Entrevista

Duas tragédias

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Duas tragédias

O raio da História caiu duas vezes sobre a cabeça de K. Do lado de lá do Atlântico, na Polônia, foi a perseguição aos judeus. No Brasil, onde buscou refúgio, foi o regime militar. Do cruzamento dessas duas barbáries institucionalizadas, nasceu K. Relato de uma Busca (2011), estreia na ficção do jornalista Bernardo Kucinski, 83 anos. 

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O raio da História caiu duas vezes sobre a cabeça de K. Do lado de lá do Atlântico, na Polônia, foi a perseguição aos judeus. No Brasil, onde buscou refúgio, foi o regime militar. Do cruzamento dessas duas barbáries institucionalizadas, nasceu K. Relato de uma Busca (2011), estreia na ficção do jornalista Bernardo Kucinski, 83 anos. 

Como o Joseph K. de Kafka, o velho comerciante judeu do bairro paulistano de Bom Retiro é apanhado nas malhas de uma estrutura absurda e desumana. Em busca da filha e do genro, integrantes da ALN desaparecidos em 1974, K. enfrenta não apenas a angústia de não saber se os dois estão vivos ou mortos, como é obrigado a lidar com as pistas falsas e as informações desencontradas que tornam sua jornada ainda mais penosa – e kafkiana.  

Com formação em Física, Kucinski foi jornalista especializado em Economia e professor de Jornalismo na USP. Trabalhou como assessor da secretaria de Comunicação Social da presidência da República durante o primeiro governo Lula, entre 2003 e 2006. Aos 74 anos, “reinventou-se” como escritor com o lançamento de K., romance de recorte memorialístico inspirado no esforço do pai para esclarecer as circunstâncias do desaparecimento de sua irmã caçula, Ana Rosa. 

Este ano, o autor voltou ao tema das histórias mal contadas da ditadura militar com Julia: Nos Campos Conflagrados do Senhor (Alameda, 2020), sobre filhos de desaparecidos políticos separados de suas famílias biológicas pelas forças de repressão. 

(A conversa ocorreu por email, nas primeiras semanas de novembro. Cláudia Laitano)

Parêntese K. Relato de uma Busca marca uma estreia tardia na ficção. O livro já existia como projeto antes de chegar a ser escrito?

B. Kucinski – Não. Tinha apenas uma vaga idéia de uma história em que o autor sente culpa por ter se valido de uma tragédia familiar para escrever uma novela. Nada de projeto. Nada de esquema. O livro foi nascendo sem eu perceber. Escrevia contos, um depois do outro, e subitamente num deles surge o personagem K. em um conto que nada tinha a ver com o futuro livro. Depois disso, passei a escrever episódios, que chamei de “fragmentos”, que comporiam o futuro K., ainda sem ter um projeto, mas já pensando num livro. Concentrava-me em cada episódio como se fosse único. Só no final dediquei-me à questão da continuidade da narrativa, erigindo K. como personagem central e rearranjando a ordem dos fragmentos.

P – Houve alguma dificuldade para contar essa história tão dolorosa?

BK – Não tive nenhuma dificuldade. Os episódios foram surgindo como se já estivessem prontos. Chego a dizer que foi um livro psicografado. Baixou um espírito dentro de mim e foi ele quem escreveu K (2011). O formato em capítulos autônomos e autossuficientes, como se cada um fosse um conto, é característico do meu trabalho. É o formato de Pretérito Imperfeito (2017) e de certa forma também de Os Visitantes (2016).

P – Seu livro foi traduzido para diversos idiomas e é muito estimado tanto pelos leitores comuns quanto pelos críticos. A que o senhor atribui o impacto do livro no momento do lançamento e sua permanência na memória dos leitores, quase 10 anos depois da publicação? 

BK – Para mim, é motivo de perplexidade o fascínio que K. exerce, principalmente na academia, e também em editoras de países muito distantes da nossa realidade. Embora todas as editoras sejam pequenas ou de natureza familiar ou de proposta editorial alternativa. No ano passado, saiu a edição polonesa, este ano em língua tcheca e no ano que vem sai na Turquia. Antes, saiu em oito idiomas, inclusive japonês e hebraico. Também há dezenas de mestrados, doutorados e trabalhos de conclusão de curso inspirados em K. ou em K. mais outro livro. Penso que fascínio é a palavra certa. Por exemplo, a professora e tradutora da República Tcheca que organiza uma coleção de autores contemporâneos de língua portuguesa me escreveu: “Quando acabei de ler K. decidi que esse é o livro que eu quero traduzir”. Mas, como eu disse, para mim ainda é motivo de perplexidade. Sempre pergunto o motivo e até hoje não me explicaram.

P – Que papel o senhor imagina que a literatura de recorte memorialístico pode desempenhar em um país com tantas dívidas com o próprio passado? 

BK – Não creio que a literatura deva necessariamente se propor a exercer um determinado papel na cena social, embora possa acabar por exercer. Nesse sentido, e apenas nesse e numa cena social tão empobrecida como a nossa, a literatura de conteúdo memorialista é insubstituível.

P – Qual o segredo para falar de política e fazer boa literatura ao mesmo tempo?

BK – Ao me reinventar como ficcionista (pois foi isso que aconteceu) já passando dos 70, peguei gosto e decidi aposentar o jornalismo e a política. Viver outra vida. Com exceção de A Nova Ordem (2019), que por isso mesmo chamei de uma “novela de intervenção”,  gosto de pensar que faço literatura e não política, ainda que a política impregne minhas histórias.

P – Na nossa lista, o senhor aparece acompanhado por outros grandes autores da literatura brasileira recente. O senhor gostaria de comentar a obra de algum deles? Algo lhe chamou a atenção?

BK – Confesso que ignoro o trabalho de alguns. Dos que conheço, apreciei bastante O Filho Eterno (2007), de Cristovão Tezza, uma obra muito especial. Também gostei de Nove Noites (2002), de Bernardo Carvalho, e Dois Irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005), de Milton Hatoum.

P – Há algum livro não mencionado que o senhor gostaria de destacar?

BK – Vinte anos é tempo demais para a minha memória. Tenho lido muitos autores portugueses e africanos de língua portuguesa, em especial Mia Couto e Agualusa. Há alguns brasileiros excepcionais que não aparecem na lista. De memória, lembro Poltrona 27 (2011), de Carlos Herculano Lopes.

P – Que autores o marcaram, como leitor, em diferentes etapas da vida?

BK – Fui marcado muito mais pelos estrangeiros do que pelos brasileiros. Na infância, Monteiro Lobato e os livros de aventuras de Karl May, Mark Twain e da coleção Terramarear. Da juventude em diante, li muitos autores estrangeiros, em especial os russos e os autoras da “angry generation”, Hemingway, Jack London, Silone, Steinbeck. Depois Sartre, Malraux, Baldwin, e vai por aí.

P – Qual o retorno mais surpreendente que o senhor recebeu depois que K. foi publicado?

BK – Foram dois. Primeiro: a convicção de militantes da ALN de que a “Mensagem ao companheiro Klemente”, último capítulo do livro, é um documento genuíno da época que por algum caminho veio parar em minhas mão. Trata-se, na verdade, de um capítulo totalmente inventado, da primeira à última linha. O outro foi a decisão da congregação do Instituto de Química de aprovar um voto de repúdio ao livro, repetindo com isso a postura condenável de mais de 30 anos antes que o livro expõe. (Ana Rosa Kucinski Silva, irmã do escritor e personagem de K., era professora no Instituto de Química da USP quando desapareceu e foi desligada da universidade por “abandono de emprego”.) Ambas reações e outras são relatadas no meu Os Visitantes.

P – Houve alguma nova informação que chegou ao senhor depois da publicação do livro que o senhor gostaria de ter incluído?

BK – Sim, a informação de que os corpos da minha irmã e do meu cunhado foram incinerados na fornalha de uma usina de açúcar no município fluminense de Campos dos Goytacazes, não muitos dias depois de terem sido seqüestrados em São Paulo, talvez dois ou três dias. Principalmente por causa dessa informação escrevi Os Visitantes, que fecha com esse episódio.

P – K. foi escrito sete anos antes de um homem que defende publicamente a tortura e a ditadura militar chegar à presidência da República. Como alguém que viveu e escreveu sobre o terror daquele período encara a atual momento da política brasileira? O senhor vê algum sinal de luz no fim desse túnel?

BK – Sou pessimista quanto ao nosso futuro. Decepcionei-me principalmente com o fato de muita gente de bem, instruída, educada, informada, ter votado numa pessoa com deformações de personalidade assim graves e conhecidas de antemão.


Cláudia Laitano é jornalista, com especialização em Economia da Cultura. É mestranda em Literatura pela UFRGS, com pesquisa sobre Carlos Reverbel. É autora de “Agora eu era” e “Meus livros, meus filmes e tudo o mais”, ambos pela L&PM.

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