Ensaio

Victoria e Evita

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Victoria e Evita

Este é o nono capítulo da série sobre Victoria Ocampo, já conhecemos parte considerável de sua trajetória como mulher pública e alguns episódios de sua intimidade. Um ponto apareceu por aqui com frequência: a hostilidade do campo letrado à presença feminina. Também apareceram as reações, às vezes contraditórias, de Victoria a bloqueios tidos como naturais e sua posição dianteira no meio intelectual argentino. Victoria foi contemporânea de outra mulher hostilizada por ocupar o espaço público, mas esta de forma muito mais violenta, pois sua atuação alcançou uma escala assombrosamente maior. Estamos falando, óbvio, de Eva Perón.     

Entre a Santa Evita, a mãe dos descamisados, e a oportunista que ascendeu socialmente via casamento há certamente muitos matizes, embora não seja tão simples encontrá-los na vasta produção sobre Evita. A biografia escrita por Alicia Dujovne Ortiz, Eva Perón: a madona dos descamisados, o romance de Tomás Eloy Martínez, Santa Evita, e o ensaio de Beatriz Sarlo, A paixão e a exceção: Borges, Eva Perón, Montoneros, são pontos altos de compreensão da figura de Eva. Mas ela virou ícone pop aproveitado por peronistas, antiperonistas e pela indústria cultural – o exemplo mais impressionante é o filme Evita, de Alan Parker, com direito a Madonna no papel principal (Don’t Cry for Me Argentina…), Jonathan Pryce como Perón e Antonio Banderas como o inusitado narrador Che Guevara. O filme, de 1996, deu circulação mundial ao musical de Andrew Lloyd Webber e Tim Rice, que já tinha feito sucesso na Broadway nos anos 1970.        

Para nossos fins, outra peça tem especial interesse. Evita y Victoria: comedia patriótica en tres actos imagina o encontro entre essas duas figuras públicas relevantes e quase opostas. Escrita por Mónica Ottino em 1990, a peça foi montada desde então por diversas companhias de teatro argentinas. Obviamente, na vida real, Evita e Victoria sabiam uma da existência da outra, Victoria bem mais da de Evita do que o contrário, mas, salvo engano, elas nunca se encontraram. Mónica Ottino dramatiza esse encontro em um texto que tenta fugir das versões caricaturais que a opinião pública construiu para ambas.  

A peça está dividida em três atos e além de Evita e Victoria há três outras personagens: as empregadas das duas e a enfermeira de Eva. A ação se passa em 1947 e o principal assunto entre elas é o voto feminino. No primeiro ato, Evita faz uma visita surpresa a Victoria na mansão de San Isidro. O tom geral é de comédia, Victoria estava se preparando para um compromisso com Albert Camus e agora tem que lidar com a intempestividade dessa desclassificada. No primeiro diálogo entre as duas, já aparece o tema central da peça:

Eva: Muito prazer, senhora.

Victoria (tenta esconder sua repulsa): Muito prazer. (com gelada cortesia) Sente-se, por favor.

Eva (se senta um pouco tensa): A senhora está surpresa com a minha visita.

Victoria: Sim, e curiosa.

Eva: Temos uma preocupação em comum.

Victoria: Verdade?

Eva: Sim. A causa da mulher, o voto feminino, nossa falta de direitos.

Victoria: Sou uma velha lutadora. Mas acho que se enganou de porta. Não sou a única feminista da minha geração, nem mesmo a mais importante. Além do mais, não é nenhum segredo que sou contra o seu partido.  

Eva: Claro, toda sua classe nos detesta.

Victoria: Conheço gente modesta que não simpatiza com vocês e tem que se filiar ao partido e suportar pressões muito graves.

Eva: Senhora, eu gostaria de esquecer nossas diferenças. Embora não tenha entendido nossa mensagem, deseja algo como nós, o voto feminino. 

Victoria: Sim, mas por razões diferentes.

Eva: O que acha que são nossas razões?   

Victoria: Perpetuar-se no poder.

Eva: Acha que as mulheres são imbecis?

Victoria: Passei minha vida afirmando o contrário.

Eva: Então, por que acha que serão eleitoras tão ruins? Votarão livremente, e se não merecermos, não nos eternizarão no poder. 

Victoria (se põe de pé com impaciência): Você conhece melhor que ninguém a manipulação que o povo sofre.

Eva (plácida): Conversa com as trabalhadoras das fábricas, com empregadas, com as mulheres dos peões do campo? Conhece essas mulheres?

Victoria: Não, e você também não. Acha que as conhece pela adulação, porque vão pedir favores que você jamais deveria conceder como se fosse uma divindade asteca. (furiosa) E você, que diabo acha que é?

Eva: Isso não interessa, o importante é o que significo para eles. Mas fique calma, entendo sua frustração. Sua classe fracassou, deveriam estar agradecidos por não terem acordado um dia com um regime marxista. 

Victoria (amargamente): É verdade. Em troca, gozamos agora as delícias de um regime fascista. Já chega, o que quer de mim?

Eva: Quero que assine um manifesto com outras mulheres de diferentes partidos políticos. O voto seria o primeiro direito que exigiríamos; logo viriam outros.

Victoria: Que estranho que não queiram o crédito só pra vocês! Me diga, qual é o jogo?

Eva: Nenhum jogo. Redija você. Dizem que sabe escrever. Demonstre.

Victoria: Não quero colaborar com vocês.

Eva: Me acha desagradável?

Victoria: Estou na minha casa. Você é minha convidada.

Eva: Responda, me detesta?

Victoria: Sim.


O duelo das duas vai se estender por mais algumas páginas até o final do primeiro ato e depois, nos dois atos seguintes, o tema político cederá espaço a outros em que Evita e Victoria têm mais ou menos sintonia: maternidade, trabalho, casamento, religião. Mas a discussão sobre o voto é central, Ottino conseguiu expor na construção da personagem Victoria uma das principais contradições da Victoria Ocampo real. Ela efetivamente foi uma “velha lutadora” dos direitos da mulher, mas recusou nosso principal direito porque foi garantido pelo governo peronista sob a liderança de uma mulher que ela considerava desprezível. Nesse ponto, lamentavelmente Victoria não estava sozinha. María Celia Vázquez demonstrou que “frente às iniciativas sufragistas de Perón a população feminina se mostrou dividida”. Houve grupos de mulheres conservadoras e católicas que apoiaram o voto feminino, grupos socialistas, comunistas e liberais que recusaram, numa mostra do quanto a equação feminismo e antiperonismo não é nada simples de se resolver. Ainda assim, que uma mulher inteligente como Victoria tenha caído nessa esparrela é, no mínimo, surpreendente.


Karina de Castilhos Lucena é professora do Instituto de Letras da UFRGS.

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