Ensaio

Theodorico, Imperador do Sertão ocupa lugar único na obra de Eduardo Coutinho

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Theodorico, Imperador do Sertão ocupa lugar único na obra de Eduardo Coutinho Cena de "Theodorico, Imperador do Sertão", de Eduardo Coutinho, Reprodução

O coronelismo exposto em rede nacional

Acostumado a conversar com pessoas do povo, e, a partir desses encontros, extrair perfis, histórias de vida, modos de pensar, agir e enfrentar as dificuldades cotidianas, foi no meio de gente comum que Eduardo Coutinho sempre buscou as personagens de seus filmes. Menos em Theodorico, Imperador do Sertão. Quarto dos seis documentários dirigidos por Coutinho para o Globo Repórter, realizado e exibido em 1978 – foi ao ar no dia 22 de agosto –, é o único de seus filmes centrado em alguém da classe dominante e em um personagem só: mesmo Cabra Marcado para Morrer, que tem em Elizabeth Teixeira sua força motriz e na sua resistência a razão de ser, ocupa-se do drama dos demais familiares da trabalhadora rural e dos camponeses antigos companheiros de luta de seu marido, João Pedro Teixeira, assassinado a mando de um latifundiário. Theodorico, não: todas as outras pessoas que aparecem na tela só estão ali para falar do “major” ou de sua relação com ele. É o perfil de Theodorico Bezerra (1903-1994) – e o modo como ele dita os rumos de quem vive em seu entorno – que interessa, e de mais ninguém.

Coutinho soube da existência de Theodorico por Henfil (1944-1988): foi o cartunista quem lhe sugeriu o personagem, retrato do ainda muito presente coronelismo no nordeste. Latifundiário nascido no Rio Grande do Norte, Theodorico Bezerra envolveu-se com política nos anos 1940: elegeu-se primeiro deputado estadual, em 1946. Na sequência, emendou três mandatos de deputado federal, entre 1951 e 1963, foi vice-governador de seu estado (1963-1966) e novamente deputado federal (1967-1971), tendo pertencido aos quadros da Arena e do PSD. Apesar da alcunha de “major”, jamais passou de cabo, tendo servido ao exército entre 1923 e 1924. 

Na juventude, foi comerciante, vendendo de tudo, até que prosperou com o comércio de couro. Investiu em terras, chegando a possuir quatro fazendas, sendo que a maior delas, a Irapuru, estendia-se por 14 hectares, onde Theodorico plantava especialmente algodão e viviam famílias de agricultores de quem o “major” exigia uma série infindável de deveres cobrados de maneira abusiva: estampados em cartazes com letras garrafais expostos por toda a propriedade e dizeres pintados nas fachadas e até mesmo dentro das casas. A exploração dos pobres agricultores na fazenda de Theodorico chega a um nível tal de parasitismo que pode facilmente ser enquadrada na categoria de trabalho análogo à escravidão.

As primeiras imagens do filme mostram Theodorico caminhando em uma plantação. Em seguida, sentado na varanda da casa na fazenda, ele se apresenta como um homem da agricultura, do campo. E conta como recebeu o convite para ser tema do documentário global: “Me falaram lá em Natal … Perguntando se eu aceitava ser televisionado. Eu estranhei porque não era um homem da cultura, da vaidade, nunca escrevi livro, mas aceitei, fiquei satisfeito. E vieram me televisionar. Tô gostando porque eles estão televisionando dentro da simplicidade, televisionando gado, agricultura, conversando com os moradores e também me fazendo certas perguntas, mas tudo dentro de uma simplicidade e que todos nós gostamos de uma atenção. Não há quem não goste de agrado”. Theodorico pensa o fato de ser objeto de um documentário como um afago no seu ego, um sinal de adesão, aceitação total. Estrela do filme, parece não perceber que está sob escrutínio – embora, como se verá em seguida, tome certas precauções para deter o controle sobre a narrativa. 

Em seguida, conta que comprou sua primeira fazenda em 1928, por 12 contos de réis, e diz que seu princípio de viver é “acordar cedo, andar ligeiro e conversar pouco para não perder tempo”. Em outro momento, regando as plantas em seu apartamento, diz que gosta de quatro coisas: das flores, dos pássaros, da música e das meninas – das bonitas, esclarece. Em um cômodo, vemos as paredes tomadas por fotos de mulheres nuas, que Theodorico mostra às câmeras. Ele vai apontando para algumas em particular e dizendo o que sente ao vê-las, descrevendo posições em que se encontram, poses, partes dos corpos: “É bem agradável isso, quem é que não gosta?”. Coutinho, então, pergunta ao major o que ele acha de um homem poder ter várias mulheres, algo aparentemente comum em sua fazenda, e o contrário não ser visto com a mesma naturalidade. Theodorico não titubeia: “Ah, a natureza é assim (…). Veja você que eu crio galinha, eu tenho dez galinha num chiqueiro e só tenho um galo. Eu tenho vinte vacas no curral e tenho um touro … Tá claro que um homem dá conta de oito mulheres”. Diz isso sem nenhum constrangimento, com naturalidade espantosa.

A despeito de seu patrimônio e da sua longa trajetória política, Theodorico jura que não tem poder. “Eu nunca escrevi um livro, nunca fiz um verso, eu não sei pintar, o que eu sei é administrar”. Seu orgulho é a Irapuru e ele trata de demonstrar isso da forma mais extravagante, em um grande evento, uma festa que, para ele, tem contornos quase cívicos. “Eu faço uma vaquejada. (…) Porque o que eu tenho pra desfilar é boi. Nos militares, tem o Sete de Setembro; em novembro, os desfiles de escola; e eu, na minha festa, os boi”. A propriedade tem até bandeira, que é erguida por moças fardadas de vaqueiro que vão na linha de frente no desfile. Mais atrás, Theodorico, fardado, montado num cavalo branco. Também desfilam mulheres e homens exibindo suas atividades. E, por fim, crianças e idosos. “Os meninos que vivem de pegar preá pra comer e vender, essas coisas, (…) porque é a profissão dele; aos velhos, depois dos 70 anos, eles desfilam com enxada nas costas, mostrando como é que ele vive na agricultura”. Sim, o major acabou de confessar que em sua estimada fazenda há trabalho infantil, crianças que precisam caçar preás para se alimentar e exploração de idosos, que são obrigados a trabalhar duro mesmo em idade avançada.                 

Todos os moradores da fazenda Irapuru têm um quadro pendurado na sala de casa com regras e recomendações para se viver na propriedade. Precisam também decorar o que está escrito em uma caderneta que lhes é entregue. Os rígidos regulamentos decretados pelo major rendem uma das sequências mais emblemáticas do projeto de Coutinho neste filme. Dentro da casa de um dos moradores, de pé, à frente, está Theodorico, com um dos quadros com sua “legislação” logo atrás. Mais ao fundo, a família que mora ali. Theodorico aponta para os dizeres e lê: “Do morador que não cumprir fielmente esse regulamento, será tomado o roçado e terá o prazo de 24 horas para desocupar a casa e ir embora dessa propriedade. A riqueza pertence a quem trabalha. Se você não trabalha, viverá sempre pobre”. Coutinho e seu operador de câmera, Dib Lufti, contudo, fazem pequenas intervenções que problematizam a cena. 

Enquanto Theodorico dizia essas palavras, a câmera sutilmente aproximou seu foco do cartaz, o suficiente para podermos ver, em primeiro plano, a mão do major, com seu dedo indicador apontando para o texto que ele lê no cartaz e, logo atrás, o rosto de um dos moradores da casa, o patriarca da família, que não tira o olho de Theodorico: a expressão do homem é de alguém que presta atenção em tudo o que é dito, em toda a movimentação, que não quer perder nada. Claramente o homem está tenso com a presença do dono da propriedade, repetindo as suas imposições para se viver ali, e a equipe de filmagem registrando a conversa na casinha acanhada que ele habita com a família. Em todas as conversas com os moradores da fazenda, fica nítido que Theodorico dá um jeito de estar sempre presente, não deixando que Coutinho tenha livre acesso aos funcionários e então o major possa perder o controle do que é dito. (Em apenas uma sequência do filme o diretor vai conseguir desvencilhar-se do latifundiário e conversar livremente com os trabalhadores, extraindo algumas revelações).             

O major, que procura passar a sensação de satisfação de quem vive e trabalha em sua propriedade, também garante que preza pela formação educacional dos pequenos moradores de Irapuru. Esclarece que todos os pais têm que enviar seus filhos à escola para que aprendam a ler e escrever, para que “possam ter uma vida mais feliz”. No entanto, desistiu de enviar filhos de moradores para estudar em cidades maiores, como Natal e Caicó: “Quando eles se formavam, ficavam por lá mesmo. Então eu vi que que não é vantagem pagar estudo pra eles tirar diploma”. O que Theodorico não diz é que não há interesse dele em manter analfabetos, que então não tinham direito ao voto – isso só mudaria em 1985, através da Emenda Constitucional nº 25 –, nem financiar mão-de-obra que possa ser explorada por outros. 

Embora mais adiante ele seja bem explícito em relação a isso: em uma de suas manifestações, através do sistema de alto-falantes da fazenda, determina que “nessa propriedade todos são obrigados a ser eleitor. E para tirar o título de eleitor, eu mesmo é que quero tirar a fotografia de vocês. Pra quê? Pra você olhar pra mim e eu ver vocês”. A Irapuru, que tem feira, sistema de comunicação, cemitério, igreja, também tem sede partidária: um sub-diretório do Partido Social Democrático (PSD). Ali, Theodorico recebe pessoas, mantém conversas com correligionários e também um centro de alistamento eleitoral. Ele se encarrega de todo o processo: “O título será entregue por mim para vocês. Porque eu só quero que more nessa propriedade aquele que for eleitor. (…) Digo sempre e continuarei a dizer: a única coisa que eu posso precisar de você é o seu voto. (…) Você não tem automóvel pra me emprestar, não tem dinheiro pra me emprestar, não tem uma vaca pra me dar pra eu tirar leite, um cavalo pra andar, mas o voto você tem. Se esse voto você não me dá, por quê que eu quero conversar com vocês ou perder tempo”. 

Um aspecto a ser ressaltado nessa sequência é o “duelo de câmeras”: temos um close da câmera de Lufti em Theodorico empunhando sua máquina fotográfica – portanto, um apontando para o outro seu instrumento de trabalho. A câmera como instrumento discursivo, revelador de verdades, e também como instrumento de poder. Trata-se de uma engenhosa maneira de resumir o que vemos durante todo este documentário televisivo de Eduardo Coutinho: a disputa de narrativas. Theodorico tenta impor livremente as suas “verdades”, enquanto Coutinho e Lufti tentam fazer com que o espectador perceba que as histórias que o major conta não são exatamente o que ocorre de fato. É uma queda de braço permanente, mas velada, que permeia todo o filme. Theodorico tenta divulgar, em frente à câmera de televisão, uma imensa agenda positiva de si mesmo, escondendo seus vários malfeitos, enquanto a dupla Coutinho/Lufti trabalha para jogar luz em cima deles. Essa sequência do alistamento eleitoral começa com a câmera de Dib registrando Theodorico fotografando os pobres moradores de sua propriedade para tirar o título eleitoral: vemos suas expressões tensas, acuadas, intimidadas com a operação.     

Na outra sequência em que se dá esse embate, o cenário é o seguinte: Theodorico está dentro de um terreno onde fica a casa da família de um de seus trabalhadores. O discurso do major seria constrangedor para qualquer um, menos para ele. Ele quer convencer a audiência de que o nível de satisfação de quem vive ali, naquelas condições, é o mais alto possível. Theodorico exulta, enquanto a câmera de Luft vai focando os pés sujos e machucados dos trabalhadores, de chinelos: “Nós estamos aqui numa propriedade. Veja essa casa, como é uma casa modesta, uma casa simples, mas como o homem que mora nesta casa sente-se satisfeito. Tanto é assim que você vê aqui tudo tranquilo. (…) Eu digo sempre: quem planta e cria tem alegria. (…) É a vida do campo! Aqui não tem doença, não tem pulga de bicho, não tem carrapato, não dá doença nenhuma. Aqui só se morre de velho”. 

Enquanto Theodorico faz seu discurso, vemos em um dado momento ele sacar sua câmera – e Luft responder movimentando a sua. Theodorico em close, preenchendo a tela, com sua câmera apontando para frente, posicionada para tirar fotos, frente a frente com a câmera de Lufti. Então, o operador de Coutinho foi virando a câmera para o lado, saindo do major e mostrando os integrantes da família de agricultores perfilados. Enquanto o major bate retratos dessas pessoas – ele está do lado esquerdo da tela e vai-se movendo para a direita –, Lufti vai fazendo o movimento contrário, flagrando suas expressões enquanto Theodorico tenta, de maneira desajeitada, poetizar a vida que se vive ali. O contentamento absoluto que o major garante existir no lugar definitivamente não é o que a câmera de Lufti registra: as expressões desanimadas dos trabalhadores demonstram tudo, menos a alegria transbordante contida no discurso do major. A família de agricultores mais parece um grupo de pobres animais acuados esperando na fila o momento do abate.         

Animal político, Theodorico, que sobe ao palanque com o governador Tarcísio Maia, ostenta, orgulhoso, retratos de encontros com Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, e dialoga com gente de qualquer espectro ideológico, é partidário da flexibilidade absoluta: adapta-se a qualquer situação. Para o major, “a política é feita servindo. Na política, não se diz não, só tem que se dizer sim”. E o povo? Esse é tratado de forma mais paternalista possível. Em sua fala dominical, através do sistema de som da propriedade, ele diz aos trabalhadores que tudo o que fez ali até hoje foi “pra lhes servir”: “Açudes, que dá água pra vocês, dá o peixe, temos tudo de graça, pra você plantar a batata, o arroz, o feijão, o milho, tudo sem pagar nada. O peixe que tem nos açudes, tem peixe de toda qualidade. Tudo de vocês, porque eu nunca vendi um peixe, é sempre para vocês”. Há um corte e, logo em seguida, vemos, em uma mesa, um ex-deputado e fazendeiro, Lauro Arruda. Ele entrega que Theodorico construiu os açudes de sua propriedade utilizando sua influência política como deputado federal – ou seja, beneficiando-se de recursos públicos. 

Na sequência, ouvimos Theodorico fazer uma revelação desconcertante: ele é partidário do comunismo. Diz isso publicamente, sem nenhum receio, em plena ditadura militar, para uma multidão ouvir. Ele é favorável, pelo menos, ao que entende ser o comunismo – ou o que quer que as pessoas compreendam como tal. “Olhe, tanto eu acho que o comunismo é necessário que nós aqui somos aproximados ao socialismo. Tanto que as vaca nos pertence e o leite é deles. Eles aqui têm assistência e isso é que nós procuramos encaminhar esse povo, através da nossa mentalidade”. O regime comunista defendido por Theodorico deve ser o único caso na história em que os trabalhadores do povo nem detém os meios de produção, nem são donos das próprias terras, e ainda têm que obedecer aos caprichos de um latifundiário.     

Raras vezes mostrou-se na televisão brasileira um retrato tão direto e espontâneo de um profissional da política como em Theodorico, Imperador do Sertão. Assédio moral, formação de curral eleitoral, trabalho precarizado, exploração de crianças e idosos, fraude com dinheiro público, misoginia: tudo isso ainda aparece hoje com lamentável frequência nos noticiários. Eduardo Coutinho e seu câmera, Dib Lufti, porém, mostraram na emissora de televisão hegemônica do país em plena ditadura. De quebra, Coutinho deu mais um passo firme em seu projeto de documentário participativo que mais tarde seria chamado de cinema de conversa – com o charme adicional de explicitar o embate entre cineasta e personagem, utilizando a estratégia de dar ao retratado a ilusão do controle total sobre o discurso. Não é pouca coisa, definitivamente.   


José Fernando Cardoso é Jornalista, Servidor Concursado da FM Cultura (107,7), Mestrando em Letras pelo PPG UFGRS, com dissertação sobre Eduardo Coutinho: O oprimido fala, o opressor se revela: Oumarou Ganda pelas lentes de Rouch, Theodorico Bezerra sob o olhar de Coutinho

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