Ensaio

Uma coisa que pulsa

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Uma coisa que pulsa

Porto Alegre ganha um presente excepcional: uma exposição de artes, sediada no Museu da UFRGS, digna de palcos internacionais. O tema? Arte & loucura. O projeto? Re-existência, memória e arte: 30 anos da oficina de criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro. O título? Uma coisa que pulsa.   

Mas e a origem da Oficina? Um sonho da psicóloga Bárbara Neubarth, quando foi trabalhar no São Pedro no início da década de 90. Foi uma ideia inspirada nos trabalhos da médica psiquiatra Nise da Silveira, no início do século XX no Rio de Janeiro, pioneira na utilização da arte como recurso terapêutico e dispositivo de saúde. A oficina integra a memória do Hospital Psiquiátrico São Pedro – HPSP, e oferece um espaço para as pessoas moradoras ou ambulatoriais do hospital expressarem-se de forma livre, através do desenho, pintura, escrita, colagem, bordado, costura, do modelar e esculpir, encontrando seu núcleo criador. Reabilitação psicossocial.      

A presente exposição no espaço do Museu mostra essa riqueza de conteúdo e recursos – essa produção através de palavras e imagens, pinturas, tintas, pincéis, lápis, canetas, tapeçarias, bordados, linhas, agulhas, tecidos, recortes, escrita, papéis, a partir de materiais disponibilizados na oficina. A subjetividade brota: linguagem e imagens do inconsciente. Uma diversidade de obras, materiais e gêneros, organizados em uma estética fácil de percorrer, em estantes e painéis ou ainda pendurados pelas paredes. Em expositores envidraçados sobre cavaletes, livros de pacientes – de Lydia e de Claudina – e de técnicos, documentos, fotos, folhetos, escritos, poesia. Enquanto isso, duas TVs exibem vídeos constantes, documentários, entrevistas, conversas, imagens interessantes dos próprios artistas em seus processos criativos. Houve assessoria de estudantes de museologia. Gentis e treinadas mediadoras guiam e ajudam os visitantes, com informações e esclarecimentos.     

Os loucos são como beija-flores. Nunca pousam, ficam a dois metros do chão – frase exposta de Arthur Bispo do Rosário.    

Outra: Queremos uma sociedade sem manicômios e sem práticas manicomiais alguma, inscrita em um mural de tecido pintado por Solange Gonçalves, a ‘Sol’, denominado ‘Contenção manicomial’. Um ponto marcante são as “Vestes falantes”, também da Sol, espécie de roupões ou quimonos interativos, que se podem vestir, e cuja foto ilustra esse texto. Sensorial experiência: vestir as palavras e traços e pinturas da Sol.   



Natália e Luzia e suas casas; casas do afeto? da fantasia? da carência? do desejo? As batas bordadas de Arminda. As originais esculturas em cerâmica de Faifer Gonçalves.  De William Cardoso e Cristiane Santos, obra pandêmica: As mil faces …, miniaturas de cabeças, esculpidas em argila, que lembram os guerreiros do exército de terracota do imperador chinês Shi Huang.  Vamos parar por aqui com os spoilers. 



A exposição segue berta à visitação até 7 de julho. A curadoria é de Bárbara Neubarth, Blanca Brites, Mário Eugênio Saretta, Tatiane Patrícia da Silva e Vanessa Aquino. 

Artistas expositores, alguns já falecidos: Luiz Guides – que já expôs no MARGS e na Fundação Chico Lisboa -, Natália Leite, Solange Gonçalves, Luzia Soares, Arminda Nagel, Frontino Pereira, Romeu Figueró, Cenilda Ribeiro, Faifer Gonçalves, Lydia Francisconi, Claudina Pereira, Madalena Souza, entre outros. 

Todos resgatam suas potências de sujeitos singulares, apesar de percursos de exclusão e isolamento. Imenso valor terapêutico. Nessa exposição, não somente temos uma coisa que pulsa: tudo pulsa. O saber do inconsciente, os corações, as crenças, as cores, as formas, as linhas de bordar, os simbolismos, mas sobretudo a mente das pessoas internadas/moradoras e as emoções dos visitantes desse espaço criativo. Pulsa a imaginação, essa senhora que se constitui na forma mais elevada da vida psíquica e na única organização da consciência inteiramente livre – a ‘louca da casa’ conforme Rosa Montero. Pulsa o desejo. 

Uma mostra que conscientiza, critica, desassossega, traz estranhamentos, alívio, sensações, identificações. Mexe com nossa alma. 

Deixo aqui um poema de minha autoria, escrito após participação nos seminários Vidas de fora e visita à exposição Eu sou você – no HPSP: 

nem sei meu nome

que dia é hoje?

               eu sou você

 danço pinto desenho 

                escrevo bordo 

na torrente de insensato rio

traço tinta cor tecido feijão 

linha pincel agulha sopão  

                  pico papel 

                  condenso em torpor 

sou carne angustiada

viajo no tempo da margem 

visito o passado deserto 

desancorada estou desrazão 

águas da desmemória me navegam 

                         volátil identidade  

               de mim vou embora

               me torno desmim

recomponho estilhaços

               alcanço imagens habito sons

faço história na diferença

tormentosa tatuagem

você pode ser eu

minha vida de dentro

              vivida pelo eu de fora

A arte existe porque a vida não basta, disse Ferreira Gullar. A medicação não basta, o confinamento não basta, o tratamento psiquiátrico não basta. A mente, atormentada ou distorcida, delirante ou dissociada, cria arte. Recria-se e voa! Tapete voa-dor… para longe. 

Atentem, porto-alegrenses: tem magia no Museu da UFRGS!


Berenice Sica Lamas é psicóloga, escritora e oficineira.

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