Ensaio

VG ou a Verdade das Galletas: identidades esfareladas

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VG ou a Verdade das Galletas: identidades esfareladas
Fotos: Eurico Salis

Tudo ainda é tal e qual

E no entanto nada igual

Nós cantamos de verdade

E é sempre outra cidade

Velha 

(Os mais doces bárbaros, Caetano Veloso)

Tenho dois queridos amigos, ainda muito mais amigos entre si, híbridos do mundo urbano e do rural, entre a contemporaneidade e a tradição; são da grande Porto Alegre, de nichos onde nunca deixou de existir uma cultura campeira, de gineteadas, carreiras, carretas, anterior e maior do que o Tradicionalismo e dele generosa hospedeira.

Os caras são divertidos, empulhadores, gozadores de primeira. E por alguma razão de que meu interesse em pilchas de trabalho e desfile não chega nem perto, um só usa botas de uma determinada marca; outro, de outra. Duas fábricas concorrentes, testadas entre gente que não usa bota só pra bonito, nem tem sebo no rim pra comprar um par a cada ano.

E um diz para o outro, assim, frase feita, simulando uma propaganda clássica: “o Verdadeiro Gaúcho usa botas…” (fico devendo a menção, que meus escritos não carregam aquilo que os antigos cruzadores de campo chamavam “merchandising”).

A pilhéria evoluiu ao ponto de os índios se tratarem diretamente por VG. Verdadeiro Gaúcho, de parte a parte, como uma concessão de amigos, porque ambos sabem que o outro não calça as botas que o qualificariam totalmente como tal. 

Adotei isso, do VG, porque economiza muitas páginas, como todo humor inteligente. Afinal, não é essa uma grande questão dos cultores do gauchismo, de qualquer pelagem? Quem era ou foi o VG? Eu? Um tio meu lá de fora? Os peões que eu via nas férias no campo não sei de quem? O da literatura, o das guerras gauchas, o dos cronistas do século XIX?

Tentando ser mais sucinto do que o meu costume, essa busca e disputa da legitimidade entre apaixonados por uma mesma referência cultural é bem capaz de ser a parte mais chata desse universo todo que se inflama e bruxuleia a cada setembro… (bueno, talvez comparável a certos “declamadores”). Para mim, respeitoso da Alta Filosofia, o único lugar onde a busca da Verdade é coisa séria é a receita do mocotó. Qualquer guri e qualquer filósofo ateniense sabe o que é um Verdadeiro Mocotó e o que são essas tripadas com dilatadas listas de ingredientes que os infiéis querem nos vender a cada inverno. 

Certo; não consegui ser sucinto. Volto pro trilho. Observo há anos que as pessoas mais militantes no gauchismo deram um passo a mais na busca do VG – e o encontraram. Quem é ele, pelo Patrão Grande, quem é??? Pois conheço uma meia dúzia. Vocês também. 

A cada tanto, em cada pago, se aponta um cara desses. Podemos recorrer às metáforas de sempre: “sinuelos”, “ponteiros de tropa”, “vaqueanos do”…, mas esse tipo de conversa nem deixou o partidor e já cansa o meu cavalo (afinal, se a linguagem gaúcha é rica em imagens, usemos o tesouro todo e não só o punhado de sempre).

Dou a receita antes de servir o doce: são caras que vivem a cultura tradicional, suas práticas, seus ambientes e ofícios, sua linguagem e valores… porque foi o que lhes tocou viver. Ou seja: quase sempre são o contrário daqueles que os aclamam VG. Um domador, alambrador, um peão de campo, um remanescente de uma forma de vida, mais do que um militante ou cultor (sem prejuízo de que também o seja).

No que diz respeito muito especificamente ao meio musical, isso não é dizer pouco. Porque há um fenômeno recente, totalmente diverso do que se viu no Tradicionalismo surgente nas cidades no final dos anos 40 ou no nativismo dos 80: muitos artistas buscam viver da forma o mais análoga possível ao objeto de seu lirismo. Senão, pensem em quais e quantos eram os artistas dos anos 70 que divulgavam imagens suas a cavalo – e quais e quantos (meu Deus, quantos!) o fazem agora. Confesso pela primeira vez que em um determinado momento de meu uso do Facebook, onde se mistura meu perfil pessoal com os assuntos de música e rádio, brinquei caseiramente dizendo que não tinha mais vaga na cavalaria e só estava aceitando infantaria. Não tenho simpatia pelo mundo militar, mas estava me referindo à quantidade de solicitações de amizade de gente enforquilhada em um cavalo na foto do perfil.

Mas é mais do que isso: há músicos e poetas, cada vez mais, que domam, que laçam, trançam, gineteiam, que vivem no campo. Algum problema? Certamente que não. A busca da fonte pode ser nobre e sã, a da organicidade também. O problema é o turvamento do olhar sobre si e sobre o entorno que esse movimento parece, muitas vezes, causar. Não me façam, por favor, entrar nas filigranas semânticas de “gaúcho”, mas estamos falando de pessoas que resolveram viver uma vida gaúcha – e eu disse resolveram. Podemos ser muitas coisas, eleitas, isoladas ou combinadas, no mundo contemporâneo – e se essa frase parece meio besta, pensem que alguém que nascesse em um fundo de campo no século XIX, em uma família desfavorecida, provavelmente teria uma única opção de padrão de fala, vestuário, hábitos e profissões. Não vale para os gauchões de antologia, filhos de grandes latifundiários e caudilhetes, em geral espalhafatosos nas externalidades campeiras – mas prontos a embarcar em um vapor e andar por altos círculos capitalinos, portenhos e europeus, ou ao menos plenos de condição para o fazer. 

Não me deixem criar aqui uma confusão: não digo que os artistas que se voltaram para um viver idealizado campeiro, de poucas décadas para cá, sejam em maioria privilegiados econômicos. Creio que não são. Mas são representantes do século XXI (e como se lê e escuta a queixa de terem nascido “em tempo errado…”!!!) E no século XXI mais gente tem opção e forma de matricular-se em infinitas turmas. No XX já era assim: eu conheci dois irmãos gauchescos ferrenhos que se tornaram punks (ou o contrário, não lembro), ainda nos anos 80. 

Essa escolha não é um caminho possível ou, ao menos, fácil para os VG. 

Não que tenha sido, para os filhos da classe operária da periferia londrina, quando começou o movimento punk – mas mesmo ali já havia algo bem menos, digamos, determinístico do que os possíveis caminhos de um campeiro, filho de campeiro, neto de campeiro, em um pedaço remoto do Rio Grande do Sul. 



Nessa nova geração de artistas-campeiros há os que se sentem e dizem VG, com diferentes níveis de clareza nesse dizer-se. E há os que não. 

O estranho e notável e, por que não, belo fato é que esses grupos aclamam os seus referentes Verdadeiros. 

Assim é que começaram a surgir figuras tidas por genuínas, que aparecem em imagens de redes sociais, materiais de divulgação e letras de música. 

Tenho certeza de que, se eu tentar desenvolver um paralelo com a Prova da Existência de Deus, de Descartes, vou me meter em uma gamela de tripas dessas em que dificilmente se acham as pontas. Mas vai dizer! O fato de eu conceber a idéia de que existe um Gaúcho Genuíno, impoluto, acabado e cristalizado… significa inequivocamente que ele existe, e mais: que mais dia, menos dia, vou me topar com ele levando uma cavalhada por diante em algum corredor da fronteira. 

Eu conheço, então, como disse, um punhado desses personagens. Alguns pessoalmente. São reverenciados por cultores do gauchismo como sendo “os de verdade” – e isso pode ser, evidentemente, constrangedor, pela simplicidade com que esses cultores, por pura lógica de oposição, estão dizendo “nós não somos”. Constrangedor quando se trata daqueles que também disputam, ante um público, ante o Imaginário ou ante um público imaginário, o lugar de VG. Aí, bueno; te falo de constrangimento!

Há poucos dias alojei e me fiz amigo de um desses gaúchos-emblema, gaúchos-bandeira. É comum que se considere o Uruguai mais pródigo em figuras legítimas dessa cultura, o que pode ser verdadeiro ou fantasioso. Conheço bem o ambiente campeiro do Uruguai, por viagens de atuação musical, longos trechos a cavalo, ou visitas a propriedades de amigos. 

E conheci e hospedei, dizia, El Gaucho Caraguatá. Pucha, que o significante velho já começa a retouçar! O ouvido me traz ao tato a bromeliácea espinhuda; à visão, o lugar no Departamento de Tacuarembó, estância oriental sem luz elétrica, onde festejamos o centenário de um descendente dos Saravia cantando, carneando e fazendo assado.

Vêm a memória Jayme e Cenair (VGs?), quando aquele descreve o canto deste como “bárbaro e doce, que com certeza extraviou-se da flor do caraguatá”.

Beto Caraguatá Duarte, doce bárbaro, evoca um mundo de memórias, muitas sonhadas ou inventadas. 

Tem 73 anos. Não teve constância na atividade de campeiro, porque aos 13 um mouro grande destruiu sua perna, ao bolear-se com ele. A essa idade, era peão profissional, contratado – não estava ajudando algum parente. Arrastou-se cinco horas, cruzou arame de espinho e perderia a perna ou a vida, não fosse uma mulher vê-lo e salvá-lo naqueles campos desertos. Tornou-se mecânico de ônibus, após convalescer com o conforto mínimo de uma certa seguridade rural que agradece ao governo colorado da época e aproveitando um curso por correspondência que fizera em intervalos de lida. Quando pôde, voltou ao mundo rural, um ginete destro, conhecedor de plantas e de ofícios, que não se ressente da perna mais curta. 



Mas é interessante lembrar que sua vivência gaucha foi descontinuada. Talvez guarde desse intervalo o cuidado pedagógico que tem com gente urbana, buscando comparações engenhosas para explicar coisas de seu mundo. De todos modos, por mais ônibus, daqueles antigos, focinhudos, ou dos mais modernos, nos quais tenha se engraxado, para todo o Uruguai El Gaucho Caraguatá é um inequívoco VG. 

E é claro que me postei na beira do fogo a ouvi-lo, como fiz com outros de sua estirpe. Humor pícaro; conhecimentos de doma completamente ariscos aos manuais; plantas medicinais com as quais trata seus próprios achaques, os dos netos e de qualquer um que o procure… Um mundo, o homem velho. 

De repente, com alguma solenidade, decide me contar sobre seu “primeiro concurso”. Imaginei gineteada, prova de potro de 21 dias, alguma marcha dessas tão disputadas no paisito. Não. Tinha dez anos e inscreveu-se em uma competição de comer bolachas – galletas de campanha, daquelas duras, farelentas, que os galpões de estância guardam em latas que riem de conceitos como “prazo de validade”. 

Comeu um quilo de galletas (!!!), mais rápido do que os “contrincantes”. 

Um deles, já quase um adulto, ganhou o prêmio máximo. Beto Caraguatá conta a história sem queixa. Foi justo – e foi onde ele aprendeu o valor de um bom júri. “Se alguém vai julgar o senhor no violão, tem que conhecer violão!” (lembram que eu falava das comparações pedagógicas desse gaúcho meio freireano?) “Aquele júri mostrou que entendia de comer galleta! Eu fui mais rápido – mas fui ‘desprolijo’” (relaxado, digamos). “O homem que ganhou, já quase adulto, comeu todos os farelos e eu deixei tudo esparramado pelo chão.”

Creio que foi o relato mais sentencioso, mais revestido de intenção de entregar um conteúdo, de tudo o quanto conversamos. Engraçado, sem dúvida, por insólito – e porque a lembrança foi motivada pela sujeira que ele deixou no chão, comendo na minha cozinha um peixe assado. 

Enquanto amassava e forneava a experiência de um fim de semana ao lado desse novo amigo, pensei que a identidade – a gaúcha, por exemplo -, se compõe de camadas, como um gagetão de campanha daqueles cabeça-de-anjo. E se esboroa, se esfarela, se não se for cuidadoso, respeitoso, prolijo – ou se tivermos o ânimo de consumi-la, apressados. A voracidade esfarela a veracidade? Talvez isso seja inexoravelmente assim, talvez isso não tenha importância. 

Se tudo se desintegra, talvez a verdade esteja nos farelos e no que se faz com eles. E talvez seja tão legitimo salvar migalha por migalha quanto espaná-las desleixadamente com as franjas do pala e seguir em frente. 

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