Ensaio

Velhice – Texto 2: Eu velha – no mundo digital

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Velhice – Texto 2: Eu velha – no mundo digital Foto: Freepik
Velhice é uma série publicada na Parêntese. Todos os textos estão reunidos neste link.

No marco espaço-temporal, em que se imagina o virtual, acontecimentos e declarações convivem em um grande arquivo. Ali, a notícia prescinde dos prazos essenciais para o trajeto jornalístico da criação à perda de validade. As coisas replicam na Internet, onde não há limites para a descrição, os detalhes, nem prazo para expirar, nem para transformá-las em nada, ou, se tivessem sido impressas, em papel jogado no lixo para reciclagem. 

Nos textos que vão se suceder, em fragmentos, o objetivo é efetuar uma compreensão da velhice feminina no universo das notícias ou de peças publicitárias sobre o envelhecer, que circularam, circulam e continuam circulando ininterruptamente no mundo digital. Ali, o envelhecer não está ligado a um processo de produção ou de vida, do nascimento à morte. No entanto, o que foi dito e escrito em dispositivos informáticos de comunicação fornece pistas para uma investigação sobre o mundo da vida, antes de que um bug ou a falta de espaço nos servidores destrua essa incomensurável atualidade informativa.  

A questão posta para o buscador é a palavra-chave “velha”. De entrada, uma revista online de literatura oferece 20 palavras para enriquecer o vocabulário e a primeira delas é “velho” [somente no masculino]. Onde a palavra aparece, aconselha o editor, “tente encaixar a palavra antigo”. Eliane Brum não concorda. No dia 08/08/2022, a jornalista foi replicada pelo site 50emais quando exigiu “Me chamem de velha”, no fragmento publicado pela revista Época, seguido da explicação “quando chegar a minha hora”. No limiar dos 50, ela escreveu:

Na semana passada, sugeri a uma pessoa próxima que trocasse a palavra “idosa” por “velha” em um texto. E fui informada de que era impossível, porque as pessoas sobre as quais ela escrevia se recusavam a ser chamadas de “velhas”; só aceitavam ser “idosas”. Pensei: “roubaram a velhice”. As palavras escolhidas – e mais ainda as que escapam – dizem muito, como Freud já nos alertou há mais de um século. (…). Acho que “idoso” é uma palavra “fotoshopada” – ou talvez um lifting completo na palavra “velho”. E saio aqui em defesa do “velho” – a palavra e o ser/estar de um tempo que, se tivermos sorte, chegará para todos. (…). Tenho anunciado a amigos e familiares que, se alguém me disser, em um futuro não tão distante, que estou na “melhor idade”, vou romper meu pacto pessoal de não violência. (…).  

Com as postagens exibidas a seguir pode-se organizar dois segmentos de mulheres velhas e deles extrair um pequeno grupo que, por sua relevância no cotidiano da vida privada, atende os critérios jornalísticos de noticiabilidade. Anúncios publicitários e avatares programados para venda de modelos de beleza atravessam os dois segmentos. No primeiro segmento estão os perfis de mulheres empreendedoras pobres. No outro eixo, as mulheres que se diferenciam pela fama e/ou poder aquisitivo. Em sua totalidade, os posts escorregam do ativismo e do empreendedorismo aos campos da política, da educação e dos negócios da beleza. 

Nas próximas linhas estão representadas as mulheres que associam velhice ao ativismo comunitário, ao trabalho e à educação tardia. São pobres e construídas como notícia quando ultrapassam os limites da normalidade. A ação que protagonizam ganha destaque nos títulos das narrativas ou nas legendas de imagens que revelam a idade avançada das protagonistas.  

Lula, em campanha no Nordeste, posa com dona Buruca, palavra sublinhada pela linha sinuosa vermelha do word como não existente no léxico brasileiro, e identificada na legenda da imagem como uma “mulher de 80 anos” ligada à luta pelas cisternas de Pernambuco. Rolando a barra do dispositivo, o curta de animação exibe simultaneamente à história de dona Buruca um avatar com cabelo grisalho, traje esportivo na cor rosa antigo, corpo erguido em forma de ponte, sustentado no alto com a força do abdômen, pés plantados e braços estirados no sofá. Há muita gordura acumulada no abdômen da modelo virtual, que some num átimo, enquanto as setas à direita e à esquerda mudam de direção para anunciar os benefícios de 28 dias de ioga no sofá para seniores.   

Dona Buruca e a sua luta exemplar, assim como todas as lideranças comunitárias, não são associadas nos títulos das mídias à militância nas comunidades. A proeminência da idade fortalece o que, sob o crivo midiático, é a exceção forjada pela cultura do sensacional que, assim, reduz a ausência dos políticos na vida dura das margens. Colado à dona Buruca e Lula aparece um post da categoria dos “no que você está pensando”, de uma amiga de uma amiga minha contando que padece de um sintoma da velhice: sai para caminhar de manhã com um saquinho de supermercado vazio para colher mudas ou ganhá-las de alguma vizinha que flagra praticando jardinagem. O ativismo social e a jardinagem nucleiam acontecimentos do cotidiano do envelhecer de muitas mulheres que têm estado silenciosas sobre isso e são reféns de estereótipos que aprisionam a velhice em mandamentos e deveres do âmbito doméstico cristalizados na sociedade. 

Maria Cardoso viralizou em fevereiro de 2021 quando o currículo dela foi entregue em um frigorífico na cidade de Promissão, interior de São Paulo. A família fez o documento como forma de brincadeira, que se espalhou nas redes e ganhou espaço na mídia. Ela queria trabalhar para comprar “meus ‘vinhozinhos’, minha ‘carninha’, para não depender só da filha, ajudar um pouco”, disse a bisneta Pâmela Cristina Matias Gomes. Maria tem 29 netos, 35 bisnetos, 20 tataranetos e mora com a filha de 80 anos. 

Uma companhia de vinho soube da história, gostou e chamou-a para fazer ações pontuais de marketing, com participações em vídeos e fotos de divulgação da empresa. Um ano depois, o que parecia impossível está sendo comemorado na ativa, e a família garante que Maria tem passe livre para parar a hora que quiser. “Com o emprego, além da ocupação e da brincadeira, ela conseguiu dar uma reformada na casa. Ela só se mantinha com a aposentadoria. Agora, com o dinheiro que ganha, já trocou o sofá, trocou a geladeira, deu uma renovada no guarda-roupa, porque ela é bem vaidosa. Ela está toda renovada e bem feliz”, contou a bisneta Pâmela Cristina Matias Gomes. Foi Pâmela que enviou o currículo da bisavó a um frigorífico onde outros membros da família trabalham. Juliana Araújo recebeu o documento e fez uma postagem em suas redes celebrando a disposição de Maria. 

Sônia Teresinha dos Santos, 71 anos, foi incorporada à categoria de matéria informativa por ser uma outra exceção. Ela não pode fazer o que a maioria das pessoas faz na infância. “Sempre quis estudar, mas nunca tive oportunidade”, disse. Quando o pedido dela chegou ao conhecimento do secretário de educação da cidade, ‘olha, tem uma senhora de 71 anos que quer fazer o primeiro ano, como a gente procede?’, ele, Edjor Borges não titubeou: “Libera, faz o que tiver que fazer, não tem como não ficar feliz com esse tipo de coisa”. 

Sônia mora na zona rural de São Gabriel. Acorda cedo, antes da 6h, para cuidar da casa enquanto espera a hora mais aguardada do dia: ir para a escola. “Quando eu era criança, a gente tinha que trabalhar pra ajudar os irmãos, que era um monte. Depois agarrei casar, me enchi de filho. Eu tive cinco filhos homens e duas gurias. E sempre trabalhando pra ajudar a criar eles, pra ser uma pessoa hoje”, conta. Silene Moreira Duarte, professora de Sônia, disse que a presença de Sônia é motivação para o trabalho dela e o aprendizado dos alunos. “Isso veio pra fortalecer, a gente ficou desmotivado [na pandemia], os alunos em casa com bastante dificuldade. Aí aparece essa pessoa especial na nossa vida, foi pra dar um salto no meu trabalho”, disse à reportagem do G1. O colega dela, Murilo, 6 anos, concorda com a professora e acrescentou: “Ela é a colega que todo mundo ama. Quando a gente não sabe a folha, ela sabe. Aí eu ajudo ela quando ela se perde, quando eu estou do lado dela”. Depois de tanto esperar, Sônia não pretende desistir no meio do caminho. “Não, não desisto. A gente tem que ir caminhando em frente, né? Se a gente parar, fica até entrevado, não caminha, tem que andar sempre.” 

Marli da Silva mora em Niterói, RJ. Com 63 anos, precisou harmonizar o desejo de seguir os estudos com o trabalho de diarista. O que ganhou nas faxinas cobriu as mensalidades da faculdade. Formou-se em culinária e no dia 24 de junho de 2020 foi homenageada pelo filho. O post de Patrick da Silva, 20 anos, publicado às 7:28 viralizou na rede. “Minha princesa formada em culinária francesa, merece o mundo”. A fotografia do post foi replicada na página (@marli.confeiteira) no Instagram, que tem mais de 11 mil seguidores, 90 publicações com imagens de uma grande variedade de acepipes, doces, tortas, quiches e biscoitos. Paramentada, ou em frente a fogões industriais, a confeiteira oferece serviço de entrega em São Gonçalo e exibe comentários ornamentados por pequenos corações e mãos em sinal de gratidão, além de pedidos para que viabilize delivery para todo o país.  

Uma constelação de estrelas, capturadas lá de cima pelos robôs que selecionam as mulheres na condição de potenciais consumidoras, problematizam o etarismo, que qualifica o desprezo às velhas pela via da identificação com sua condição física e aparência privilegiadas, seja por desejo de consumo para rejuvenescimento e embelezamento ou, em menor escala, buscando um cuidado mais apurado consigo em busca do autoconhecimento e de reconhecer-se em uma fase da vida profícua e de liberdade. 

Dia 20/07/2022, no programa da TV Cultura, Provoca, Tom Zé, artista brasileiro festejado com inúmeros qualificativos no universo musical, senta-se defronte ao entrevistador com uma pasta daquelas separadas por divisões de plástico que abrigam folhas de papel A4 com peças e informações escritas do cotidiano e avisa que além dela trouxe a mulher, dona Cleusa, que é o seu Google, pronta a socorrê-lo nos momentos de lacunas de memória. Caberia naquele ser pulsante e potente altamente criativo mais uma qualificação, esta sugerida por Conexão Literatura, a já mencionada revista online? Ou “velho”, sob a forma de substantivo, seria o vocábulo mais adequado para enquadrá-lo nas faixas etárias próprias da qualidade do ser humano? Yo vieja, responde no lugar dele a socióloga espanhola Anna Freixas, no livro assim intitulado. 

Mitologias do contemporâneo. No Brasil, Rita Lee, Fafá de Belém, Fátima Bernardes e Susana Vieira. No mundo, Madonna. Quase simultaneamente, em agosto, as quatro brasileiras deram demonstrações de que sentem o peso que a cultura deposita nos ombros das mulheres velhas. Em uma peça publicitária de uma empresa de cosméticos, que aborda o combate ao etarismo, Fátima deu voz à mensagem que circula na Internet:

O tempo não para. Será? Ah, para muitas pessoas ele para sim. Quantas carreiras são encerradas? Quantas histórias interrompidas? De uma hora para a outra é como se ficássemos velhas demais. Velhas demais para criar, para mudar, para se aventurar. Eu há muito tempo deixei de ouvir o relógio. Eu casei, tive três filhos, me divorciei, comecei um novo relacionamento, troquei a bancada do maior telejornal do país por um programa matinal. E agora, aos 59, decidi trocar de programa de novo. Sabe por quê? Porque o tempo não me para. Eu sou Fátima Bernardes, tenho 59 anos, e o tempo não me para. Não deixe ele parar você também.

Prestes a completar 80 anos, Susana Vieira, bem de saúde depois de passar maus pedaços internada em uma UTI para tratar sequelas da covid-19, falou sobre amor e sexo em entrevista ao Fantástico. Nunca deixou a vaidade de lado. No hospital teve medo da morte. Não havia se preparado, não tinha terminado o livro que está escrevendo, nem o trabalho na TV. “Eu ainda tinha meus netos, que eu quero ver casar.” 

Eu cheguei à conclusão que eu não desisti do sexo. Eu vi, com felicidade, que eu não esqueci do homem, que eu não esqueci do sexo. Eu ainda tenho uma ilusão, que eu ainda vou ter um homem e, quando eu digo ter um homem, não é ter um casamento. Eu não preciso de um casamento. Mas eu consigo ver que eu ainda tenho interesse por sexo, tenho interesse por um abraço, tenho interesse por um beijo na boca, tenho interesse por ficar bonita. Eu me arrumo e fico me olhando. Ou seja, eu ainda me desejo e fico imaginando que alguém pode me desejar. E eu não posso esquecer e não posso tirar isso da cabeça nem matar, porque eu acho que, se eu matar isso, eu vou matar a essência da Susana Vieira. Ali [no hospital] eu podia ir embora. Eu não estava preparada. Eu tinha que me preparar, ou eu não tinha que ter ficado tão à mercê dessa doença. Tive muito medo, muito medo, porque eu não deixei nada preparado. Porque eu não tinha terminado o meu livro, porque eu não tinha ainda feito um último trabalho na televisão. Eu ainda tinha meus netos, que eu quero ver casar. 

Rita Lee, a rainha do rock, fotografada em uma confortável cadeira de jardim, cigarro entre dois dedos da mão esquerda, mão direita sobre o joelho, franja e cabelos grisalhos moldando a gola alta da malha verde, vaticina, em letras maiúsculas sem complementar a frase de efeito com um texto explicativo: 

Envelhecer é uma merda e é maravilhoso… é uma merda porque você vai virando uma ameixa seca, é maravilhoso porque ameixa ajuda você a cagar pro mundo.

Marina Lima, cantora, 67 anos, em close-up que exibe as linhas de expressão ao redor dos olhos e nas extremidades do amplo sorriso, cabelos negros, olhar fixo no obturador da câmera fotográfica, anuncia no site 50emais – vida adulta inteligente – que depois dos sessenta não sente culpa nenhuma de verter pelo desconhecido. “Sei bem o que fazer.” Durante a abertura de um evento em São Paulo sobre “A revolução da maturidade”, promovido pelo blog Ageless, ela disse isso. Bem antes, aos 43, desafiou os estereótipos de beleza feminina ao posar nua.  

Depois dos 60, não tenho mais culpa nenhuma, sei bem o que quero fazer ou não. E o desconhecido é uma escolha. O mais importante é você viver bem com a sua idade, que lhe é oferecida e que você tem a viver no momento. 

O olimpianismo cultiva, replica e circula ininterruptamente entrevistas de atrizes como Cássia Kiss, cabelos curtos grisalhos, óculos de formato arredondado sem moldura, e Glória Pires. Enquanto a primeira, aos sessenta, dizia que está mais preocupada com o que ocorre em seu interior do que com beleza exterior, não fez, nem pretende submeter-se à cirurgia plástica, Glória Pires, no site Melhor com saúde, dizia em 2020, aos 58 anos, que decidiu adotar uma aparência mais natural, liberando os fios da constante coloração e que usava as redes sociais para inspirar mulheres a deixarem os cabelos brancos.  Madonna, à semelhança de muitas mulheres de idade avançada, sofre por querer viver a vida da maneira que deseja. Em entrevista ao apresentador Jimmy Fallon, para divulgar o novo álbum Finally enough love: 50 number ones, a cantora de 63 anos criticou o etarismo e algumas das frases corriqueiras ouvidas por mulheres com mais de 50 anos. “Ridícula”, “Não aceita a idade”, “Se veste como adolescente”, “Não sabe envelhecer”. O novo projeto de Madonna é uma coletânea de remixes de seus grandes sucessos e celebra um marco inédito conquistado pela artista. A rainha do pop é a única cantora da história que conseguiu colocar 50 músicas no primeiro lugar de uma única lista da Billboard, a “Billboard Dance Club Songs”. O disco acumula parcerias com nomes como Justin Timberlake, Britney Spears e Maluma, e será lançado no próximo dia 19.


Beatriz Marocco é jornalista com doutorado em Jornalismo. Autora de livros e artigos acadêmicos, professora universitária e pesquisadora independente, tem-se dedicado a pensar criticamente as práticas jornalísticas.

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