piore as coisas. Mas vejo que você entendeu. – e anunciou com calma – o General em serviço nos aguarda. 

– Não se ocupe com isso. – acrescentou a Raposa incomodada – Você faz muitas perguntas. Deve vir conosco e basta. E não vá pensar que vai ser ruim. Até porque aqui não há mais nada que fazer. Vamos em direção à vida, à liberdade… 

– Ah sim! A “liberdade”! 

– O que há? 

– Assim que eu fui na direção da liberdade acabei preso! 

– Mas lá será outra estória, nos cobrirão de ouro… 

– De ouro? 

– Sim: quero dizer, de dólares e de libras… 

– De papel… 

– Para nós dá no mesmo. 

– Por que aqueles senhores são tão bons conosco? 

– Porque nos “libertaram”, somos muito amigos, no fim das contas – exclamou com ar pretensioso o Gato. 

– Ah, certo, os “libertadores”! E eu que sempre acreditei que fossem nossos inimigos ferrenhos! 

– Você estava enganado. – continuou a Raposa – Eles nos têm grande estima e amizade e esperam que nós abramos as portas das nossas cidades a eles… 

 Exatamente naquele instante, enquanto o automóvel atravessava buzinando uma cidadezinha de trabalhadores, soaram ruidosamente as sirenes. 

  Pouco depois um bando de pássaros levantou voo e sobre a cidade pacífica caiam as primeiras bombas com explosão e estrondo sinistros. 

– Corra, corra, por caridade! – gritava a Raposa ao motorista. 

– Escapemos rápido! – gemeu o Gato impressionadíssimo. 

 Com dificuldade os nossos viajantes conseguiram retomar são e salvos a estrada, enquanto à distância viam os incêndios que avermelhavam a pobre cidade golpeada à morte. 

 Pinóquio voltou-se e mostrando aos companheiros apavorados as luzes dos bombardeios, disse tranquilamente: 

– Por que têm medo? São os amigos que lhe saúdam! 


VIII. Pinóquio quer se alistar, mas se dá conta que é somente um boneco 

 A famosa lancha a motor referida pela Raposa não era mais que uma canoa escangalhada com um motorzinho pendurado que funcionava como Deus queria, interrompendo vez ou outra seu ritmo com algum engasgo nada reconfortante. 

  – Não é nada! – dizia o pescador que conduzia o barco. 

 O fato é que nossos viajantes estavam com um pouco de medo, ainda mais Pinóquio, que fora arrastado contrariado para aquela perigosa aventura, para o bem ou mal. 

 Navegar pelo mar à noite, naquela barcaça, correndo risco de encontrar uma mina ou de ser atingido por um canhão, não era uma aventura muito divertida. 

Não foi, de fato, muito divertida. De manhãzinha, quando o horizonte já clareava com a primeira luz do alvorecer, já próximos da praia onde deviam desembarcar e com os ânimos recuperados, o barco bateu em um recife e começou a encher de água. 

– Estamos perdidos! – gritou a Raposa atônita. 

– Pinóquio, salve-nos – gemeu o Gato, cujo impacto o lançara na água, estando em vias de se afogar. 

 Mas o boneco, que tinha a cabeça submersa por uma enorme onda, não o ouviu e continuou a nadar na direção da praia, seguido pelo pescador. Os outros dois estavam quase virando comida de peixe, quando então os alcançaram alguns soldados a bordo de uma lancha, que os resgatara e em seguida também Pinóquio e o pescador. 

 Pinóquio, boneco bem educado que era, assim que foi retirado da água que o ensopara, e que reduzira seu casaco de papel a frangalhos, achou que devia agradecer aos seus salvadores. Mas um deles lhe disse poucas palavras em uma língua desconhecida. 

  O Gato, que estava se recuperando abriu um olho e murmurou: 

– Estamos fritos… São os inimigos! 

  Pinóquio escancarou a boca: 

– Mas não… são amigos – insistiu com convicção. 

– Mas qual… nós fazíamos de conta que éramos seus amigos… estamos fritos, pode estar certo! 

 Mas não foram fritos, em absoluto. Aqueles soldados rudes os confortaram e os ajudaram; com vigorosa massagem conseguiram reavivar também a Raposa que já estava resignada a fazer sua última viagem e a renunciar aos seus dólares e libras. 

  Foram levados até a praia, limpos e colocados em uma sala. 

– Pelo menos vão cortar minhas unhas! – exclamou o Gato, olhando para as patas, tão hábeis em se apropriar do que é dos outros. 

– Vão nos fuzilar! – gemeu a Raposa, quando se viram sós. 

Pinóquio não disse nada. Pensava que tudo aquilo que o ameaçava era bem merecido e que tudo isso não teria lhe ocorrido se ao invés de seguir estes infelizes camaradas tivesse dado ouvidos aos conselhos do Grilo Falante. 

 Depois, com a calma de espírito típica de quem não se sente verdadeiramente culpado, adormeceu. 

 Despertou quando o sol começou a entrar com força através da janelinha da prisão. Mas teve logo uma surpresa. 

 O Gato e a Raposa não estavam mais ali. Teriam fugido passando através das grades da janela?… 

 Pinóquio todo alegre, por ter se liberado da incômoda companhia, assim que vieram para conduzi-lo à presença do Comandante, foi tomado por um ânimo de leão. 

 – Senhor Comandante. – lhe disse – Eu quero me alistar. Dê-me, por favor, uma farda e um fuzil. 

 Mas o Comandante riu na sua cara e fez um gesto eloquente indicando sua mísera figura imprestável. Esta foi para Pinóquio a pior das humilhações. Deixaram-no livre e não se ocuparam mais dele. O que fariam com um boneco de madeira? 

  Molhado como estava não serviria nem mesmo para acender o fogo. 


IX. Pinóquio pegou um avião que o ajudara em outra oportunidade e o reconduziu ao local de onde partira 

 Foi até a praia, caminhou, caminhou; jamais se sentira assim tão inútil, imprestável. Ao longe soava um canhão. O que poderia fazer ele, marionete de madeira, sem cérebro e sem força? 

 Se tivesse sido bom e obediente, se não tivesse seguido os maus conselhos de companheiros e se não tivesse se envolvido em tantas estúpidas aventuras a esta hora não seria mais um boneco mas sim um bravo garoto que teria cumprido seu dever, como lhe indicara o Grilo Falante, ou seja, teria feito tudo ao contrário daquilo instigado pela Raposa e pelo Gato, que representavam tão bem a nobre, mas não exclusiva, classe dos golpistas, dos especuladores, dos aproveitadores, dos espiões e dos traidores do povo; 

“Faça seu dever a qualquer custo, aconteça o que aconteça, você não vai se arrepender”. Assim dissera o Grilo Falante. 

 Sentiu um tremor ao ouvir o rumor de um passo cadenciado, o eco de um canto marcial que enchia a planície. Com a agilidade de suas pernas, em quatro saltos alcançou a estrada a tempo de ver o desfile em perfeita ordem de um batalhão de jovens, de garotos com fuzis e com a mochila às costas. Era um antigo e comovente hino da Pátria que se espalhava pelo ar puro com suas notas vibrantes… 

  Com surpresa Pinóquio ouviu que chamavam por ele. 

 Olhou para o ponto de onde vinha aquela voz e descobriu Lucignolo, o seu amigo de estripulias e de más ações, que agitava o quepe: 

 – Adeus, Pinóquio! Vamos lutar! 

 Outras vozes se elevaram do grupo; os garotos saudavam, jogavam seus quepes para o alto. Com ainda mais surpresa Pinóquio reconheceu muitos daqueles desajuizados que o acompanharam do povoado até a cidade. Gostaria de ter gritado ele também para saudá-los, para lhes desejar boa sorte, mas não conseguiu; um caroço lhe fechava a garganta e não lhe permitia dizer nada. Se contentou em agitar seu chapeuzinho de miolo de pão (um chapéu preciso) enquanto o batalhão desfilava e ia sumindo atrás da curva da estrada. 

 Não sabendo ao certo o que fazer, entrou em uma taberna ali perto; ainda tinha algumas moedas que a Raposa e o Gato lhe enfiaram nos bolsos para livrar os deles e, estando com uma fome de leão, resolveu gastá-las; acomodou-se em uma mesa e o taberneiro lhe trouxe uma sopa quente que consumiu numa fração de segundo. Enquanto comia Pinóquio ouvia aquilo que diziam os marinheiros sentados na mesa ao lado; contavam um caso recente: de um general que, associado a dois generais inimigos, embarcou em um navio e seguiu para uma ilha na tentativa de persuadir seus habitantes a se rebelarem; a se tornarem chefes da ilha para entrega-la ao inimigo. Os dois referidos generais teriam depois fornecido a ele as suas tropas. Os habitantes da ilha, no entanto, desconfiaram e não morderam a isca. E os três famigerados, com a viola no saco, abandonaram a ilha. À bordo do navio, ordenaram à tripulação que os levassem ao porto de onde haviam partido, mas as coisas não andaram como o previsto. A tripulação resolveu se vingar da ordem recebida anteriormente e da tentativa de traição. 

 Os marinheiros, então, conhecendo suas más intenções, colocaram o navio numa direção bem diferente daquela indicada e, assim que se afastaram um pouco, favorecidos pela penumbra, os três generais viram serem apontadas as armas de bordo na sua direção. Não havia muito o que fazer. Frente ao comportamento firme da tripulação, aos três generais não restou nada melhor do que levantar as mãos, deixando-se desarmar. O navio neste meio tempo alcançara sua base, e os três generais traidores foram sem apelo entregues aos soldados da guarnição para o justo castigo. 

 Pinóquio escutou emocionado o relato, ouviu outros que diziam os nomes dos marinheiros e oficiais que mesmo arriscando a vida não se entregaram ao inimigo… Sentiu vergonha de não estar fazendo nada, de estar numa espera apática escutando os outros. Com um gesto brusco colocou de lado o prato de costeletas que o taberneiro colocara na sua frente, e que por ele pagaria, naturalmente, um preço astronômico e gritou: 

  – Eu também quero lutar! 

 Os marinheiros se voltaram e quando viram aquele boneco vestido com uma camisa de papel florido, de madeira e esquálido e nanico, desataram na risada. 

 Mas Pinóquio não lhes deu ouvidos. Deixara algumas moedas sobre a mesa e correndo com suas longas pernas atravessou a porta e se lançou na direção da praia. 

 O que pretendia? Nem mesmo ele sabia. Queria fazer alguma coisa; não queria mais ficar somente observando. 

 Mas chegando na beira do mar, vendo a imensa superfície plana e tranquila, a plácida indiferença da natureza, sentiu um aperto no pequeno coração. Sentou-se na areia esperando. Esperando o que? Talvez um milagre, um milagre que somente poderia conceder a bela Fada dos cabelos azuis. 

  E começou a chorar e a se lamentar invocando a cada segundo: 

– Oh fadinha, fadinha linda, venha me socorrer. 

 Se pudesse reencontrar a o boa Fada, estava certo que ela acharia um modo de realizar seus desejos, mas como encontrá-la? 

 Neste momento um grande pombo surgiu entre as nuvens e voando em círculos veio pousar na praia junto à Pinóquio. 

– Você me reconhece? – perguntou. 

 Sim! Era aquele valente pombo que em outra ocasião em meio ao perigo salvara Pinóquio e o levara sobre suas seguras asas ao encontro de papai Gepeto. 

– Sim, sim, caro pombinho. – exclamou Pinóquio animado, batendo palmas – você veio para levar-me até a Fada? Veio para fazer de mim um bravo garoto pronto a combater por seu país? 

– Você é quem manda – respondeu – e não temos tempo a perder! 

 Ouvindo aquelas palavras o boneco se sentiu reconfortado e sem perder tempo saltou sobre a garupa do pombo e montado como num cavalo, abraçou seu pescoço macio como uma pluma. 

– Eia! Eia! Cavalinho? – gritou entusiasmado – Leve-me onde se combate!… 

 O pombo alçou voo, esticando bem as suas asas, descreveu um amplo giro sobre o mar; depois seguiu como uma flecha, pontando para o céu da Oátria. 

  Pinóquio se tornaria um homem, desta vez. Não seria mais um boneco! 

*****

Heloisa Sousa Pinto Netto é doutora em Letras pela UFRGS, bacharelanda em História pela UFRGS, tradutora.

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHEUM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHEUM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.