Ensaio

Quando você me olha, você me vê?

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Quando você me olha, você me vê? Aldeia Khĩkatxi do povo Khisêtje durante queimada provocada por não indígenas no entorno da Terra Indígena Wawi, parte do Território Indígena do Xingu, 2022. Foto de Renan Suyá/Rede Xingu+ (Reprodução)

Aweti, Ikpeng, Kaiabi, Kalapalo, Kamaiurá, Kĩsêdjê, Kuikuro, Matipu, Mehinako, Nahukuá, Naruvotu, Wauja, Tapayuna, Trumai, Yudja e Yawalapiti são os povos que vivem hoje na primeira terra indígena reconhecida no Brasil e a mais importante reserva das Américas.  

Era década de 60 quando o território foi demarcado com o nome de Parque Indígena do Xingu. Desde então e um pouco antes, imagens, relatos e pesquisas foram produzidos sobre a “casa dos deuses”, um dos possíveis significados perdidos da palavra Xingu.

A exposição fotográfica “Xingu: contatos” propõe uma revisão da história das imagens do Xingu. Basicamente significa inverter o uso da câmera tornando o objeto também sujeito. 

A exposição diz ser um dos seus objetivos “dar expressão aos olhares indígenas sobre a história do Xingu”. A frase é bonitinha. Bonitinha. Mon chéri, ninguém dá expressão não: o que a exposição faz é trazer para a linguagem conhecida o que é visto. A expressão sempre existiu, mas por mais que se olhe e filme e escreve não se vê. 

Dito de forma mais simples, é parar para ver e ouvir. O Xingu sempre esteve lá, muito antes dos europeus. É bonitinho entrar no lindo prédio do Instituto Moreira Sales e encontrar a exposição em tons laranja numa bela curadoria. Enfim o Xingu por ele mesmo e alguns outros. 

Relocar quem segura a câmera não é dar expressão, mas garanti-la e reconhecê-la. É radicalizar a diferença. Sim, precisamos radicalizá-la no sentido de entender que uma forma de ver o mundo é única, e essa diferença – que não pode ser confundida com desigualdade – é o tecimento capaz de criar um comum. 

O comum não é uma média, tampouco similaridades. Por isso estatísticas são insuficientes. É preciso uma escuta apurada. A comunicação é verbo cujo sentido acontece na troca.  O encaixe capaz de criar uma estrutura se compõe entre diferentes. Quem brincou de lego sabe.

Entender que o outro vê algo que me escapa nos leva a cuidar dos lugares diferentes do meu, mesmo que eu jamais os ocupe, seja pela impossibilidade seja porque não quero. Eu não sei como é perceber o mundo sendo uma Aweti como também não sei como é sendo uma negra e nunca saberei, mas posso ouvir o outro e na escuta empática desse outro algo passará a ser meu. O olhar do outro é minha ponte para o que da vida me escapa. 

Dar e reconhecer diferentes vozes acontece quando percebemos a impossibilidade de ver o todo sozinhos. Lembro do belo conto de Eduardo Galeano, do filho que pela primeira vez diante da imensidão do mar segura firme a mão do pai e diz “me ajuda a olhar”. Uma música tampouco se compõe com uma única nota ou um único acorde. Se vivemos a era do algoritmo que a tudo simplifica e nos enfurna em uma bolha de pares e supostas semelhanças, é urgente segurar a mão do outro e pedir “me ajuda a olhar, me ajuda a ver quando eu olho”. O paradoxo é que, para nos tornarmos maiores, precisamos reconhecer nossas limitações.  Se o algoritmo e o ensimesmamento narrativo criam miragens é o desconforto com a diferença que nos levará para os oásis. 

Sem uma multiplicidade de olhares e versos e verbos pouco vamos perceber da topografia.

Hoje em reservas como o Xingu há a produção não apenas de belos materiais, mas de formação profissional de fotógrafos e cineastas nativos. A história para ser contada precisa ser escutada, e pode e deve ser contada de muitos lugares. Observar um vaso por um único ângulo não é ver o vaso todo. Eu preciso daquele que vê o vaso do lado oposto ao meu para conseguir, minimamente, ter uma melhor ideia sobre o que eu observo. 

Saramago, certa vez, comentou sobre suas idas ao teatro. No seu tempo de menino ficava no “galinheiro”, a parte mais alta e geralmente gratuita. Lá havia uma linda coroa que, vista de frente, apresentava os ornamentos e os dourados, mas se vista de onde ele estava mostrava as teias de aranha, o oco e os vazios. E ali, ele confessa, aprendeu algo muito importante: que para conhecer algo precisava dar a volta inteira. Eu diria que além disso eu preciso do olhar do outro porque ele verá o que me escapa. Um tecido só acontece com muitos fios. Uma trama precisa de muitos e nenhum fio é a expressão primeva e mais qualificada de algo, ela é apenas parte. 

A exposição “Xingu: contatos” permite ver o que não vemos e questionar a verdade do que cremos ver. 


Samantha Buglione – Psicanalista membro da Fórum do campo lacaniano Brasil, escritora, doutora em ciências humanas. www.samanthabuglione.com.br e @samanthabuglione

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