Ensaio

Ser o que se é

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Ser o que se é Foto: Marcelo Soares/Divulgação

Luis Augusto Fischer, querido amigo, editor da Parêntese, me convidou para escrever uma pensata, sobre minha canção Estrela, estrela, composta em janeiro de 1981. Gravada dois meses depois em meu álbum de estreia, ao qual deu o título, ela se torna agora tema da novela Amor Perfeito, da TV Globo. Tomado pela preguiça em relação ao tema, confesso que minha primeira reação foi a de cogitar apresentar ao amigo uma fugata, com o perdão do trocadilho. Mas logo em seguida me pus a pensar sobre aquela canção dos meus 18 anos, a mais consistente que compusera até então, e me dei conta de que, por mais que eu a tenha cantado inúmeras vezes nesses seus 42 anos de estrada, que muitos outros a tenham cantado e que ela se mantenha na ordem do dia, pouco pensei e menos ainda escrevi sobre ela até hoje.

Em minha novela Satolep (Cosac Naify, 2008), um imaginário João Simões Lopes Neto diz para Selbor, o personagem-narrador: “Às vezes o lugar onde queremos chegar fica exatamente onde estamos, mas precisamos dar uma longa volta para encontrá-lo”. Se fosse eu a conversar com João Simões e o tema fosse Estrela, estrela, o comentário não poderia ser mais acertado. 

Compus a canção em poucos minutos, sentado na cama de baixo do beliche da direita do quarto da frente da nossa casa de veraneio na praia do Laranjal. Só poderia afirmar ter vivido um momento de elevação se estivesse sentado na cama de cima. Saí dali e mostrei a novidade para minhas irmãs, perguntando se conheciam aquela canção. Soava tão redonda, tão familiar. Era como se já existisse. Elas não só gostaram como me convenceram de que era minha mesmo. Eu era jovem demais para saber que algumas canções podem ser feitas em minutos, mas que outras como elas só surgem de anos em anos, quando surgem. Se bem que no verão seguinte brinquei de repetir a experiência sentando-me no mesmo lugar, desafiando-me a compor “outra” Estrela, estrela, e compus Noite de São João, a partir de poema de Fernando Pessoa. Sim, não é uma canção da mesma estatura, e mesmo que a resposta esteja naquela cama, não creio que se eu me sentasse ali ano a ano iria enfileirar canções fortes como elas. Mas enfim, o fato é que tê-la composto me fez reagir a ela como se eu já tivesse posto a mão na chave de compor grandes canções e tivesse, a partir de então, que me voltar para o compromisso ético de querer mais como compositor. Em três anos, isso me levou ao álbum A paixão de V segundo ele próprio, marcado pela experimentação, a ênfase no conceito e algumas breves anticanções. Mas ainda era preciso ir além. E eu fui. Ou tentei. Talvez esteja tentando até hoje. 


A letra da canção, escrita por Vitor Ramil em 1981 (Foto: arquivo pessoal)

Estrela, estrela, portanto, representou para mim um ponto de chegada, um amadurecimento ainda na adolescência, mas, ao mesmo tempo, me fez reagir a uma suposta acomodação com que a maturidade precoce poderia me domesticar. O que estarei fazendo aos 20 anos se entrar nessa, eu me perguntava? Muitas vezes depois daquilo interromperia o trabalho de uma composição que me parecesse simplesmente bonita. Não sabia bem o que ela deveria ser, mas apenas bonita é que não. Passados tantos anos, tendo desenvolvido uma reflexão paralela a meu trabalho de compositor, a “Estética do Frio”, cuja aposta está justamente na passagem do tempo, ganhei alguma desenvoltura no vaivém entre compor e pensar sobre o que componho, que de resto interessa a pouca gente além de mim mesmo. E aqui sento-me à mesa do café Aquário com meu personagem João Simões. Precisei dar uma longa volta para entender o que já estava em Estrela, estrela, seja em sua forma, seja no que diz a letra. 

Como ouvinte, nunca fui de prestar atenção a letras de canções, embora muita gente ache que esse é meu maior interesse. Talvez o único compositor que me chame para o texto seja o Chico Buarque, em quem, para mim, tanto as soluções poéticas como as musicais se equivalem em contundência e nível de realização. No mais, vou sempre atrás da música: a melodia, sua relação com os acordes e vice-versa (às vezes, só anos depois me ligo no que escreveu um compositor, mesmo que eu saiba a sua letra de cor). Quando componho, não é muito diferente. É uma melodia que vai se desenvolvendo como um pensamento livre sobre uma harmonia (a sequência dos acordes no instrumento), que ora segue um caminho sugerido pela melodia, ora sugere à melodia por onde ir. A letra quase sempre vem depois e, ainda assim, formando-se a partir do sons intuitivos que cantarolo na melodia, tal vogal aqui, tal consoante ali; e das divisões rítmicas da mesma melodia, que vão determinar o tamanho das palavras e sua prosódia antes mesmo de elas serem escolhidas. 

Volta e meia cito a formulação de Gaston Bachelard, que acho muito precisa, de que a imagem poética antecede o pensamento. Com raras exceções, as minhas letras se fazem assim, de pensamentos rapidíssimos ao sabor da música. Depois “penso” sobre o que foi escrito, quase sempre faço ajustes, alguns mais uma vez na velocidade da imagem poética, conforme descrito por Bachelard. No caso de Estrela, estrela, música e letra nasceram juntas, simultâneas. Não tenho recordação de ter burilado a letra, mas dificilmente não terei feito algum polimento.

Quando Milton Nascimento gravou a canção, repetiu ao final a frase: “Ser o que se é”. A seleção dele me fez pensar. É um pensamento simples e complexo ao mesmo tempo, o mais central e amplo da canção, que pode ocorrer nas mais altas mentes das mais altas poesia e filosofia ou na cabeça de um adolescente sentado na cama de baixo de um beliche. O adolescente que eu era a escreveu antecedendo o pensamento. Seria isso poesia? Eu estava falando de mim mesmo, não apenas do eu-narrador da canção, mas do eu-compositor, sujeito fora dela. Haveria dentro? Haveria fora? Eu não tinha noção do quanto estava falando de mim mesmo, dentro e fora. Píndaro escreveu e Nietzsche, entre muitos outros, adotou o “torna-te aquilo que és”. Ser só e nunca sofrer, brilhar quase sem querer, deixar ser o que se é. Quando leio isso agora, me parece um projeto de vida. Quis ir além, tentei, tentei e cheguei lá. Lá onde? Onde já estava, meu caro João Simões. 
No plano formal, que tanto eu quis transcender, descobri depois de muitas e variadas experiências que o cerne também já estava lá. Rigor, profundidade, clareza, concisão, pureza, leveza e melancolia, entre outras coisas. Penso que se há uma feição de canção que possa ser imediatamente identificada como minha, é a de Estrela, estrela. Com o tempo, seus acordes básicos da canção popular foram sendo combinados com a abertura das afinações preparadas e a estranheza das dissonâncias na busca de criar um conjunto de canções que passasse ao largo das soluções da bossa nova, diluídas pelo uso excessivo e datadas pelo peso da própria importância, bem como ao largo de outros procedimentos instituídos. Em 1981 eu ainda não lera A filosofia da composição, de Poe, mas a ideia de que a estrela também me via ali com aquela canção estava adequadamente colocada no final, uma vez que nenhuma imagem até então poderia sobrepujá-la, comprometendo o crescimento dos versos até o final. Muitas são as minhas canções filhas de Estrela, estrela, de melodias e harmonias lineares e circulares, com (ou para) letras que não se repetem e pensamentos que se desenvolvem até seu ponto alto: Satolep, Ramilonga, Astronauta lírico, Deixando o pago, Último pedido, etc. Até meu gosto por versionar Bob Dylan ou meu foco na milonga mântrica têm essa filiação. Tudo quase sem querer.

Veja aqui um clipe da novela com Estrela, Estrela


Vitor Hugo Alves Ramil, mais conhecido como Vitor Ramil, é compositor, cantor e escritor de Pelotas. Começou sua carreira nos anos 80. Na música, lançou onze álbuns. É autor dos livros Pequod (1995), A Estética do Frio (2004), Satolep (2008) e A primavera da pontuação (2014).

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