Entrevista

Fábio Kühn: Porto Alegre, 250 anos

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Fábio Kühn: Porto Alegre, 250 anos

Foi lançado há pouco, pela editora Oikos, o livro Porto Alegre, 250 anos – De uma vila escravista a uma cidade de imigrantes (séculos XVIII e XIX), com organização de Fábio Kühn e Ana Sílvia Volpi Scott. A propósito, fizemos essa conversa com o Fábio, professor do departamento de História da UFRGS. 

O livro é um excelente caso de pesquisa profissional, que rediscute o passado pela leitura crítica e sofisticada de documentos que até aqui dormiam em prateleiras empoeiradas.

Os 15 capítulos começam com um excelente panorama de Charles Monteiro, que repassa os modos como a história de Porto Alegre foi sendo contada, por amadores, cronistas e historiadores, ao largo do tempo. Destaco o capítulo sobre a Santa Casa, instituição que foi muito mais que hospital e casa de órfãos, já que funcionou como banco por muito tempo. 

Há também ótimos capítulos sobre a face local da escravidão. Ficamos sabendo que entre 1782 e 1802 por volta de 60% dos domicílios porto-alegrenses eram habitados por proprietários de pessoas. 


Parêntese – Começando pelo presente: qual o impacto do fechamento do programa de pós-graduação em História da UNISINOS, poucas semanas atrás? Que patrimônio esse programa havia construído? Que perspectivas há agora?

Fábio Kühn – Sem dúvida, um impacto imenso, pois tratava-se de um programa consolidado, com 35 anos de existência e um corpo docente de alto nível. Era um dos poucos programas com área de concentração em Estudos Latino-Americanos, tendo produzido centenas de teses e dissertações ao longo de sua existência. Além disso, fora das universidades federais, era um dos poucos programas em História existentes em uma instituição privada, mas que prezava pela excelência acadêmica. Portanto, joga-se fora um grande investimento em capital humano que foi feito nos últimos anos, em um movimento claramente condicionado pela lógica de mercado. Com isso, perdemos todos, a sociedade que financiou a montagem e consolidação desse programa, os alunos que perdem uma opção importante de pós-graduação e, evidentemente, os professores que foram demitidos, alguns com longas trajetórias na docência e na pesquisa. As perspectivas, mantidas as tendências atuais, não são promissoras para os cursos de pós-graduação na área de humanidades, engolfados pelo utilitarismo que se enraíza no meio acadêmico. O grande temor, é claro, refere-se ao futuro desses cursos nas universidades públicas, que contam com um financiamento cada vez menor.

P – Sobre o novo livro: a seleção dos colaboradores foi tranquila? Ou havia muito mais pesquisas potencialmente interessantes para o livro? 

FK – Sim, felizmente já temos uma quantidade bastante razoável de pesquisas sobre a história de Porto Alegre nos séculos XVIII e XIX, produzidas nos principais programas de pós-graduação em História da capital e arredores. O que facilitou bastante foi o fato de eu estar vinculado ao PPGH da UFRGS, portanto tinha conhecimento dos principais trabalhos que se destacaram nos últimos anos. Da mesma forma, a minha colega e coorganizadora do livro, Ana Sílvia Volpi Scott, hoje na Unicamp, trabalhou durante anos na Unisinos, onde também orientou e acompanhou muitos trabalhos. Mas, apesar disso, não se trata de uma iniciativa que apenas reuniu autores e autoras que haviam sido vinculados de alguma maneira aos nossos projetos de pesquisa na pós-graduação, pois além dos jovens historiadores e historiadoras formados nas nossas instituições também convidamos pesquisadores e pesquisadoras que não podem ser chamados de iniciantes. Essa foi a ideia geral, reunir algumas das pesquisas de ponta da nova historiografia sobre Porto Alegre, mas também incluir autores e autoras já renomados.  



P- A ênfase nos estudos da dinâmica social – tanto índices de população em geral, quanto estudos sobre a presença de afrodescendentes, germânicos e italianos – foi proposital?

FK – De certa forma foi proposital, isso em função da minha formação na área de História Social e da formação da Ana Sílvia na área de Demografia Histórica. Por isso, alguns dos capítulos dão conta dos aspectos populacionais de Porto Alegre. Na verdade, toda a primeira parte do livro aborda esse tema. No texto do Dario Scott, temos uma análise da dinâmica populacional nos primeiros cem anos da cidade, se valendo especialmente dos registros eclesiásticos de batismos e óbitos. Por sua vez, Jaqueline Brizola abordou um dos temas da hora, revisitando as epidemias que afligiram a população porto-alegrense ao longo do século XIX. Outros/as autores/as abordaram segmentos específicos, como a importância das “gentes do mar”, os marinheiros que faziam parte da população flutuante da cidade (Denize Freitas) ou ainda os “expostos”, crianças abandonadas que eram mantidas pela Câmara de Porto Alegre (Jonathan Silva). Outra parte do livro se dedicou aos diferentes grupos étnicos formadores da cidade, levando em conta as principais correntes populacionais que formaram o seu substrato demográfico. Daí que tenhamos contribuições que tratam dos afrodescendentes (Daniele Vieira), alemães (René Gertz) e italianos (Antonio de Ruggiero), os grupos majoritários na configuração da sociedade local. Claro que existiram outras pessoas, de origens variadas (portugueses, espanhóis, etc.), que ficaram de fora, mas tivemos que fazer opções para poder dar conta da empreitada. Outra parte importante dedicou-se a discutir a relevância do sistema escravista para a formação de Porto Alegre, com os estudos sobre a “plebe negra” (Luciano Gomes), libertos (Gabriel Aladrén) e o tráfico de escravizados (Gabriel Berute). 

Mas para não dizer que não tratamos da história político-administrativa, também temos uma parte dedicada às instituições que deram forma a Porto Alegre, onde temas como a “capitalidade” de Porto Alegre são discutidos (Adriano Comissoli). Também temos estudos sobre a Santa Casa de Misericórdia (Pedro Meireles) e o Juizado de Órfãos (José Cardozo), ambas instituições fundamentais para a existência da cidade. O núcleo urbano que assim se formou também foi representado pela cartografia oitocentista, no estudo de Daniela Fialho sobre os mapas antigos. 

P – É possível perceber uma tendência geral nos temas mais prestigiados nas pesquisas do campo da História neste momento? E há temas que em alguma medida “saíram de moda”? Por quê?

FK – Não acredito que haja propriamente uma tendência geral, mas a historiografia contemporânea apresenta uma predisposição à fragmentação temática, acompanhada de uma diversidade teórico-metodológica. Me parece que a história política e econômica mais tradicional perdeu terreno, enquanto a história social e cultural vem em um processo de ascensão nos últimos trinta anos, mais ou menos. De fato, desde os anos 1990 (e mesmo antes) a influência da renovada historiografia europeia se fez sentir no Brasil. Autores como o britânico Edward Thompson, o francês Roger Chartier e o italiano Carlo Ginzburg passaram a ser cada vez mais citados e a servirem de suporte para diversas pesquisas históricas. Ao mesmo tempo surgiu uma “nova” história política e até mesmo estudos altamente inovadores no campo da história econômica (João Fragoso). 

O cenário historiográfico brasileiro atual é bastante diversificado, mas marcado em parte pelo presentismo, com uma ênfase muito grande no período republicano. A denominada “história do tempo presente” tem pautado muitas investigações sobre o período da ditadura militar ou sobre os “usos políticos do passado”. Apesar disso, temos alguns nichos de pesquisadores dedicados a temas relativamente mais circunscritos, como história antiga ou história medieval, mas pouca gente pesquisando história moderna. Por outro lado, existe uma comunidade de historiadores dedicados ao período colonial do Brasil, bastante consistente, com eventos de grande porte e um número razoável de publicações. Sinal dos tempos, os temas “identitários” têm merecido cada vez mais atenção, com os estudos sobre gênero e pós-abolição em franco crescimento.

P – Seria possível traçar uma comparação entre o presente momento histórico no campo da historiografia profissional/acadêmica e o momento em que tu foste aluno de graduação e iniciavas no mundo da pesquisa?

FK – Se fizermos um exercício de retrospecção histórica, veremos que o panorama mudou radicalmente nos últimos 30 anos. Na minha época de aluno de graduação, o sistema de pós-graduação dava ainda seus primeiros passos. Os principais programas foram criados a partir do final dos anos 1980 (embora o da PUCRS fosse mais antigo), o que passou a tornar possível uma formação ampliada de quadros de alto nível, inicialmente mestres, depois também doutores. Até então, as perspectivas para um estudante de História eram voltadas ao campo do magistério, como professores de ensino básico ou médio. Com a disseminação da pós-graduação, foi possível manter os melhores alunos na Universidade, ampliando a produção de conhecimento e formando quadros que seriam absorvidos pela expansão do sistema universitário, em especial das universidades e institutos federais. Pelo menos essa foi a realidade até o golpe de 2016. Nos últimos anos, assistimos ao um processo de desmonte acelerado do ensino superior brasileiro, com a diminuição do financiamento público, situação agravada pela pandemia.

Portanto, para quem se formava na década de 1990 ou mesmo nos anos seguintes, as possibilidades de colocação profissional eram bem maiores do que nos dias de hoje, onde temos uma “superprodução” de mestres e doutores, fruto da expansão do referido sistema de pós-graduação, mas que desgraçadamente não encontram empregos na área. Uma situação desoladora e agravada pela diminuição dos concursos públicos na área do magistério, o que absorvia uma parte dos egressos. Então vivemos uma situação paradoxal: após anos de investimentos, temos uma massa de pesquisadores qualificados, mas que não são absorvidos pelo mercado de trabalho.

P – Uma última questão, baseada numa percepção que não sei se eu saberia explicar direito: por que tão poucos historiadores (e cientistas sociais também) formados no Rio Grande do Sul, creio que em todos os tempos, se dedicaram a propor leituras de conjunto sobre o país? Além de Raymundo Faoro com Os donos do poder, por sinal reeditado há pouco, houve algum caso notável?

FK – Essa é uma questão de difícil resposta, mas talvez seja possível levantar algumas hipóteses ao menos. De fato, além do clássico livro do Faoro, consigo lembrar do trabalho do Viana Moog, Bandeirantes e pioneiros, publicado originalmente em 1954. No entanto, este é um trabalho bem menos impactante do que Os donos do poder, apesar de certa originalidade na abordagem. Mas tentando responder, talvez uma explicação seja o peso do regionalismo na cultura historiográfica local, a começar pela produção do Instituto Histórico e Geográfico do RS, o IHGRGS, onde os temas relevantes sempre tiverem um recorte regional. Temas como as Missões Jesuíticas e a Guerra dos Farrapos foram privilegiados por estes autores, casos de Aurélio Porto e Alfredo Varela, por exemplo. Essa historiografia tradicional teve que operar todo um trabalho de reconstrução histórica para tentar inserir o Rio Grande do Sul dentro da história do Brasil, já que por muito tempo a província/estado sulino era visto como algo à parte da formação social brasileira. Remeto aqui ao trabalho da Ieda Gutfreind, onde ela demonstrou que a duras penas, acabaria prevalecendo a matriz lusitana, que defendia o pertencimento do Rio Grande ao Brasil, em contraposição à denominada matriz platina. Mesmo quando surgiu a historiografia acadêmica, o recorte regional ainda permaneceu dominante. Tomemos o exemplo da historiadora Sandra Pesavento, talvez a intelectual que mais projeção teve no Brasil no final do século passado. Antes da sua virada para a história cultural, o seu livro mais famoso era sobre a formação da burguesia gaúcha. Quando ela foi convidada pela finada editora Brasiliense para participar do seu projeto de divulgação histórica (Tudo é História), o tema sugerido foi a Revolução Farroupilha, mais uma vez o recorte regional, o privilegiamento da especificidade. Por isso, a gente brinca dizendo que quando um historiador do eixo Rio-São Paulo escreve algo, está fazendo história do Brasil, mas isso não vale para os gaúchos, sempre identificados com o regionalismo.

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