Entrevista

Bruno Mello – Vidas removidas, vilas destruídas

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Bruno Mello – Vidas removidas, vilas destruídas

Remoção, segundo o dicionário Caldas Aulete, é “ação ou resultado de remover pessoas ou coisas de algum lugar”. Arquiteto, urbanista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Bruno Mello narra sua convivência com pessoas submetidas a isso. Bruno escreveu Dias de Destruir, de Construir – Uma Experiência de Extensão Universitária (Libretos Editora, 2022). Trata-se de um relato das remoções de populações periféricas de Porto Alegre e reúne indignação com a busca por soluções.  A história de uma comunidade com mais de 60 anos de existência e resistência, que de uma hora para outra perderia suas referências; famílias que sempre conviveram corriam o risco de romper seus laços e perder seus contatos.

O interesse do capital sempre tende a prevalecer sobre quem é considerado descartável, quase invisível. Isso acontece a todo momento, mas no caso específico se trata de uma luta para resistir a uma remoção das comunidades das Vila Nazaré e Povo Sem Medo, localizadas na zona norte de Porto Alegre, a questionar as ações de uma poderosa empresa alemã, a Fraport, que se propôs a ampliar a pista de pouso e decolagem do Aeroporto Salgado Filho, cuja concessão foi obtida por ela num leilão promovido pelo Governo Federal. 

Quem melhor define a situação é o autor: “– De um lado a Fraport, empresa alemã operadora de aeroportos e indústrias e empresa de logística aeroportuária, que reconhece o valor daquela localização na cidade; que enxerga naquele pedaço e terra uma oportunidade de lucros advindos de sua localização. De outro lado, estão as famílias da Vila Nazaré, que habitam a região há décadas, que construíram profundos laços com o local e solidariedade entre si, que querem permanecer no local, mas são pressionadas a abandoná-lo pela retirada dos serviços públicos e da infraestrutura”, escreve.

Uma narrativa direta, pungente e participativa do autor, que é doutor em Planejamento Urbano e Regional e professor do Departamento de Urbanismo na Faculdade de Arquitetura da UFRGS. No livro, narra uma história igual à de tantas comunidades que sobrevivem no improviso, em áreas de risco, quase sem infraestrutura e em habitações sujeitas à intempérie, e no caso concreto soma-se ainda a poluição sonora dos aviões que pousam e decolam na pista do Salgado Filho. Mas as pessoas que vivem nessas duras condições não estão ali propriamente por mera escolha, como se sabe.

Ao longo de dois anos, de 2019 a 2021, a ação das autoridades municipais e da empresa vencedora do leilão do aeroporto Salgado Filho simplesmente ignorou o destino dos moradores da Vila Nazaré e da Povo Sem Medo. Máquinas destruindo suas precárias moradias, tal era pressa e insensibilidade, por pouco não ocorrendo uma tragédia: enquanto derrubavam uma casa, havia crianças dentro, como gritavam os moradores que as salvaram, segundo o que foi relatado ao Bruno e equipe.  

O aprendizado que uma troca de uma visão acadêmica, com um olhar crítico e solidário pelas condições daquelas famílias, agregou a dura experiência de vida de cada um e cada uma do resistente povo, aprendendo e ensinando a lutar pelo direito humano à moradia.  Não custa lembra o que está previsto na Constituição de 1988, no seu artigo 6°: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados na forma desta Constituição”. Quase nenhum desses itens está contemplado na vida dos moradores da Vila Nazaré e da Povo Sem Medo.  

Diário de lutas

Em fotografias emblemáticas e um texto enxuto, Bruno Mello emociona quem o lê. Seu texto é cheio de empatia e espanto por saber quantos seres humanos, numa Porto Alegre do século 21, mal sobrevivem, enquanto se ornamenta cada vez mais a orla do Guaíba para poucos.

O docente da UFRGS leva adiante os três pilares que sustentam a razão de uma universidade pública: ensino, pesquisa e extensão. Enquanto que no meio dos excluídos há indiferença, perseguição e preconceito.

Num dos capítulos do livro, “Um Diário de 50 Dias”, Bruno detalha e escreve o que viveu, observou e dividiu com os moradores. “Era um trabalho paralelo, escrevia no mesmo dia pra não perder nada do que eu via e convivia”, relata. 

Nascido em Niterói (RJ), Bruno está radicado há cerca de 20 anos em Porto Alegre, “ainda não perdi completamente o sotaque”, diz brincando.  Bruno também é um leitor atento e aberto às influências, de Ferreira Gullar a Dante Alighieri, de Paulo Freire a Émile Zola, assim como de livros de sociologia e economia, sem faltar referências a um mestre da arquitetura e urbanismo do século passado, Le Corbusier.  Autores aos quais Bruno Mello recorre ao longo do texto, com citações e comentários. Por exemplo, quanto a Le Corbusier, ele entende que, apesar de toda a genialidade, na visão futurista do mestre suíço havia uma fé na máquina, no tal aeroplano. Por ironia, era tal “o barulho dos aviões a pausar ou decolar a cada instante que os moradores, nas rodas de conversa, apenas interrompiam o papo durante a passagem da aeronave” e logo “voltavam a conversar como se tudo fosse muito normal”, detalha Bruno.  

Foi decisiva a parceria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, da sua Faculdade de Arquitetura, por meio de um projeto de extensão para o registro das histórias destas pessoas diretamente atingidas. Para Bruno, o tripé que sustenta as ações da UGRGS, pesquisa, estudo e extensão, é algo que deveria ser repensado, com reforço quanto à extensão. Ele fala mais sobre isso, na entrevista a seguir.

Ao se referir a tantos livros e autores, revela-se um leitor sem preconceitos, assim como o ouvinte de música, quando cita canções de Paulinho da Viola a Biafra. Talvez por tudo isso, chamou a atenção do arquiteto e urbanista o fato e que a Vila Nazaré, tendo “sobre as cabeças os aviões”, tem uma biblioteca. 

“Livros à mão cheia”

Nem tudo é barulho de avião: há espaço para leitura, porque a Vila Nazaré conta com uma biblioteca. Numa homenagem a uma batalhadora local, moradora que sempre batalhou por melhoras na comunidade, surgiu a Biblioteca Tia Lila. Para agradável surpresa de Bruno, que relata no livro: “Contaram-me que os livros vieram de um hospital de Porto Alegre, que se desfez de sua biblioteca dedicada aos pacientes. A associação recebeu a doação e, com a ajuda do MTST, organizou a biblioteca. Fiquei impressionado com a qualidade do acervo – Thomas Mann, Camões, Hemingway, Graciliano Ramos, Homero, Jorge Amado, Esopo, Fernando Pessoa, Erico Verissimo, Josué de Castro, Gilberto Freire, Proudhon, Marx…”, emociona-se.

Em resumo, este livro, escrito no calor da hora, dá um testemunho de um cotidiano de luta das populações mais vulneráveis, que por “reformas urbanas” são descartadas e levadas para longe dos lugares centrais. No Brasil, isso acontece desde o início do século. Em diversas cidades, a começar pelo Rio de Janeiro, então capital do país, depois na mesma cidade, durante o governo de Carlos Lacerda, com sua política do “bota-abaixo”, quando foi criada a Cidade de Deus. E mais tarde passando por Porto Alegre, no final dos anos 1960, quando surgiu a Restinga. 

De lá para cá, pouca coisa mudou, e se mudou, ao que parece, continua a indiferença para e contra o povo do “andar de baixo”.  Mudam as cidades, mas ações são sempre semelhantes.

Por email, Bruno concedeu uma entrevista sobre seu trabalho e o livro. Fala também sobre a importância da universidade indo ao encontro de comunidade e sua interação e trocas de experiências. 

– Qual o papel da extensão da UFRGS neste projeto? Ele pode ser ampliado?

[Continua...]

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