Quando você me olha, você me vê?
Aweti, Ikpeng, Kaiabi, Kalapalo, Kamaiurá, Kĩsêdjê, Kuikuro, Matipu, Mehinako, Nahukuá, Naruvotu, Wauja, Tapayuna, Trumai, Yudja e Yawalapiti são os povos que vivem hoje na primeira terra indígena reconhecida no Brasil e a mais importante reserva das Américas.
Era década de 60 quando o território foi demarcado com o nome de Parque Indígena do Xingu. Desde então e um pouco antes, imagens, relatos e pesquisas foram produzidos sobre a “casa dos deuses”, um dos possíveis significados perdidos da palavra Xingu.
A exposição fotográfica “Xingu: contatos” propõe uma revisão da história das imagens do Xingu. Basicamente significa inverter o uso da câmera tornando o objeto também sujeito.
A exposição diz ser um dos seus objetivos “dar expressão aos olhares indígenas sobre a história do Xingu”. A frase é bonitinha. Bonitinha. Mon chéri, ninguém dá expressão não: o que a exposição faz é trazer para a linguagem conhecida o que é visto. A expressão sempre existiu, mas por mais que se olhe e filme e escreve não se vê.
Dito de forma mais simples, é parar para ver e ouvir. O Xingu sempre esteve lá, muito antes dos europeus. É bonitinho entrar no lindo prédio do Instituto Moreira Sales e encontrar a exposição em tons laranja numa bela curadoria. Enfim o Xingu por ele mesmo e alguns outros.
Relocar quem segura a câmera não é dar expressão, mas garanti-la e reconhecê-la. É radicalizar a diferença. Sim, precisamos radicalizá-la no sentido de entender que uma forma de ver o mundo é única, e essa diferença – que não pode ser confundida com desigualdade – é o tecimento capaz de criar um comum.
O comum não é uma média, tampouco similaridades. Por isso estatísticas são insuficientes. É preciso uma escuta apurada. A comunicação é verbo cujo sentido acontece na troca. O encaixe capaz de criar uma estrutura se compõe entre diferentes. Quem brincou de lego sabe.
Entender que o outro vê algo que me escapa nos leva a cuidar dos lugares diferentes do meu, mesmo que eu jamais os ocupe, seja pela impossibilidade seja porque não quero. Eu não sei como é perceber o mundo sendo uma Aweti como também não sei como é sendo uma negra e nunca saberei, mas posso ouvir o outro e na escuta empática desse outro algo passará a ser meu. O olhar do outro é minha ponte para o que da vida me escapa.
Dar e reconhecer diferentes vozes acontece quando percebemos a impossibilidade de ver o todo sozinhos. Lembro do belo conto de Eduardo Galeano, do filho que pela primeira vez diante da imensidão do mar segura firme a mão do pai e diz “me ajuda a olhar”. Uma música tampouco se compõe com uma única nota ou um único acorde. Se vivemos a era do algoritmo que a tudo simplifica e nos enfurna em uma bolha de pares e supostas semelhanças, é urgente segurar a mão do outro e pedir “me ajuda a olhar, me ajuda a ver quando eu olho”. O paradoxo é que, para nos tornarmos maiores, precisamos reconhecer nossas limitações. Se o algoritmo e o ensimesmamento narrativo criam miragens é o desconforto com a diferença que nos levará para os oásis.
Sem uma multiplicidade de olhares e versos e verbos pouco vamos perceber da topografia.
Hoje em reservas como o Xingu há a produção não apenas de belos materiais, mas de formação profissional de fotógrafos e cineastas nativos. A história para ser contada precisa ser escutada, e pode e deve ser contada de muitos lugares. Observar um vaso por um único ângulo não é ver o vaso todo. Eu preciso daquele que vê o vaso do lado oposto ao meu para conseguir, minimamente, ter uma melhor ideia sobre o que eu observo.
Saramago, certa vez, comentou sobre suas idas ao teatro. No seu tempo de menino ficava no “galinheiro”, a parte mais alta e geralmente gratuita. Lá havia uma linda coroa que, vista de frente, apresentava os ornamentos e os dourados, mas se vista de onde ele estava mostrava as teias de aranha, o oco e os vazios. E ali, ele confessa, aprendeu algo muito importante: que para conhecer algo precisava dar a volta inteira. Eu diria que além disso eu preciso do olhar do outro porque ele verá o que me escapa. Um tecido só acontece com muitos fios. Uma trama precisa de muitos e nenhum fio é a expressão primeva e mais qualificada de algo, ela é apenas parte.
A exposição “Xingu: contatos” permite ver o que não vemos e questionar a verdade do que cremos ver.
Samantha Buglione – Psicanalista membro da Fórum do campo lacaniano Brasil, escritora, doutora em ciências humanas. www.samanthabuglione.com.br e @samanthabuglione