Ensaio

Victoria Ocampo, concentrado de tensões

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Victoria Ocampo, concentrado de tensões Victoria Ocampo em foto de Gisèle Freund

Há muitas formas de se escrever a história de algo ou alguém. Os historiadores têm longa tradição nesse debate, os livros Como se escreve a história, de Paul Veyne[1], A escrita da história, de Michel de Certeau[2], A escrita da história: novas perspectivas, de Peter Burke[3], são apenas os exemplos mais ao alcance e que já contam com aprovação e objeção dos pares. História da literatura, história da arte, estudos da memória e biografias se alimentam e atualizam o debate historiográfico quando incluem na equação um aprofundamento sobre categorias como narração, ponto de vista, ficção, montagem, coleção. 

Walter Benjamin ajuda a pensar a escrita da história já atravessada por noções da crítica literária, da tradução, do colecionismo de arte. Pensador heterodoxo, Benjamin circulou pelas áreas e fez provocações típicas de quem desconfia do pensamento compartimentado. Suas teses Sobre o conceito de história rejeitam certo historicismo que passa a sequência dos acontecimentos pelos dedos como se faz com as contas de um rosário. A imagem é de Benjamin e ilustra bem sua recusa à história como linearidade, dogmatismo, acumulação. Em reação a esse modelo, Benjamin propõe outra forma de ver a história, como constelação saturada de tensões. Essa perspectiva “faz explodir uma época do decurso homogêneo da história; do mesmo modo como faz explodir uma vida determinada de uma época, assim também faz explodir uma obra determinada da obra de uma vida. Este procedimento consegue conservar e suprimir na obra a obra de uma vida, na obra de uma vida, a época, e na época, todo o decurso da história”[4].      

Em alguma medida, foi esse procedimento que orientou a escrita deste perfil de Victoria Ocampo. Entendê-la como um concentrado de tensões, uma força que, estudada no detalhe, permite compreender para além dela, uma força irradiadora. Para isso, segui a linha traçada por Beatriz Sarlo primeiro em Modernidade periférica[5] e depois em La máquina cultural[6]. Nos dois livros, Sarlo examina a cultura argentina a partir de uma perspectiva que poderíamos definir como benjaminiana. Ela isolou um período (os anos 1920-30 em Modernidade) ou atores (professoras, tradutores, vanguardistas em La máquina) que concentram questões-chave da cultura argentina ao longo do século XX: Buenos Aires se inventando como capital cosmopolita, imposição e consolidação de um imaginário nacional que se mescla à importação de formas estrangeiras, fragmentos de uma modernização periférica. Depois, Patricia Willson avançou no caminho aberto por Sarlo e, em La constelación del Sur[7], demonstrou a centralidade da revista e editora Sur na cultura argentina do século XX justamente por seu papel de concentrar e irradiar.

Victoria Ocampo aparece nos dois livros de Sarlo e, óbvio, no de Willson, como agente relevante da cultura de mescla, engrenagem indispensável da máquina cultural, estrela que permite identificar a constelação de Sur. Mas ela aparece em contraste com seus pares escritores e tradutores, às vezes avaliada a partir deles. Aqui ela comparece sola, o que permite colocar em primeiro plano que seja uma mulher a ocupar tamanho espaço de poder.

Colocar Victoria Ocampo no centro do estudo implica compreendê-la para além da atuação como mecenas de Sur. Leva à avaliação de sua escrita ensaística, autobiográfica e testemunhal como interessante do ponto de vista formal; permite compreender sua prática tradutória como provocativa às teorias da área; capta a relevância de Ocampo para fora do campo letrado, em áreas como arquitetura e patrimônio; evidencia os conflitos entre elite intelectual e peronismo; dá o devido destaque à colaboração de Victoria com os militares que depuseram Perón quando aceita presidir o Fondo Nacional de las Artes; expõe a variedade de posições dentro do feminismo. Não é pouca coisa. As rupturas, concessões e contradições de Ocampo talvez façam dela um daqueles pontos do espaço que contém todos os pontos e que um desconfiado Borges viu no décimo nono degrau de certo porão.  

A Victoria aleph pode parecer exagero, mas não, é uma proposição metodológica. A pequena esfera furta-cor que o narrador vê na casa da rua Garay já ganhou interpretação para além do conto de Borges[8], já foi aproximada à sua argumentação em O escritor argentino e a tradição[9], por exemplo, à defesa de que todos têm direito ao universo, uma lúcida reflexão sobre o que se espera de escritores do centro e da periferia. O Aleph da rua Garay sugere que o universo está também em Buenos Aires, que é possível ser escritor argentino e universal. Ricardo Piglia usou a ideia em Respiração artificial[10]: “Buenos Aires, aleph da pátria, por um desrespeitoso privilégio portuário”, em alusão obviamente irônica, mas que guarda o princípio da concentração, do microcosmo. Feitas as devidas mediações, não estamos muito longe da metodologia de Benjamin, e os paralelos entre Borges e Benjamin não acabam aí, mas esse é assunto para outro momento.

Encerro este perfil de Victoria Ocampo com outro de seus feitos que dão dimensão da figura. Gisèle Freund, a extraordinária fotógrafa judia-alemã, que havia frequentado o mesmo Instituto de Pesquisa Social de Walter Benjamin e Theodor Adorno e que se encontrava em Paris desde a ascensão de Hitler na Alemanha, precisava abandonar a cidade depois da ocupação nazista. Em Paris ela tinha conhecido certa argentina que lhe salvaria a vida. Freund deixou registro em suas memórias:         

Em 10 de junho de 1940, o Governo abandonava Paris. Três dias depois, na véspera da chegada das tropas alemãs, parti ao amanhecer de bicicleta, porque os trens já não circulavam. Amarrei na bicicleta minha pequena maleta, a mesma que tinha trazido na minha chegada a Paris sete anos antes. Me refugiei num povoadinho de Dordonha. Quando me inteirei das cláusulas do armistício, que entregava os refugiados alemães para a Gestapo, soube que devia sair da França de qualquer jeito. Victoria Ocampo conseguiu um visto argentino, mas ainda levei mais de um ano para obter os documentos necessários para chegar à margem do Rio da Prata[11]. 

Victoria Ocampo foi uma das responsáveis por salvar Gisèle Freund das tropas nazistas. Não é impressionante? Estudá-la não é estudar um universo? 

Homem de terno preto

Descrição gerada automaticamente
Mulher sentada no sofá com livro aberto

Descrição gerada automaticamente
Homem sentado em frente a computador

Descrição gerada automaticamente

Jorge Luis Borges, Victoria Ocampo e Walter Benjamin em fotografias de Gisèle Freund.


NOTAS

 [1] VEYNE, Paul. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. Tradução de Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp. Brasília: Editora da UnB, 1998.
[2] CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
[3] BURKE, Peter (Org.). A escrita da História: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora da Unesp, 1992.
[4] BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio – Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant. Tradução das teses Jeanne Marie Gagnebian e Marcos Lutz Müller. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 130.
[5] SARLO, Beatriz. Modernidade periférica: Buenos Aires 1920 e 1930. Tradução de Júlio Pimentel Pinto. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
[6] SARLO, Beatriz. La máquina cultural: maestras, traductores y vanguardistas. Buenos Aires: Seix Barral, 2007.
[7] WILLSON, Patricia. La Constelación del Sur: traductores y traducciones en la literatura argentina del siglo XX. Buenos Aires: Siglo XXI editores, 2017.
[8] BORGES, Jorge Luis. O Aleph. Tradução de Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
[9] BORGES, Jorge Luis. Discussão. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
[10] PIGLIA, Ricardo. Respiracão artificial. Tradução de Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 113.
[11] Trecho do livro de memórias El mundo y mi cámara, de Gisèle Freund, citado em: https://www.infobae.com/cultura/2021/09/23/gisele-freund-una-muestra-en-europa-recupera-sus-anos-en-america-latina/. Tradução minha.


Karina de Castilhos Lucena é professora do Instituto de Letras da UFRGS.

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