Ensaio

Sempre algo bom

Change Size Text
Sempre algo bom Foto: Daniel Scandolara

Naquele inverno de 2021, na penúltima semana de dezembro, entramos em recesso. Nestes momentos, a ideia é que os alunos voltem para suas casas e retornem apenas no início da estação seguinte. Minha turma de mestrado era composta essencialmente de armênios e estudantes da Ásia Central. Eu era o único sul-americano, e o primeiro da história do programa, a estar ali. Portanto, não me parecia um esforço válido voltar ao Brasil para depois fazer todo o caminho de volta, desta vez para a Ucrânia. Bolei um plano: eu iria para a Rússia, passaria um tempo com um amigo, e depois iria diretamente para a Ucrânia. 

Já se falava, com alguma frequência, sobre a movimentação de tropas russas na fronteira ucraniana, mas se no chamado Ocidente poucos acreditavam em uma invasão, muito menos no Leste do mundo: o que mais ouvi foi ‘‘nada vai acontecer’’, ‘‘é bravata’’, ‘‘não há com o que se preocupar’’. Se o ‘‘General Inverno’’ já devastou tantos, ele talvez tenha me salvado: após quatro dias em Moscou, não aguentei o frio de 25 graus Celsius negativos e voltei para o conhecido verão brasileiro de 35 positivos. Talvez, pensando atualmente, em perspectiva e exercitando o contrafactual, me livrei de pelo menos dois cenários, que eu tinha passado a considerar depois que aterrissei em Moscou: 1) ficar na Rússia até o início das aulas em Kiev no mês de fevereiro – isto me deixaria momentaneamente ‘‘preso’’ no país em meio à agitação e violência domésticas que se instauraram quando as tropas de Putin invadiram a Ucrânia; ou 2) ficar menos tempo na Rússia e ir para Kiev mais cedo, antes das aulas, para conhecer um pouco da cidade e minimamente me aclimatar – olhando para esta ideia, que foi minha favorita por dois dias, não é necessário pensar muito para ter a mínima dimensão do tamanho do problema que isso acarretaria: eu estaria em Kiev quando os bombardeios efetivamente começaram.  

Não obstante a retórica de possibilidade de invasão tenha sido presente durante aqueles dois meses que precederam a guerra, a ideia de que não havia ‘‘nada a temer’’ era tão sólida que seguimos nos preparando para voltar às aulas presencialmente, em fevereiro, na capital ucraniana. Pelas minhas estimativas, chegaríamos a Kiev na semana da invasão em massa russa. Talvez aí, mais uma vez, o frio que me espantou de volta ao Brasil tenha me dado uma nova ajuda. 

Naquela semana em que ninguém parecia saber o que explicar, o que eu julgava impensável aconteceu: o módulo de estudos na Ucrânia não foi cancelado. Os professores e professoras que tinham familiares os mandaram para o exterior, deslocaram-se por conta própria para o interior do país e informaram que dariam as aulas de lá – aqueles que decidiram continuar com o programa fizeram o que podiam com suas conexões de Wi-Fi problemáticas. Não obstante, era palpável o sentimento de que não queriam denotar preocupação: mesmo para os alunos armênios, acostumados a guerras, a amargura daquilo tudo pesava na mente. Em uma das aulas, um dos nossos professores estava apresentando um power-point quando se ouviu, ecoando do som de seu microfone, o ressoar alto de uma sirene, o qual, no mínimo, era um recado para esconder-se em algum porão em vista de um bombardeio iminente. Ele nos pediu licença, disse que iria se ausentar para ver o que estava acontecendo e durante cerca de vinte minutos um silêncio absoluto pairou na sala de aula virtual. Quando voltou, simplesmente perguntou: ‘‘onde estávamos?’’. 

‘‘Yuliya, você não sabe como estou feliz em revê-la’’ – foram as palavras ditas por uma das professoras na reunião de apresentação do módulo, que congregava a nós, alunos, professores e coordenadores. Yuliya estava incomunicável há cerca de dez dias ou mais e ninguém sabia o que esperar – ou talvez esperassem por algo, mas algo pelo que não queriam esperar. Pareceu-me bastante claro, a partir daquela vocalização, que o ato de ver ou rever alguém querido jamais deve se limitar a um aperto de mão. 

‘‘Sempre surge algo bom em algum momento’’ – foi outra frase que ouvi, proferida pela boca de um homem chamado Yevgenii Gerasymenko, que se tornou meu orientador e logo se revelou um dos seres humanos mais interessantes que já conheci. Especialista em direito migratório, Yevgenii era um daqueles que havia mandado a família para o estrangeiro e assumido as aulas no interior ucraniano. Nunca atrasou um prazo, sempre marcou reuniões de orientação em horários cujo fuso fosse bom para mim, leu todos os capítulos e os corrigiu meticulosamente. Nunca se furtou de apontar caminhos e prestar ajuda. Por vezes brincava que eu me assemelhava ao jovem Gogol (mas ‘‘de perfil’’), perguntava como estava Curitiba, local que ele já havia visitado1, e gostava de dizer as palavras ‘‘muito obrigado’’. Para ele, formavam uma combinação sonora muito bonita ao ouvido. 

‘‘Sempre surge algo bom em algum momento’’ – uma típica ‘‘frase chiclete’’, que provavelmente veríamos em uma propaganda, e que nunca retratou o tipo de pensamento que me acostumei a acreditar. Se Yevgenii apenas queria aparentar normalidade ou realmente acreditava nisso, hoje pouco importa: era o que precisava ser dito, sobretudo para ele mesmo. 

II.

A Ucrânia era para ter sido apenas uma rápida ‘‘parada’’ para depois retornar à Armênia e finalizar o mestrado. Entretanto, tudo foi terminado por meio de aulas online de madrugada, incluindo a defesa de minha dissertação. Logo, se para alguns o fim do daquilo foi o fim, para mim o sentimento foi diametralmente contrário. Pareceu-me cada vez mais lógico, como se algo me puxasse, voltar à Armênia – não para terminar algo que comecei, mas para continuar o que deveria ser continuado. 

Já no doutorado, em 2023, dois anos e quase dois meses depois, eu estaria finalmente de volta. Minha ideia era não tanto pesquisar, mas sim aprender através de um trabalho de voluntariado. Aprender, não com professores ou acadêmicos, mas sim com as pessoas ‘‘comuns’’, aquelas que vendem frutas ou flores nas esquinas e estendem varais infinitos entre um prédio e outro; aquelas que a agenda de estudos e o ‘‘imponderável’’ não permitiram que se desse a devida atenção em 2021. Nestas, imaginei, estivesse, enfim, o elo com a ‘‘Armênia real’’, aquela que transcendeu inimaginavelmente os livros na primeira vez e que eu ainda buscava compreender.

Notas
1 – O Brasil, especialmente o Paraná, possui uma das maiores comunidades da diáspora ucraniana no mundo.


Daniel Lorenzo Gemelli Scandolara nasceu em Porto Velho, Rondônia. Atualmente doutorando pela UFRGS, morou a maior parte da vida em Brasília, onde obteve graduação em Ciência Política e mestrado em História, ambos pela UnB. Posteriormente, concluiu mestrado em Direitos Humanos e Democratização pelo Campus Global em Direitos Humanos Cáucaso, tempo em que viveu na Armênia. É autor do livro Um Estopim em 1914: a política britânica em relação ao Império Otomano e sua preservação e criador do blog Torto em Linhas Retas. Gosta de histórias.

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.