Ensaio

Victoria Ocampo, correspondente: cartas e relatos de viagens

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Victoria Ocampo, correspondente: cartas e relatos de viagens Fotos de Victoria Ocampo em exposição de Cristian Chironi, na BIENALSUR de 2019.

Comecemos por uma pequena digressão. Josefina Ludmer, no ensaio Las tretas del débil (algo como As artimanhas do frágil), faz algumas considerações sobre o que se convencionou chamar de literatura feminina/de mulheres a partir da análise de um texto de Sor Juana Inés de la Cruz, a escritora e freira mexicana (na verdade novo-hispana) que viveu e escreveu na segunda metade do século XVII (nasceu em 1648 ou 1651, não se tem certeza, e morreu em 1695). Em 1690, por encomenda de um homem da igreja, Sor Juana redigiu o que conhecemos hoje por Carta Atenagórica que, como ela explica no texto, foi pensado como uma correspondência privada, já que à época mulheres não podiam se posicionar publicamente sobre teologia. Acontece que esse religioso publica a Carta, acompanhada de um prólogo assinado por pseudônimo feminino (Sor Filotea de la Cruz), no qual elogia e recrimina a argumentação de Sor Juana. Alguns comentadores consideram essa publicação um ato de traição de parte do religioso, outros um arranjo que dá mostras da perspicácia de Sor Juana, que aproveitou essa brecha para demonstrar sua erudição e capacidade argumentativa (uma artimanha do frágil, nos termos de Ludmer). 

Na Carta, Sor Juana critica o Sermão do Mandato (de 1650, ou seja, de quando Sor Juana estava nascendo), do célebre padre Antônio Vieira (Lisboa, 1608 – Salvador, 1697), rebatendo seus argumentos um a um. Nesse sermão, Vieira discorda de três santos (Santo Agostinho, São Tomás e São João Crisóstomo), numa mostra da autonomia que tinha para ler as escrituras e interpretá-las a seu favor, colocando a oratória antes da literalidade. À Sor Juana estava negada inclusive a literalidade, o que faz da Carta Atenagórica um documento de sua insubmissão. Insubmissão conservadora, já que defende os três santos da liberdade oratória de Vieira, mas, ainda assim, insubmissão registrada em texto de grande valor retórico e estético.

A Carta tem grande repercussão e, como se pode imaginar, rende problemas a essa mulher que ousou debater com homens. Em 1691, Sor Juana escreve uma resposta a Sor Filotea, que se converte em um de seus textos mais importantes porque narra sua biografia. A resposta deve ter circulado em Nova Hispana, mas só é publicada em livro postumamente, em 1700. É essa resposta a Sor Filotea que Josefina Ludmer analisa no ensaio citado e afirma: “Por meio da carta e da autobiografia, Juana erige uma polêmica erudita. Agora se entende por que esses gêneros menores (cartas, autobiografias, diários), escritos limítrofes entre o literário e o não literário, chamados também de gêneros da realidade, são um campo preferido pela literatura feminina”. 

Ludmer afirma ainda que, uma vez vedados às mulheres os gêneros em que tradicionalmente se discute política, ciência, filosofia, resta a elas debater esses temas no âmbito pessoal, privado e cotidiano. Mas aí está a artimanha do frágil: ao infiltrar nos gêneros menores o debate público, eles deixam de ser menores. Sor Juana é um exemplo dessa artimanha. Ela só estava autorizada a escrever uma carta privada encomendada por um homem da igreja e escreve a Carta Atenagórica, um texto que duela com o sermão de Vieira. 

Mais de duzentos anos depois, e obviamente sem as mesmas limitações de Sor Juana, Victoria Ocampo vai mostrar perspicácia no uso dos gêneros tidos como menores. Autobiografia, Testimonios, notas de rodapé, todo texto é lugar para o debate de ideias. Suas cartas e relatos de viagem seguem a mesma linha, cito um exemplo de cada. 

Entre 1934 e 1940 Victoria se correspondeu com Virginia Woolf, a essa altura, uma escritora já consagrada. Victoria tinha publicado alguns ensaios e fundado a revista e editora Sur, ou seja, começava sua atividade de mulher pública. Na correspondência elas negociam a publicação dos livros de Woolf em Sur, o que de fato se concretiza: Un cuarto propio em 1936, tradução de J. L. Borges; Orlando em 1937, também traduzido por Borges; Al faro em 1938, tradução de Antonio Marichalar; Tres guineas em 1941, tradução de Román J. Jiménez.        

As cartas poderiam ser meras tratativas de negócios, o que já seria bastante coisa, estamos falando das primeiras traduções dos livros de Woolf para o espanhol. Mas não, elas aproveitam as cartas para discutir escrita e literatura. Em carta de 11 de dezembro de 1934, Victoria escreve: 

Se há alguém no mundo que pode me dar valor e esperança, é você. Pelo simples fato de ser o que você é e de pensar como você pensa. Seria ingrata se dissesse que nunca fui encorajada, etc. Tenho amigos (homens) que me veem dotada até a genialidade e dizem, e escrevem. Mas essas declarações sempre me deixam fria e incrédula no mais profundo do meu ser. Você entende o que quero dizer… Os homens julgam uma mulher sempre (ou quase sempre) segundo eles mesmos, segundo as reações que experimentam com seu contato (espiritual, também). Sobretudo se não é desajeitada e não tem uma cara desagradável. É uma fatalidade entre eles, especialmente se são latinos. Então não podem servir de ponto de referência, honestamente.       

Em 22 de dezembro de 1934, Virginia responde: 

Me alegro tanto que você escreva crítica em vez de ficção. E estou certa de que é crítica de qualidade, clara e aguda, incisiva, como cortada à faca, não com uma podadeira velha e enferrujada. […] Espero que continue com Dante e logo com Victoria Ocampo. Até agora, poucas mulheres escreveram autobiografias verazes. […] Espero que escreva um livro inteiro de crítica e que, se encontrar tempo, me envie de vez em quando uma carta.  

A generosidade da inglesa consagrada com a argentina insegura, o incentivo para fazer o que não se espera dela (escrever crítica) e para se apropriar do gênero autobiografia. Artimanhas do débil… Em outro momento vou contar o que Paul Groussac, quando diretor da Biblioteca Nacional Argentina, disse a Victoria Ocampo depois de ler seu ensaio sobre Dante. Agora voltemos ao uso arrojado dos gêneros, dessa vez um relato de viagem. E não é qualquer viagem, Victoria Ocampo foi a única mulher convidada a assistir aos julgamentos de Nuremberg. 

A convite do British Council, em 1946 Ocampo assiste a dois dias do julgamento que condenou nazistas do calibre de Göring, Hess, Ribbentrop e Keitel. Escreve suas Impresiones de Nuremberg, crônica que incluiria na quarta série de Testimonios, de 1950. Depois de narrar a viagem em um avião pra lá de instável, a cidade em ruínas, o espetáculo visual e os personagens do drama, totalmente consciente da responsabilidade história de seu relato, ela pondera:

O complô hitlerista foi um assunto de homens. Não há mulheres entre os acusados. Por acaso é a razão para que não estejam entre os juízes? Não seria justamente uma razão para que estivessem? Se os resultados do processo de Nuremberg vão pesar sobre o destino da Europa, não é equitativo que as mulheres possam dizer uma palavra sobre eles? Foram poupadas da guerra? Se mostraram companheiras indignas no momento do perigo? Seriam indignas no momento de tomar decisões que pesarão no futuro do mundo? Até agora o fracasso dos homens em matéria de repressão e prevenção dos crimes de guerra, e da guerra – que é sempre crime –, sinceramente, foi estrepitoso. Perguntar às mulheres qual sua opinião sobre essas questões, permitir que intervenham nelas, não comporta nenhum perigo e pode oferecer vantagens insuspeitas.   

Novamente a Victoria feminista usando um gênero menor para tratar de assuntos maiores. 

Foto em preto e branco de pessoas sentadas ao redor de uma mesa

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa
Recorte de jornal guardado por Victoria

Karina de Castilhos Lucena é professora do Instituto de Letras da UFRGS.

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