Ensaio

Villa Ocampo

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Villa Ocampo Villa Ocampo, San Isidro

As casas modernistas projetadas por Victoria Ocampo deram e dão o que falar – a casa da rua Rufino de Elizalde 2831, em Buenos Aires, hoje é sede da Casa de la Cultura vinculada ao Fondo Nacional de las Artes –, mas em se tratando de arquitetura o nome de Victoria está mais associado ao casarão do final do século XIX que herdou do pai, hoje Observatorio UNESCO Villa Ocampo.

Em 1973 (ou seja, durante o terceiro governo de Perón) Victoria, aos 83 anos de idade, resolve doar as casas de San Isidro e Mar del Plata para a UNESCO. Ela deixou suas intenções registradas no tomo nove de Testimonios:

Com a esperança, talvez ilusória, de poder seguir sendo útil ao país, aos escritores, tradutores, aos artistas, pois tiveram tanta importância em minha vida, resolvi doar ou legar minhas duas casas de campo (em San Isidro e Mar del Plata) para a UNESCO. O caráter internacional da UNESCO (embora também oferecesse alguns inconvenientes a meu plano) me pareceu o mais adequado a meu modo de encarar as coisas das letras (por exemplo) e meu desejo de continuar prestando ajuda a meus compatriotas, como creio que fiz, dentro das minhas possibilidades e critério, durante toda minha existência. 

Como parte da documentação que formaliza a doação, a UNESCO solicita a Victoria uma breve resenha da história de Villa Ocampo (a casa de San Isidro), precisamente esse texto que ela inclui nos Testimonios. Em se tratando de Victoria, não se pode esperar um texto meramente protocolar, ela faz questão de produzir esse documento respeitando seu estilo ensaístico e pessoal:

A história de Villa Ocampo é simples embora longa para se relatar em detalhe. Farei um resumo o mais breve possível. Começou antes do meu nascimento, em 1890. Meu pai foi o arquiteto da casa e traçou o parque, grande nessa época. Casa e parque se encontram nas barrancas de San Isidro, na altura de Punta Chica, a 20 quilômetros da capital. Hoje, integram a Grande Buenos Aires. A propriedade pertencia a uma de minhas tias avós (com quem vivemos sempre), meus pais, minhas irmãs (cinco) à medida que chegavam ao mundo, e, no início, meu bisavô. Morreu com muita idade. Eu diria que a história da casa começa com ele, embora pouco tempo pôde desfrutar dela. Esse bisavô era grande amigo de Sarmiento e administrava seus escassos bens. Sarmiento não se ocupava deles, e meu bisavô estava obstinado em corrigir suas finanças caseiras.    

O texto prossegue por mais duas ou três páginas em que Victoria mescla sua história pessoal e familiar à história pátria, traço não raro entre a elite crioula. Victoria Ocampo confia que tombada pela UNESCO a casa se converterá em patrimônio preservado que renderá homenagem a ela e à família, mas não é isso que acontece. Depois da morte de Victoria, em 1979, a casa foi abandonada tanto pela UNESCO quanto pelo poder público argentino e virou ruína. O caso foi narrado no livro Patrimonio en el siglo XXI: el caso Villa Ocampo, por Nicolás Helft – diretor executivo do projeto Villa Ocampo da UNESCO – e Fabio Grementieri – arquiteto especializado em conservação do patrimônio. Na introdução do livro, Helft relembra:

Cheguei a Villa Ocampo em um dia de agosto de 2003, perto das oito e meia da manhã. Pouco antes, tinha recebido uma ligação da UNESCO na qual anunciaram que eu tinha ganhado o concurso para coordenar o projeto cultural que ia ser criado ali. No entanto, antes de confirmar minha nomeação, afirmaram, eu teria que visitar o lugar (fazia anos que a casa estava fechada ao público e em nenhum momento, durante o concurso, os candidatos puderam conhecer o lugar que abrigaria o projeto que se postulavam a coordenar). Assim que entrei, compreendi a mensagem oculta por trás daquele convite: queriam assegurar que tinham me advertido e que eu tinha aceitado sabendo o que me esperava. Eu não ignorava que a casa estava em mau estado: tinha lido as matérias na imprensa e sabia dos conflitos. Também já a tinha visitado um tempo atrás, quando já estava muito deteriorada. Mas o que vi aquela manhã foi muito pior do que eu poderia ter imaginado. A casa, além de úmida e fria, estava escura: os sistemas elétricos tinham colapsado, as paredes jorravam sujeira e umidade, os móveis estavam amontoados e cobertos por plástico, parte do teto da sala de jantar tinha desabado por causa das infiltrações de água, plantas trepadeiras se metiam pelas janelas, o jardim, invadido por todo tipo de ervas daninhas que chegavam à minha cintura, estava irreconhecível e intransitável. Pouco depois da visita, um incêndio destruiu parte do teto e da mansarda, e a água dos bombeiros arruinou ainda mais os móveis e os livros. Um mês depois, dois homens muito bem-vestidos tocaram a campainha e quando o vigilante abriu a porta, apontaram armas, o amarraram e levaram 52 obras de arte. Esses episódios chegaram aos jornais e canais de notícia e tornaram ainda mais difícil uma solução.       

Entre 2003 e 2014 a casa é restaurada e se transforma no museu que conhecemos hoje. É uma ironia histórica que o projeto cosmopolita de Victoria só se realize com o aporte do governo argentino. Segundo Nicolás Helft, o estado financiou grande parte das obras de renovação de Villa Ocampo graças a intervenção da então senadora Cristina Fernández de Kirchner. O que Victoria teria achado disso? Talvez seja argumentável que a doação das casas à UNESCO em 1973 tenha sido uma reação ao retorno de Perón à presidência. Trinta anos depois, é um governo peronista que possibilita a restauração.      

Mas as coisas não são lineares assim. Nesses trinta anos, a Argentina assiste à morte de Perón e ao golpe em Isabelita, vive uma das ditaduras civil-militares mais cruentas da história, guerreia com a Inglaterra pelas Malvinas, se entusiasma com a primavera alfonsinista, julga e condena militares por crimes de lesa-humanidade, vê o peronista Carlos Menem assinar os indultos que revertem tudo isso, entra em colapso econômico com direito a presidente Fernando de la Rúa fugindo de helicóptero da Casa Rosada, testemunha o ressurgimento do peronismo agora atualizado em kirchnerismo. Victoria Ocampo não viveu para ver esses momentos decisivos da história recente argentina. E no período que viveu, não foi fotografada ao lado do general Videla, como foi seu amigo Borges. Difícil projetar que alianças faria, mas não me surpreenderia vê-la tomando chá com Cristina Kirchner na varanda da Villa Ocampo.    

Casa com jardim na frente de um prédio

Descrição gerada automaticamente com confiança média
Villa Ocampo, San Isidro

Karina de Castilhos Lucena é professora do Instituto de Letras da UFRGS.

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