Ensaio

Victoria Ocampo, polímata

Change Size Text
Victoria Ocampo, polímata Foto: Alejandro Bustillo/Fondo Nacional de las Artes, sob licença CC-BY

Polímatas são generalistas, indivíduos curiosos que se interessam por muitos assuntos, que fogem à compartimentalização das disciplinas e por isso, muitas vezes, são tidos por superficiais, pouco rigorosos, em especial no contexto da superespecialização, cada vez mais forte. Peter Burke escreveu um livro ótimo, O polímata: uma história cultural, de Leonardo da Vinci a Susan Sontag. Como apêndice, ele apresenta uma lista de quinhentos polímatas ocidentais e avisa: escolheu o número redondo justamente para tornar óbvia a arbitrariedade da seleção. Aparecem nomes de quase todo tempo e lugar (Copérnico, Voltaire, Marx, Freud, Walter Benjamin, Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro…) e entre as poucas mulheres listadas, quem está? Victoria Ocampo, por supuesto. Também está outra mulher que já apareceu por aqui, Sor Juana Inés de la Cruz. E dois conterrâneos de Victoria: Domingo Sarmiento e Jorge Luis Borges.

Provavelmente a lista de Burke diga pouco sobre um conjunto tão variado de personalidades, mas a inclusão de Victoria diz muito sobre seu renome internacional. Entre centenas de possibilidades, Burke escolheu Victoria. E polímata é mesmo uma definição que lhe cai bem. Sua atuação como escritora, tradutora, editora e mecenas está mais diretamente relacionada à literatura, embora também tenha incursionado por música e teatro. Mas sua disposição de projetar e construir as primeiras casas modernas de Buenos Aires, seu interesse por arquitetura e design, talvez sejam traços mais visíveis de sua personalidade polímata.

Em 1929, Le Corbusier, que viria a ser o arquiteto moderno por excelência, visitou Buenos Aires, Montevidéu, São Paulo e Rio de Janeiro. Quando o barco chegou ao porto de Buenos Aires em 28 de setembro, Victoria Ocampo o esperava. O convite para o tour sul-americano tinha vindo da associação Amigos del Arte, fundada poucos anos antes e com a qual Victoria tinha laços estreitos. Le Corbusier também se correspondeu com Paulo Prado, mecenas do modernismo paulista, que agenciou a parte brasileira da viagem. A menção a esses nomes basta para enquadrar o convite a Le Corbusier no projeto vanguardista das elites portenha e paulista. Em Buenos Aires, Le Corbusier faz palestras que serão recolhidas em 1930 no livro Précisions. No primeiro número da revista Sur, de janeiro de 1931, há uma resenha desse livro de Le Corbusier. Ao volume, Le Corbusier acrescenta um Prólogo americano, escrito em 1929, quando regressava à Europa depois da temporada sul-americana, em que diz:

Talvez faça somente dez anos que Buenos Aires se move de forma útil a favor da arte. Isso pode ser visto em sua arquitetura, que passou para novas mãos. São os grandes beneficiários, os grandes proprietários, os grandes negociantes que provocam esse movimento. Até agora, a senhora Victoria Ocampo é a única a fazer um gesto decisivo para a arquitetura, ao construir uma casa que gerou um escândalo. Pois bem, Buenos Aires é assim, com seus dois milhões de habitantes, emigrantes que se enternecem por quinquilharias, que se chocam contra essa mulher solitária, mas que quer. Em sua casa se pode ver Picasso e Léger, num quadro de uma pureza que não encontrei facilmente em outros lugares.    

As casas de Victoria Ocampo realmente geraram escândalo. Em 1926, ela mandou construir uma casa moderna em Mar del Plata que causou furor na vizinhança. Dois anos depois, ela fez algo semelhante, agora no bairro Parque em Buenos Aires, e arrumou problemas inclusive com as autoridades municipais. O crítico de arte Julio Rinaldi comentou o caso em texto de 4 de agosto de 1929, para o jornal La Nación:

Há dois anos, Victoria Ocampo mandou edificar em Mar del Plata uma casa segundo as normas da nova arquitetura. Esse fato inaudito ocupou a crônica do balneário durante a temporada. A curiosidade pública deu sua opinião com uma espontaneidade juvenil, o que não deixou nossa cultura muito bem na foto. Para a maioria, a nova casa foi um desafio ao bom senso […]. A convicção de Victoria Ocampo não se contaminou. Fortalecida pelo ardor inimigo, resolveu levantar outra casa moderna em Buenos Aires. Dessa vez, a oposição começou na autoridade municipal. A comissão de estética edilícia produziu um detalhado relatório em que sustentava: primeiro, que o projeto proposto não era arquitetura, e segundo, que Buenos Aires era uma cidade estética.  

Imaginem a satisfação de Victoria Ocampo quando Le Corbusier visita as casas e dá sua aprovação vanguardista. Que tapa na cara da sociedade. Se bem que para a sociedade argentina da época Le Corbusier era figura mais ou menos desconhecida, sua fama se restringia a círculos da elite cultural. Mesmo assim, a chancela da autoridade da arquitetura internacional entusiasmou Victoria. Nos anos 1930, Ocampo e Le Corbusier se manterão em contato, ele publicará em Sur, juntos idealizarão projetos – quase todos fracassados porque não conseguiram convencer o mecenato privado portenho a investir sua plata em arquitetura moderna (aqui não pode ser desprezado o crack de 1929). Le Corbusier encontrará parceria mais rentável no estado brasileiro sob Vargas, que dará carta branca a Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e outros modernistas discípulos de Le Corbusier.   

Para Beatriz Sarlo, as casas modernas de Victoria Ocampo são máquinas tradutoras. As casas traduzem no espaço a atividade de tradução na qual Victoria também está envolvida. Assim como as casas representam os esquemas do modernismo, Sur define um espaço de práticas de tradução. Que bela aproximação. Parece mesmo que ao projetar essas casas meio intuitivamente, inspirada nos modelos de Le Corbusier, Victoria Ocampo está realizando um processo de tradução que torna mais evidente a necessidade e importância de materiais e agentes locais, mais do que estes costumam ser considerados no processo de tradução stricto sensu. Partindo dos princípios da arquitetura moderna, Victoria projetou casas de sua autoria, contou com arquitetos e construtores argentinos, com concreto e tijolos da indústria local. 

Mais ou menos o que ela fez à frente dos grandes empreendimentos de edição e tradução que capitaneou a vida inteira. Traduzir também é conciliar o estrangeiro e o local, mediar culturas diferentes, equilibrar forças desiguais, ser mal-recebido, incompreendido, ridicularizado. Às vezes com o tempo a avaliação muda. Parece que o mundo da arquitetura vem conferindo à Victoria Ocampo o lugar pioneiro que ela efetivamente teve e que no mundo das letras está consolidado faz tempo. O Archivo Nuestras Arquitetas, repositório gerenciado por pesquisadoras da área vinculadas a diversas universidades argentinas, já aceita Victoria como par:   

Diagrama

Descrição gerada automaticamente com confiança média
 https://nuestrasarquitectas.wordpress.com/
Diagrama

Descrição gerada automaticamente
 https://nuestrasarquitectas.wordpress.com/

Karina de Castilhos Lucena é professora do Instituto de Letras da UFRGS.

RELACIONADAS
;
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.