Ensaio

Victoria Ocampo, capataz da cultura argentina

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Victoria Ocampo, capataz da cultura argentina Victoria Ocampo fotografada por Francisco Paco Vera, em 1961

Chamar Victoria Ocampo (Buenos Aires, 1890 – 1979) de capataz soa obviamente como provocação. Que não é minha, é de Beatriz Sarlo, em Modernidade periférica: “No curso de todas essas operações contrárias a um sistema de preconceitos sexuais e morais, Victoria Ocampo investe na literatura o capital simbólico (refinamento, viagens, línguas estrangeiras) que sua família lhe havia confiado apenas para que gastasse no consumo ostentador e distinguido. […] É, como se viu, uma história custosa, em que a abundância material e os tiques do esnobismo não devem ocultar os esforços da ruptura. Essa história culmina com êxito quando Victoria Ocampo, em 1931, se converte numa espécie de capataz cultural rio-platense. No mesmo momento, começará a reger seu corpo com a liberdade dos homens”.  

A citação de Sarlo dá o tom deste perfil que começa hoje e que se estenderá por dez sábados. Contar a história de Victoria Ocampo a partir de suas contradições: transgressora demais para o núcleo familiar e a elite cultural portenha do início do século XX, conservadora demais para os setores populares que vão se organizar em torno do peronismo, Victoria Ocampo construiu uma persona capaz de transitar e ditar regras num ambiente marcadamente masculino. Isso tem um preço: para manter-se nessa posição, fez vista grossa ou se isentou em momentos-chave da política Argentina ao longo dos 60 anos em que ocupou o lugar de figura pública relevante. Foi, por outro lado, alvo mais exposto que os homens de sua classe, presa aos 63 anos durante a segunda presidência de Perón. Chamá-la de capataz guarda um fundo de machismo: como lidar com mulheres que se destacam em ambientes que lhe são hostis? Guarda também as contradições da personalidade de Victoria, que usou expedientes tidos como monopólio masculino principalmente em círculos de poder.     

Filha mais velha das seis que Manuel Ocampo viria a ter – deve ter sido no mínimo decepcionante para ele não contar com um filho homem para gerir a fortuna da família –, Victoria Ocampo cumpriu até os vinte e poucos anos o rito traçado às mulheres de sua classe: educação em casa em francês e em inglês, viagens constantes à Europa, casamento mais ou menos arranjado. Aos poucos foi percebendo que poderia empregar seus privilégios em negócios considerados supérfluos por seu núcleo, mas valiosos para ela. O ápice se dá em 1931 com a fundação da revista Sur – 1931 é também o ano da morte do pai; em 1933, Sur se torna também editora.  Alinhada às vanguardas das principais cidades europeias e atenta às novidades vindas da então emergente Nova York, Sur vai ocupar posição central no campo cultural argentino dos anos 1930 a 50, resenhando e traduzindo autores estrangeiros até então ausentes no circuito nacional, patrocinando espetáculos com nomes internacionais badalados. Obviamente isso tudo não é obra apenas de Victoria, nem mesmo de Sur: integra o movimento geral de modernização de Buenos Aires, tão bem estudado por Sarlo no livro citado.

Sur representa o âmbito privado da atuação de Victoria Ocampo e de outros mecenas da aristocracia portenha, a transferência da fortuna pessoal para um projeto intelectual audacioso. Embora se saiba que o mecenato privado deve ser lido com o pano de fundo do golpe militar que derrubou o presidente Yrigoyen e colocou o general Uriburu no poder em 1930, como demonstrou Sergio Miceli, ainda se trata de empreendimento relativamente autônomo em relação à política institucional. Não é o que acontece entre 1958 e 1973, quando Victoria Ocampo vai integrar a diretoria do Fundo Nacional das Artes, autarquia criada em 1958 durante o governo do general Aramburu, também alçado ao poder via golpe militar. Victoria renuncia ao posto em 1973, quando já se confirmava o retorno de Perón como presidente eleito. Isso não quer dizer, obviamente, que Ocampo compactuou irrestritamente com o autoritarismo dos militares de turno; por outro lado, omitir o período em que esteve à frente do Fundo Nacional das Artes, como acontece em nem tão poucos estudos sobre ela, é ocultar parte relevante de sua atuação pública. Nesse órgão, Victoria transformou em política de estado diretrizes que estavam em Sur e que deixaram marcas positivas e duradouras na cultura argentina, principalmente na área da tradução. Segundo Patricia Willson, “à frente desse órgão nacional mas autárquico [o Fundo Nacional das Artes], Victoria editou traduções das ‘grandes obras da literatura universal’, buscando ‘os melhores tradutores’, e pagando melhor do que pagavam habitualmente as grandes editoras”.  

Como se vê, uma mulher com presença destacada na esfera cultural argentina. Esta série tem como premissa que Victoria Ocampo pode ser lida como um concentrado das tensões que atravessam a cultura argentina no século XX. Suas contribuições para os campos da literatura, tradução, arquitetura, teatro, música, bem como suas contradições dentro do debate feminista e seus atritos com o peronismo nos apresentam um retrato eloquente dessa elite ansiosa por ser incluída no circuito internacional das artes. Mulheres extraordinárias escreveram sobre Victoria Ocampo na Argentina: Beatriz Sarlo, María Esther Vázquez, María Teresa Gramuglio, Sylvia Molloy, Patricia Willson, Irene Chikiar Bauer, para citar apenas algumas. A bibliografia em espanhol sobre Ocampo é vasta e qualificada, à altura da complexidade da figura. No Brasil, embora Victoria e Sur sejam assunto corrente entre sociólogos e historiadores interessados em compreender o campo cultural argentino, ainda são tímidos os estudos nas áreas da literatura, da tradução, da música, da arquitetura e demais âmbitos em que Victoria atuou. Arrisco dizer que por aqui Silvina Ocampo, la hermana menor, circula mais que Victoria, em especial depois das traduções recentes de seus contos e da biografia escrita por Mariana Enriquez. Salvo engano, nenhum texto de Victoria Ocampo tem tradução brasileira.

Para finalizar, um poema meio capenga que surgiu como exercício de escrita e que resolvi usar na abertura deste perfil de Victoria. Ela se recusou a escrever poesia, gênero prescrito a mulheres de sua classe e geração. Usar uma forma que ela rejeitou pode soar como mais uma provocação ou como um indício de que as formas têm história e que estão mais disponíveis hoje do que estavam para ela. Sigo tentando estudá-la de modo ao mesmo tempo respeitoso e irreverente.      

Victoria Ocampo

Da estação Retiro de Buenos Aires

parte o trem rumo a San Isidro.

Caminhando nove quadras sentido

rio, à direita estará Villa Ocampo.

O pai de Victoria construiu a casa

no ano de mil oitocentos e noventa

e nesse ano também nasceu Victoria.

Como filha pouco pôde fazer

depois, herdeira, recebeu artistas,

letrados, atrizes, tipos variados

pintou de branco madeira de lei

e se livrou da mobília paterna.

Entraram pra história seus recitais

com Lorca, Stravinsky, Roger Caillois.

Cercada de livros e criados

acusou de barbárie o peronismo, 

ficou vinte e sete dias presa

aos sessenta e três anos de idade

cidadã de alta periculosidade.

Sendo até a medula feminista 

negou voto proposto por Evita. 

Integrou o Fundo Nacional das Artes

enquanto governavam militares.

Fundou a revista mais celebrada 

do país, manteve sob seu domínio

o falo do cânone nacional.

Pegou o ensaio, gênero masculino,

torceu e encaixou autobiografia. 

Fez tudo sempre em primeira pessoa:

tradução, crítica, diplomacia. 

Morreu mais pobre do que nasceu

sozinha na casona que herdou.

Investiu em literatura a plata

que sua família queria nas vacas.

Foto preta e branca de mulher sentada

Descrição gerada automaticamente
Victoria Ocampo fotografada por Francisco Paco Vera, em 1961


Karina de Castilhos Lucena é professora do Instituto de Letras da UFRGS.

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