Ensaio

Semmelweiss

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Semmelweiss

Louis Ferdinand Céline defendeu sua tese de médico com uma narrativa sobre o Dr. Semmelweiss, inaugurando com ela sua carreira de literato e modernizador da literatura francesa. Conto aqui, à minha maneira, a aventura deste notável cientista húngaro que anos antes do Dr. Pasteur mergulhou no reino mortal das infecções.


Jamais gostara de Viena, cidade de ar vetusto, ao contrário de sua alegre Budapeste, com seus pórticos e jardins. A antipatia que Viena lhe inspirava tinha seu motivo, mas Semmelweis morrerá ignorante disso.

No início, é em Viena que ele encontra os renomados médicos do seu tempo, Skoda e Rokitansky, seus professores mais brilhantes e influentes. Doutor aos 26 anos, Semmelweis é o aluno predileto, o gênio pressentido. Inácio Filipe de nome, com o diploma em mãos, Semmelweis entra no campo ainda desconhecido e fatal das infecções. O título de mestre em cirurgia aos 28 anos, após um concurso brilhante, não satisfaz esse jovem impetuoso e com urgência em salvar a vida de tantos pacientes mortos em meio a mais patética ignorância da medicina.  

Novos estudos, outros exames, e Semmelweis se torna professor assistente na maternidade do Dr. Klein, no Hospital Geral de Viena. Por essa época, o grande hospital vivia ao som da lúgubre sineta dos mortos, que incessantemente anunciava os óbitos de incontáveis parturientes infectadas pela febre puerperal.  Certo é que, dos dois pavilhões de parturientes existentes em 1846, o do Dr. Klein matava mais que o do Dr. Bartch.  Àquela maternidade macabra submetiam-se apenas as mulheres dos bairros mais populosos, as mais pobres, as mais discriminadas pelos costumes da época.  A Europa — Paris, Londres, Milão — se curva diante do flagelo, menos ele, Semmelweis, certo de que está predestinado a derrotá-lo. 

Mas na maternidade do Dr. Klein, o número elevado de grávidas mortas infectadas jogava o opróbrio sobre as diversas comissões de doutores organizadas para acabar com o Mal. No entanto, um gênio já estava em ação: o cientista húngaro observava a diferença gritante dos índices de morte entre os dois pavilhões. O Dr. Semmelweis notou argutamente que as grávidas do pavilhão do Dr. Bartch eram atendidas por alunas-parteiras, ao passo que no do Dr. Klein eram estudantes. Sommelweis consegue trocar as alunas e os estudantes de pavilhão, alterando os índices de óbitos. Concluiu, então, que a morte seguia os estudantes. 

Próximo passo de seu método experimental no caminho das causas da doença fatal, o jovem médico rastreia os estudantes e constata que suas mãos saem diretamente dos cadáveres dissecados para o ventre das grávidas, depositando aí todas as impurezas letais dos corpos defuntos. Essa foi a luminosa descoberta do cientista, mas a brutal caída em desgraça do homem. Logo os ciúmes mesquinhos se elevaram nos espíritos, e Semmelweis, isolado entre seus pares, foi execrado, humilhado, excluído. 

Procurou a ajuda de seus velhos professores. Num lampejo de pura criatividade, pede ao Dr. Klein que instale lavatórios entre a sala de dissecções e a das parturientes, para que todos os estudantes, incluindo o emérito professor, lavem cuidadosamente as mãos antes de procederem ao toque das grávidas. A insólita medida, em desconformidade com o espírito científico da época, naturalmente exige explicações que Semmelweis não pode dar. Ferido na sua autoridade, o Dr. Klein demite brutalmente seu assistente.  

No inverno de 1846 começa o calvário, com altos e baixos, do húngaro. A morte de um médico amigo seu de uma picada que dera em si mesmo durante uma dissecação coloca-o novamente no centro do redemoinho de suas pesquisas. Como um raio em céu azul, Inácio Felipe Semmelweis se dá conta de que a morte do amigo está ligada às mortes da febre puerperal, que por sua vez se ligam às demais infecções. Anos antes de Pasteur, sua busca está ali, diante dele, saindo das sombras de uma procura às cegas: os exsudados dos cadáveres, responsáveis pelo contágio, são levados diretamente pelas mãos emporcalhadas dos estudantes aos órgãos genitais das mulheres grávidas.  No entanto, essas ínfimas partículas cadavéricas eram detectáveis, naquele momento da ciência, apenas pelo odor. E não sendo essa para o húngaro toda a verdade, ele segue na busca da causa letal da febre puerperal.

Por insistência de seu professor Skoda, Semmelweis é readmitido no pavilhão do Dr. Bartch, que aceita sua proposta de higienização com uma solução de cloreto de cal para o lava-mãos de todos os estudantes envolvidos em dissecações recentes. Apesar da forte queda na taxa de mortalidade, o médico não se satisfaz. Nessa titânica luta contra a morte e suas astúcias, o acaso leva ao pavilhão de Semmelweis uma mulher com sintomas do que poderia ser uma gravidez e que na realidade é um câncer no colo do útero. Esse diagnóstico é feito pelo doutor húngaro que, sem pensar em lavar as mãos, faz exames de toque sucessivos em cinco mulheres em fase de dilatação. Essas mulheres morrem nas semanas seguintes de febre puerperal típica.

Nesse episódio Semmelweis encontra a revelação que procurava: “por simples contato, as mãos podem ser infectantes”. Desse momento em diante, a lavagem cuidadosa das mãos passa a ser obrigatória para todos, tendo ou não dissecado cadáveres. No Hospital de Viena, as mortes por febre puerperal caem para a taxa de 0,23%, a percentagem, naquela época, das melhores maternidades do mundo.

Essa descoberta, porém, não teve o sucesso esperado. Seu velho inimigo Dr. Klein conseguiu congregar contra as teses de Semmelweis um grande número de adversários na própria faculdade, a maioria colegas do húngaro. Entre os cinco médicos discordantes encontravam-se alguns de seus professores, mas todos foram imediatamente hostilizados pela maioria. Nos demais países europeus, a inércia triunfa, e aos poucos Semmelweis assiste ao descrédito de sua verdade incontestável, tão incontestável que desde aquela época, até hoje, não houve qualquer alteração no método de assepsia proposto por ele. Cinquenta anos depois, outro médico, o Dr. Louis Pasteur, descobriria a verdade microbiana, mas Semmelweis não mais existia.

Enquanto isso não ocorria, a sisuda Sociedade Médica de Viena encerrava em pancadaria uma tentativa de criar uma nova comissão para analisar as descobertas do cientista húngaro, comissão imediatamente proibida pelo ministro, que demite Semmelweis de seu posto do hospital geral, expulsando-o de Viena.

O retorno de Semmelweis à sua terra natal se dá pouco antes da revolução de 1848, que mergulha a Hungria em grande miséria e opressão. Nesse período, ele ainda passa por várias desgraças, que vão da fome a uma profunda melancolia e a um longo silêncio de dez anos. Depois disso, modestamente ele retorna à Maternidade de Budapeste. 

Com a morte do chefe desta maternidade, Semmelweis é promovido a médico-chefe, posição de onde lança um ataque desvairado à categoria médica. A reação aos seus ataques é tão bárbara que o conselho municipal não aceita mais comprar os lençóis que ele pedira para as parturientes, dizendo que usasse os mesmos lençóis em vários partos; por outro lado, mulheres grávidas teriam sido infectadas para provar o equívoco de suas teses. Em todo o caso, as estatísticas de morte sobem de 2 para 12% no período em que Semmelweis dirige a maternidade. 

Para piorar a situação do médico, um discípulo seu que viaja a Paris para defender a causa de Semmelweis na Academia de Medicina de Paris, a mais influente instituição médica, retorna decepcionado, derrotado. A partir desse momento, Semmelweis se desprende do frágil elo que o prendia à razão e transforma seu trabalho em longos discursos injuriosos contra médicos e parteiros, chamando-os de assassinos. Mergulha numa demência da qual não mais sairá. Seu corpo se verga, seu olhar vaga num não-lugar, ele se projeta fora do tempo e do espaço, fragmentado pela demência. 

Assim vivia quando, numa tarde de junho de 1865, andrajoso e vociferando, invadiu o anfiteatro da faculdade de Medicina, dirigindo-se ao cadáver preparado no mármore para a aula e, antes que o impedissem, com movimentos bruscos, corta-se com a mesma lâmina que usou para fazer uma grande incisão no morto. Assim ele infecta-se mortalmente. Levado pelo velho amigo o professor Skoda para Viena, é internado no asilo de loucos. Depois de agonizar três semanas, aos 47 anos, Semmelweiss morre naquela Viena tão diferente da sua alegre Budapeste, com seus pórticos e jardins.


Maria Regina Pilla é autora de Volto semana que vem (Editora Ama Livros).

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