Ensaio

Todo mundo tem alguma dúvida de ortografia

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Todo mundo tem alguma dúvida de ortografia Foto: Pexels/Pixabay

Dia desses fui enviar uma mensagem de texto para um amigo sobre uma dúvida na consulta do extrato no aplicativo do banco e me surgiu outra dúvida, no momento em que digitava a mensagem: como se escreve “extrato”? Seria com “s” ou com “x”?  Ambas as formas pareciam corretas – tanto extrato como estrato. Isso porque ambas são palavras registradas em língua portuguesa; cada uma, no entanto, com um significado distinto. “Estrato” significa “camada” ou “faixa”; daí termos estrato social, pesquisa estratificada, etc. “Extrato” está relacionada ao verbo “extrair”; por isso dizemos extrato de tomate (suco extraído do tomate) ou extrato bancário (o documento que extraímos do banco).

Todos nós temos algumas questões mal resolvidas com a ortografia, imagino. Outras palavras que tenho de pensar duas vezes antes de escrever são “extensão” e “estender”. Tenho de lembrar que, no substantivo, usamos a letra “x” e, no verbo, a letra “s”. Ambas as letras representam exatamente o mesmíssimo som nessas palavras, o som [s]. Também tenho certa dificuldade com a palavra “licença” (já me peguei tentando escrever “licensa”, com “s”). Novamente nesse caso, tanto “ç” como “s” representam o mesmo som, [s]. Daí por que faço confusão, provavelmente. De maneira geral, creio que todos já tiveram dúvidas com relação à grafia de uma ou outra palavra. E isso acontece, em parte, porque a ortografia do português é repleta de exceções.  Quer dizer, nosso sistema ortográfico segue diferentes tipos de princípios, o que acaba gerando algumas contradições (como escrever “extensão” com “x”, mas “estender” com “s”).

Para começar a discutir um sistema ortográfico qualquer, precisamos primeiramente entender que a escrita é muito recente em relação à fala. A escrita é uma tecnologia, uma invenção humana que foi criada diversas vezes, em diferentes lugares, por povos diversos e em diferentes momentos da nossa história. Sem considerar os registros pictóricos e as pinturas rupestres, talvez possamos ligar a origem mais direta da nossa escrita aos primeiros registros da chamada escrita cuneiforme, desenvolvida pelos sumérios há cerca de 5.000 anos. A fala, ao contrário, é natural para o ser humano e é muito mais antiga do que a escrita, tendo aparecido na nossa história provavelmente há mais de 80.000 anos.

Nossa escrita alfabética, tal como a conhecemos hoje (com as letras de A a Z) e que utilizamos em língua portuguesa, é ainda muito mais recente. Ela é baseada numa versão moderna do alfabeto latino, que teve origem num alfabeto utilizado pelos romanos desde o século 7 a.C. Esse alfabeto, por sua vez, derivou-se do alfabeto etrusco, que veio de uma adaptação do alfabeto grego, que (não perca a conta) foi derivado do alfabeto fenício. O fato é que a escrita não é natural à nossa espécie; é, ao contrário, uma invenção recente na nossa história, que inclusive não está presente em todas as comunidades humanas. Estima-se que hoje sejam faladas entre 5.000 e 7.000 línguas no mundo. Apenas cerca de 200 delas têm uma cultura letrada, com um sistema ortográfico e com literatura escrita. 

Voltando ao nosso alfabeto e às nossas regras de ortografia… Muitas das irregularidades em nossa ortografia vêm do fato de que o sistema alfabético que utilizamos não foi criado para representar os sons da língua portuguesa. Nosso sistema alfabético remonta ao alfabeto desenvolvido pelos fenícios – que, como vimos, foi mais tarde modificado pelos gregos e depois pelos romanos. Daí por que ele não reflete de maneira biunívoca as relações entre som e letra – ou seja, não há uma relação de um para um entre som e grafema. Por vezes uma letra pode representar mais de um som (pense na letra “s”, que à vezes representa o som de [z] como em “casamento” e às vezes representa o som de [s] como em “sabedoria”) ao passo que um som, por sua vez, pode ser representado por mais de uma letra (pense no som que pode ser representado tanto pela letra “x”, como em “xícara”, pelo dígrafo “ch”, como em “churrasco”, ou pelo dígrafo “sh” como em “shopping”).

Além da dificuldade para representar os sons da língua tal como é falada contemporaneamente, a escrita tem um caráter histórico e é muito menos suscetível a mudanças do que a fala. Daí, por exemplo, por que grafamos “seção”, “sessão” e “cessão” de maneira tão diferente. As três palavras são pronunciadas exatamente da mesma forma em português. E as três vêm do latim. No entanto, a primeira vem de sectionis (que significa “corte”), a segunda de sessionis (que significa “ato de sentar-se, assento”) e a terceira vem da palavra latina cessionis (que significa “ação de ceder, transferência”). Ou seja, às vezes parece que precisamos saber a origem etimológica das palavras para descobrir como e por que devemos grafá-las assim ou assado – e isso não é tarefa simples. Por vezes nem a origem das palavras elucida sua grafia. Aquelas duas palavras que estão no rol de palavras que me trazem dificuldade de ortografia têm justamente esse problema: tanto “extensão” como “estender” têm a mesma origem latina. Contudo, “estender” chegou ao português pelo latim vulgar, e as palavras do latim vulgar que tinham a letra “x” antes de consoante acabaram passando ao português com um “s”. Por outro lado, “extensão” passou a fazer parte do vocabulário da língua portuguesa apenas no século 18, vindo diretamente de textos do latim clássico; por isso, sua grafia foi mantida mais fiel à grafia original, ou seja, com a letra “x”. 

Nossa ortografia é complicada por ter em sua lógica de funcionamento mais de um critério. Há o critério etimológico de representar a grafia “original” das palavras (como “extensão” ou “shopping”, por exemplo) e também um critério muitas vezes antagônico, o critério fonético, que privilegia a representação mais ou menos fiel aos sons da fala (como “estender” ou “xampu”, por exemplo). É por causa desse conflito entre os dois critérios que ficamos em dúvida na grafia de certas palavras. Se “extensão” e “shopping” seguissem o critério fonético, possivelmente escreveríamos essas palavras como “estensão” e “xopim”; por outro lado, se “estender” e “xampu” seguissem o critério etimológico, possivelmente estaríamos escrevendo “extender” e “shampoo”. 

Para saber mais:

Se a discussão pareceu interessante, recomendo a leitura do livro Mitos de linguagem (Parábola Editorial, 2017), em que expando (por que não “espando”?) e aprofundo a conversa. Para saber mais sobre sistemas de escrita, os desafios da alfabetização e sobre a história da escrita e do alfabeto, recomendo os livros Leitura, ortografia e fonologia (Ática, 1981), Alfabetização e linguística (Scipione, 2000) e Escrita e alfabetização (Contexto, 2003). São leituras claras e fluidas sobre a ortografia do português e sobre sistemas de escrita e seu aprendizado. 


Gabriel de Ávila Othero é  professor de Linguística do Instituto de Letras da UFRGS.

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