Entrevista

Marcos Breda: “Estamos passando por um dos momentos mais difíceis na história do Brasil”

Change Size Text
Marcos Breda: “Estamos passando por um dos momentos mais difíceis na história do Brasil” Marcos Breda no longa-metragem Sujeito Oculto, 2019. Direção de Léo Falcão. Foto de Joãomiguel Pinheiro.

Ator de múltiplos talentos, forjado no exercício diário da profissão ao longo de pouco mais de quatro décadas de atuação, Marcos Breda (62 anos completados no próximo dia 14 de outubro) transita entre o teatro, o cinema e a televisão colecionando mais de uma centena de personagens e alguns importantes prêmios. Breda chegou a cursar Engenharia Mecânica (1978-1979) e Engenharia de Minas (1980-1981), antes de se graduar em Letras (1990) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e de se tornar mestre em Teatro pela UniRio (1999), o que lhe garantiu sólida formação intelectual, artística, humanista e política. Desde o início da carreira, nunca parou de atuar, e 2022 marca a conquista de dois novos personagens em filmes rodados no RS – além da participação em novelas e séries –, um deles do escritor e diretor Tabajara Ruas, com gravações que acontecem entre setembro e outubro. Ao lado do colega e amigo Werner Schünemann, ensaia uma nova peça, Mais Esperto que o Diabo (texto de Napoleon Hill com adaptação e direção de Paulo Nascimento), prevista para estrear no início de 2023. Radicado há 35 anos no Rio de Janeiro, com uma breve passagem anterior por São Paulo, Breda nunca perdeu seus laços afetivos com a terra natal. 

A entrevista inédita que a revista Parêntese publica a seguir apresenta aos leitores a íntegra da conversa entre Marcos Breda e o pesquisador teatral Cristiano Goldschmidt, que extraiu do artista questões até então pouco conhecidas, como os detalhes da sua pesquisa de mestrado, na qual Breda desenvolveu uma tese sobre a capoeira na preparação dos atores e a aproximação entre as duas artes no jogo e na improvisação em cena. O início da carreira na década de 1980, os trabalhos mais marcantes, as influências do amigo Caio Fernando Abreu e o reconhecimento ao parceiro de tantos trabalhos no teatro Luiz Arthur Nunes, também estiveram em pauta. Dentre os assuntos abordados, há ainda reflexões sobre o Brasil contemporâneo, sobre as políticas públicas na área da cultura e uma análise das transformações pelas quais o audiovisual passou nas últimas décadas.  Boa leitura!


Cristiano: Quero começar nossa conversa falando da década de 1980, época das tuas primeiras incursões pelo teatro. Quando te entrevistei anos atrás para minha pesquisa de mestrado, falaste do quão importante foram os livros da Olga Reverbel na tua formação artística – embora não tenhas tido aula com ela – e do quanto os livros dela também te ajudaram nas aulas de teatro que tu posteriormente deste. Afinal, quem foram os professores e os diretores que te moldaram como ator naquele início?

Breda: Eu lembro que a primeira vez que eu coloquei os pés num teatro e saí com a ideia de que ser ator podia ser uma possibilidade extraordinária foi quando o pessoal do Asdrúbal Trouxe o Trombone foi para Porto Alegre e apresentou no Teatro Presidente a histórica montagem de Trate-me Leão. E foi a primeira vez que eu fui num teatro e saí encantado com aquela extraordinária encenação. Para a gente que ainda era teenager – 18, 19, 20 anos –, era uma explosão de vida, de teatralidade. Lembro que esse foi o primeiro lampejo. Logo em seguida, eu comecei a assistir muito teatro, e na metade de 1981, convidado por uma amiga, fui a um ensaio de Marat/Sade, do Peter Weiss, com direção do Néstor Monasterio. Depois de assistir ao ensaio eu fiquei fascinado com aquele processo, como espectador. Fiquei ali assistindo dois, três dias seguidos, até que o Néstor falou assim: “Escuta, quer fazer figuração? A gente tá precisando de figurantes”. Eu entrei pra fazer figuração na peça e esse foi o meu primeiro espetáculo, que estreou em março de 1982, no Teatro Renascença. A primeira peça que eu fiz na minha vida. 

O Néstor Monasterio foi meu primeiro professor e um diretor extraordinário, junto com o Juan Carlos Sosa, com quem ele dividia a direção, faziam “a quatro mãos”. Eu participei daquele processo e foi uma coisa maravilhosa. Logo depois disso, acabei entrando no grupo Vende-se Sonhos, que no início de 1980 tinha feito a peça School’s out (direção coletiva), e eu era fã. Aliás, esse pessoal do Vende-se Sonhos nasceu de uma oficina do Asdrúbal da qual eles participaram. Eu lembro que assisti School’s out e pedi autógrafo pra essa garotada da peça, e cerca de dois anos depois estava trabalhando com eles. Com essa peça a gente estreou no Cio da Terra, em outubro de 1982, e entramos em cartaz no Teatro Renascença, no início de 1983. 

Nessa época também comecei a fazer as primeiras coisas em cinema. Trabalhei com o Sérgio Silva num média-metragem chamado Às Margens Plácidas (1983). Fiz uma figuração no Inverno (1983), do Carlos Gerbase, do qual o Werner Schünemann era o protagonista. Eu fazia uma figuração, passava de moto na frente do Ribs (lanchonete na Rua 24 de Outubro). Depois disso veio o Verdes Anos (dirigido por Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil, filmado em agosto e setembro de 1983, lançado em 1984), um longa-metragem muito importante pra gente naquela época, e que concorreu no Festival de Gramado, em 1984 (filme vencedor do prêmio Revelação). Eu fiquei trabalhando em Porto Alegre, fazendo criação coletiva, aos moldes do Asdrúbal e do Vende-se Sonhos, o grupo em que eu trabalhava. Ainda no final dessa primeira metade da década de 80, eu acabei indo trabalhar com o Júlio Conte, fiz o Bailei na Curva, que foi o meu último trabalho em teatro antes de sair de Porto Alegre. 

Então, nessa primeira metade da década de 80, eu fiz Marat/Sade, com o Monasterio. Depois Trenaflor (1982) e Das Duas, Uma (1984) – essas duas peças com o Vende-se Sonhos. Fiz um infantil, chamado Mil e Uma Histórias (1983), do Carlos Carvalho, também com direção do Néstor Monasterio. E, finalmente, em 1985, o Bailei na Curva, do Júlio Conte. E, no meio disso, os longa-metragens Verdes Anos e Me beija (1983, direção de Werner Schünemann). Até que, na metade de 1986, eu fiz um teste pro longa-metragem Feliz Ano Velho [dirigido por Roberto Gervitz, foi estrelado por Malu Mader e Marcos Breda, como protagonista, que ganhou o prêmio de melhor ator no Rio Cine Festival, em 1988], peguei o protagonista do filme e me mudei para São Paulo. Nunca mais voltei a morar em Porto Alegre. Morei um ano por lá. Quando terminou o filme, acabei dividindo apartamento com o Caio Fernando Abreu. Na metade de 1987, um ano depois, eu me mudei para o Rio de Janeiro pra fazer uma novela chamada Helena, da extinta TV Manchete. Já estou aqui no Rio de Janeiro há 35 anos, com dois filhos cariocas. De lá pra cá foram 44 peças de teatro, 30 e tantos filmes, mais de 40 trabalhos em televisão – novelas, minisséries, etc. 


Marcos Breda com colegas de elenco da peça Trenaflor (1982-1983). Foto de Luiz Felizardo.

Cristiano: Tens algum artista na família ou tu foste o primeiro a ir por esse caminho? 

Breda: O primeiro, “a ovelha negra da família”. Meu pai era militar da aeronáutica, minha mãe era dona de casa, costureira. Na minha família eu fui, até onde minha vista alcança, o cara que torceu a cabeça e resolveu enveredar por essa outra seara. 

Cristiano: Passados tantos anos, como avalia esse percurso? Algum arrependimento?

Breda: É uma decisão da qual eu nunca me arrependi. Claro que eu tive momentos maravilhosos e momentos terríveis, como qualquer um. Mas meu próprio pai dizia que quem trabalha naquilo que ama rende o dobro e cansa a metade – e é bem verdade. É uma versão gaúcha do Marcello Mastroianni dizendo: “Eu sou um homem de sorte, eu faço o que eu gosto, por isso eu não preciso trabalhar”. 42 anos se passaram desde então, e eu sigo trabalhando como ator: teatro, cinema, televisão.

Cristiano: Tua amizade com o Caio Fernando Abreu é de conhecimento público. Queria ouvir um pouco mais da relação de vocês, porque eu sei que ele te influenciou em muitas questões, inclusive nos estudos da astrologia, que para além de ser um dos teus hobbies acabou se tornando uma segunda profissão, principalmente no período da pandemia, com uma procura muito grande de clientes querendo fazer seus mapas astrológicos contigo. Até onde foi a influência do Caio na tua vida? 

Breda: O Caio, antes de ser meu amigo, era um escritor de quem eu era fã. Eu havia devorado Morangos Mofados no início da década de 80, como todos da minha geração, naquelas famosas Cantadas Literárias, da editora Brasiliense. É interessante notar que eu lembro que o primeiro livro dessa série foi o livro Porcos com Asas (de Marco L. Radice e Lidia Ravera), depois foi o Tanto Faz (de Reinaldo Moraes), e eu acho que o número 3 ou 4 era o Morangos Mofados, e logo em seguida o Feliz Ano Velho, do Marcelo Rubens Paiva. Acabaram sendo dois livros que fizeram parte, decisivamente, da minha vida. 

Mas a amizade com o Caio começou bem depois de eu ser fã do trabalho dele, da literatura dele. Eu lembro que um dia eu fui pra São Paulo, em 1984/85, onde tinha um aniversário de uma amiga minha, a Imara Reis, também atriz, e nessa festa eu conheci o Caio. Ela nos apresentou e começamos imediatamente uma grande amizade, que acabou levando a gente a dividir apartamento na São Paulo dos anos 80. E foi também a época que eu comecei a estudar astrologia com ele. 

O Caio era, além de um grande escritor, um astrólogo de mão cheia, um cara ligado em todo tipo de esoterismo. Ele brincava dizendo que de Karl Marx à Iemanjá, ele tinha passado por todas as crenças, por todos os credos. E eu comecei a estudar astrologia com ele. Naquela época ele tinha uma vasta biblioteca. E ele me ensinou a calcular, a desenhar mapas astrológicos. Eu venho estudando desde então, trabalhando com isso informalmente, durante muitos anos, e durante a pandemia eu decidi transformar isso numa segunda profissão, e estou trabalhando com ela até hoje. 

Hoje em dia, por exemplo, nesse momento em que eu estou aqui conversando com você, no intervalo entre o longa-metragem do Hsu (Chien), Um Dia Cinco Estrelas, que foi rodado em julho, e o longa-metragem Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez, do Tabajara Ruas, que é rodado agora entre setembro-outubro, entre um e outro eu estou aqui fazendo fisioterapia – pra me recuperar do acidente de moto que eu sofri em maio, quando eu quase morri –, estou gravando um áudio-livro, porque eu sou locutor, e também dando minhas consultas astrológicas. Ou seja, dia sim, dia não, eu estou trabalhando com isso. 

Cristiano: E você também montou textos do Caio…

Breda: Sim, a minha amizade com o Caio não só me fez estudar astrologia, como também me levou a montar espetáculos da obra dele. A minha primeira produção teatral foi o meu primeiro monólogo, chamado O Homem e a Mancha (1997/98), que foi o último texto que o Caio escreveu para o teatro. A obra dramatúrgica dele, embora menos numerosa, é da mesma qualidade e do mesmo nível da obra “não-dramática”, dos contos e romances. E esse monólogo, dirigido pelo Luiz Arthur Nunes e produzido por nós dois, foi o primeiro trabalho que eu fiz baseado na obra do Caio; e depois, em teatro, eu ainda fiz A Maldição do Vale Negro (2004), que eu produzi e o Arthur também dirigiu. E fiz um longa-metragem, no final dos anos 1990, chamado Sargento Garcia (2000, direção de Tutti Gregianin), baseado no conto homônimo, publicado no Morangos Mofados

Então, respondendo mais concretamente à tua pergunta sobre a influência do Caio na minha vida, posso afirmar que tanto a minha formação artística quanto pessoal foi muito pautada por elementos da obra do Caio Fernando Abreu e pelas principais obsessões estéticas e artísticas que ele tinha. Não era só astrologia, eu aprendi Tarot, aprendi I Ching, aprendi muitas coisas na minha convivência com ele e, claro, através das conversas absolutamente educativas para mim sobre inúmeras questões de literatura, de ética, de estética. Como ele mesmo dizia: “arroz integral e rock and roll”, dessa mistura que ele fazia muito bem. 

Eu não consigo conceber como teria sido a minha vida e a minha trajetória profissional sem a interferência decisiva dele, não só com a obra dele, mas com a palavra dele. Lembro-me que já morávamos juntos, e eu estava ensaiando uma peça, que acabou não dando certo, e eu estava apavorado e tinha resolvido voltar para Porto Alegre, queria largar tudo, e ele falou: “De jeito nenhum! Na primeira coisa que dá errado você vai voltar correndo pra casa dos pais? Não! Vai ficar aqui, vai correr atrás, vai batalhar, vai me ajudar a pagar o aluguel dessa casa, e a gente segue adiante”. Eu fico imaginando quão diferente tudo teria sido se não tivesse a palavra certa e pontual dele naquele momento, sobre aquelas tantas coisas que estavam acontecendo com um cara de 25, 26 anos que estava chegando no eixo Rio-São Paulo, absolutamente “xucro”. Mas as coisas acontecem na hora que tem que acontecer, e quando o aluno está pronto o professor aparece. Acredito nisso, nessa sincronicidade, em tudo isso que significou não só a pessoa do Caio, mas a obra do Caio – seminal e irrigadora de inúmeras questões na minha vida pessoal e profissional. 


Marcos Breda em A Maldição do Vale Negro, 2004. Arquivo pessoal – Autor desconhecido.

Cristiano: Tu te formou em Letras na Ufrgs e posteriormente fizeste teu mestrado em Teatro na UniRio. O que especificamente te interessou naquele momento na academia? Sobre o que foi a tua pesquisa no mestrado? Ou, ainda, antes de falar sobre a tua pesquisa, por que a formação em Letras, e não em Teatro? 

Breda: Eu fiz Engenharia Mecânica na Ufrgs entre 1978 e 1979. Fiz dois anos de curso e depois mudei pra Engenharia de Minas – 1980 e 1981. Por fim, acabei mudando pra Letras, onde me formei em 1990. Na época que eu comecei a trabalhar com teatro em Porto Alegre, no início de 81, eu ainda estava fazendo Engenharia. Mas de 75 a 80 eu fiz todo o Cultural Brasileiro Norte-Americano, ali no centro, na rua Riachuelo, onde me formei professor de inglês, com aquele diploma de proficiência na Michigan University. Como eu estava muito perdido na questão da faculdade, Letras pareceu-me um curso interessante, não só porque eu poderia utilizar todo meu estudo de Inglês, mas porque eu também havia estudado Alemão nos últimos anos – 79, 80, 81 – no Goethe, ali perto da Ramiro. Então, tendo o Alemão e o Inglês, e gostando muito de literatura, me pareceu uma escolha bastante adequada. E foi excelente, porque eu acabei me formando em Letras e isso me deu a possibilidade de, já aqui no Rio de Janeiro, cursar o mestrado. 

O meu mestrado foi a costura de duas coisas importantes: a carreira acadêmica e a prática de capoeira, que eu também havia feito desde o início dos anos 80. Eu joguei trinta e poucos anos de capoeira e acabei escrevendo uma tese de mestrado sobre a possibilidade da utilização da capoeira na preparação de atores. Essa tese foi defendida no final dos anos 1990, concluí o mestrado com ela aprovada com louvor. E essa tese acabou embasando meu pedido de bolsa de estudos para a chamada Bolsa Virtuose, concedida ainda nos anos 90 pelo Ministério da Cultura para profissionais com uma relevante carreira nas artes – teatro, cinema e televisão –, e que tivesse um projeto pessoal para o qual essa bolsa de estudos, o professor e o curso que eu escolhesse fossem relevantes. E eu tinha o desejo de estudar máscaras para poder montar Arlequim, Servidor de Dois Patrões [texto de Carlo Goldoni], que era um projeto pessoal muito importante pra mim na época. Eu acabei indo pra Inglaterra estudar com o Philippe Gaulier, em Londres, e passei quase um ano lá. Essa bolsa acabou produzindo condições para que, ao retornar, eu montasse esse espetáculo como produtor, como ator, dirigido pelo Luiz Arthur Nunes, meu orientador de mestrado e meu professor –, e também o diretor do maior número de espetáculos que eu já fiz, porque já fiz umas oito peças com ele. Se existe uma pessoa que eu posso chamar de professor – meu professor maior –, é o Luiz Arthur, com quem eu mais aprendi e com quem eu mais trabalhei. Uma pessoa por quem eu tenho extremo carinho e admiração. 

Essa temporada em Londres, com aqueles núcleos – o curso do Gaulier era baseado nas unidades do [Jacques] Lecoq, que é a máscara, o bufão, o melodrama, o clown, a tragédia grega –, originou aquela ideia de eu, junto com a Camila Pitanga, com a Maria Helena Alvarez, com o próprio Luiz Arthur, elaborarmos o projeto de montar cinco peças em dez anos, uma investigação sobre cinco vertentes da comédia ocidental. Começamos com Commedia dell’Arte (Arlequim, Servidor de Dois Patrões, 2002); passamos pra Melodrama, A Maldição do Vale Negro (2004); depois, Farsa (2007), que foi o terceiro; e, infelizmente, o último – ao invés de montarmos cinco, nós montamos três, em seis, sete anos. Porque, logo depois disso, a minha sócia, Maria Helena Alvarez, veio a falecer de uma doença degenerativa muito complicada, e isso abortou a nossa ideia de mais duas peças pra completar as cinco peças em dez anos, porque a gente queria montar também, depois de Farsa, Vaudeville e Grand Guignol. De qualquer maneira, foi a gênese, a raiz de um projeto muito legal, que ocupou muitos anos da minha vida e foi extremamente bem-sucedido, junto com os atores, com os profissionais com quem eu trabalhei. 

As coisas vão se costurando, elas obedecem a uma escrita “inaparente”, num primeiro momento, mas, ao decorrer do tempo, a vida vai fazendo essas costuras acontecerem, se evidenciarem e exercerem os seus efeitos sinérgicos positivos, enfim, sempre surpreendente. Mas existe uma lógica que num primeiro momento a gente não é capaz de compreender. 


Marcos Breda em Arlequim, Servidor de Dois Patrões, 2002-2004. Foto de Fernando Nunes.

Cristiano: Interessou-me bastante a temática da tua dissertação de mestrado: a capoeira na preparação dos atores. A que conclusão tu conseguiste chegar com essa pesquisa? Afinal, qual a contribuição da capoeira na preparação dos atores? 

Breda: A “pedra de toque” desse estudo de mestrado foi que eu me dei conta que a capoeira é o equivalente físico do jogo de contracenação dos atores. Quando você está fazendo uma improvisação, você entra em cena e propõe uma ação física. Por exemplo: eu entro em cena e começo a cortar uma folha de papel com a tesoura, e alguém entra e diz pra mim: “A sua mãe acaba de falecer”. Eu não posso, segundo as regras da boa improvisação, quebrar o jogo, quebrar a proposta da pessoa, dizendo: “Minha mãe morreu há muitos anos” ou “Eu não tive mãe”, ou “Eu não conheci minha mãe”. Porque aí o cara tá propondo algo e eu estou recusando a trocar com ele. Se o cara entra e diz “Sua mãe acabou de falecer”, o ator precisa entrar no jogo: “Mas, meu Deus, por quê? O que aconteceu?” – você vai desenvolvendo, você diz “sim, mas…”, “sim, mas…”, o jogo de improvisação é isso: sempre um “sim” e um “mas”.

No jogo de improvisação você propõe alguma coisa, a pessoa ouve e dá uma resposta dialogando com aquilo que você propôs. E a capoeira, fisicamente, é isso. Diferentemente de outras práticas de luta marcial, ou dança, a capoeira não trabalha com bloqueio de energias. Se alguém vai te dar, por exemplo, um pontapé, um soco, você não bloqueia aquele movimento, você acolhe aquele movimento e cria outro para dialogar com aquele movimento: ataque e contra-ataque. E o seu contra-ataque gera outro movimento espontâneo para absorver aquele movimento e contra-atacar. É sempre “sim, mas…”, “sim, mas…”: eu não bloqueio o movimento, eu acolho o movimento e crio outro, imediatamente, pra responder àquilo, numa partitura permanentemente reinventada a partir do acaso, a partir da improvisação, na qual nenhum dos dois jogadores detém o comando do jogo. O comando do jogo é partilhado generosamente entre os dois jogadores, ou dos dois atores, no caso da improvisação. 

Então, nesse sentido, a pedra de toque da minha tese, com a capoeira, era a ideia de poder trabalhar fisicamente essa disponibilidade e essa presentificação, que é o binômio básico de qualquer ator no palco: você está presente no aqui e agora, presente do indicativo, que é o tempo das rubricas teatrais, denotando a presentificação inerente ao ato teatral, e, ao mesmo tempo, é a disponibilidade de você improvisar, de você dialogar com aqueles estímulos externos, absolutamente imprevisíveis, que vêm no dia a dia do fazer teatral, porque a gente sabe que nunca uma peça é igual à outra. De um dia para o outro as coisas mudam, você muda, a plateia muda, os colegas mudam, tudo muda. E você tem de estar disponível para a mudança, para construir o novo, a partir dessa impermanência, vamos dizer assim. 

Então, assim como o jogo de capoeira se baseia na ginga, porque você nunca está parado, você está sempre em movimento para poder responder fisicamente aos estímulos externos da maneira adequada: acolher e contrapropor; esse também é o jogo da improvisação teatral e, em última instância, esse é o jogo dos atores em cena, pelo menos o jogo dos atores que é bom de se jogar, aquele em que ninguém detém o comando, mas os dois dependem mutuamente um do outro. 

Para que o jogo seja interessante, o importante não é o jogador brilhar, é o jogo brilhar. Isso todo o mestre de capoeira fala: “A ideia não é você usar o seu parceiro, parceira, para se exibir numa roda, é vocês dois construírem algo na roda de capoeira que seja interessante e prazeroso pra vocês dois que estão jogando e pra quem tá na plateia assistindo”, porque também a roda de capoeira é uma encenação teatral, com a plateia ali em volta, no círculo, onde todos são espectadores, todos são jogadores, todos se revezam – jogando, batendo palma, assistindo, cantando, tocando instrumentos: uma hora você tá na roda jogando, outra hora você tá sentado, batendo palma, outra hora você tá com o pandeiro na mão, ou o berimbau ou o atabaque, tocando e cantando. É um ritual extremamente lúdico e extremamente teatral, e eu acredito que isso serve não só como uma preparação física, porque exige uma elasticidade, uma força, uma explosão, um equilíbrio, mas também exige esse binômio que é fundamental no teatro, que é presentificação e disponibilidade, aqui e agora, “sim…mas”.

Cristiano: Essa tua tese me parece tão interessante e tão verdadeira do ponto de vista da atuação do ator! Em poucas palavras, de forma muita didática e simples, conseguiste me apresentar um paralelo e me convencer da proximidade entre o jogo na capoeira e o jogo dos atores em cena, na improvisação. A dissertação foi publicada em livro? Pergunto porque eu mesmo nunca ouvi falar dessa tua pesquisa no ambiente acadêmico. 

Breda: Ela está na biblioteca da UniRio, e eu tenho planos de publicá-la como livro, mas ainda não consegui. Deixei isso meio ao acaso, mas vai chegar o dia em que eu vou publicar o livro. Eu tenho esse projeto em mente, porque seria ótimo que mais pessoas tivessem acesso ao conteúdo, especialmente porque é um esporte, uma dança, genuinamente brasileira, que tem na sua raiz uma ideia subversiva. A capoeira foi criada no Brasil a partir da dança n’golo, que é uma dança do acasalamento de uma tribo da Angola que veio escravizada para o Brasil, e que eles transformaram aqueles movimentos como uma forma de luta, disfarçada, pra poder se defender dos opressores, dos feitores de escravos. Então, a capoeira tem essa questão subversiva na sua origem, na sua gênese, e ela também é absolutamente transgressiva na sua questão das camadas sociais, porque no pé do berimbau e na roda de rua você pode ser doutor, você pode ser alfabetizado, analfabeto, rico, pobre, preto, branco, homem, mulher, o que for. Você entra na roda, e dentro da roda, ao som do berimbau, você é igual a todo mundo. Tudo depende da sua disponibilidade, da sua técnica e do seu prazer de jogar. E da parceria que você estabelece com seus parceiros, que são também trocados a todo tempo: você está jogando, tira aquele cara e entra outro pra jogar, daqui a pouco você é tirado da roda e você vai sentar pra bater palma, daqui a pouco você levanta e vai tocar um instrumento, daqui a pouco você larga o instrumento e entra na roda pra “comprar um jogo”. Essa dinâmica absolutamente imprevisível, improvisada, rica, estimulante, mobilizadora, eu acho de uma utilidade extrema para os atores, porque trabalha o físico, mas trabalha principalmente a capacidade subjetiva de você responder criativamente às exigências do dia a dia de uma peça de teatro, por exemplo. 

Cristiano: Feliz Ano Velho é um filme de 1986, que estreou na metade de 1988 e que te rendeu o prêmio de melhor ator no Rio Cine Festival. Em 2000, tu recebeste o Kikito de melhor ator pelo Sargento Garcia, um curta-metragem baseado no conto do Caio. Tu vens de uma carreira extensa e muito produtiva no cinema. Como avalias a produção audiovisual brasileira nas últimas décadas, tanto do ponto de vista estético quanto da linguagem e da técnica? 

Breda: Já são quatro décadas de atuação. Quando eu comecei, evidentemente, era tudo analógico, câmeras barulhentas, e a gente trabalhava com baixíssimo orçamento. O Verdes Anos, por exemplo, foi filmado 1:1, ou seja, raríssimamente tivemos um “take 2” durante a filmagem, porque tudo era feito com extrema economia de negativos. Nessa época, aprendemos a fazer com o mínimo de recursos. Era outra linguagem, eram outros tempos. Na segunda metade da década de 80 eu trabalhei em filmes com um orçamento maior, mas ainda era tudo analógico. Naquela época, não existia TV a cabo, não existia celular, não existia internet, tudo isso que revolucionou o fazer audiovisual nas últimas duas décadas, e continua revolucionando. Foi uma transição pela qual eu passei. Por exemplo, eu trabalhava como locutor em Porto Alegre na primeira metade da década de 80 e eu, para gravar um áudio pra VT, uma locução, era num estúdio gigantesco, com enormes aparelhos, uma coisa maluca. Hoje em dia eu trabalho em casa, dentro do meu quarto; com esse Iphone e um microfonezinho eu gravo com qualidade de estúdio, e se bobear, até com mais qualidade do que a gente obtinha na primeira metade da década de 80. Ao mesmo tempo, o audiovisual, não só o cinema, mas a televisão também, com o ingresso do digital, da resolução das câmeras cada vez maiores, modificou tremendamente elementos de cenografia, da maquiagem etc. Com a definição de hoje em dia não dá mais pra usar aquelas maquiagens dos anos 80, aquela iluminação e aqueles cenários dos anos 80. A definição é incrivelmente maior, as câmeras são menores, mais práticas, não são barulhentas, não tem a questão do negativo, você pode gravar e regravar quantas vezes quiser. 

A questão principal é que hoje todo mundo virou gerador ou produtor de conteúdo. Em termos planetários, inclusive. Então, se por um lado isso possibilitou um sem-número de iniciativas de criação audiovisual, por outro também trouxe muito lixo, muita coisa ruim. Como já foi dito: antigamente o chato era relegado a um canto da festa, hoje em dia ele tem uma tribuna planetária para vomitar as suas idiotices. Junto com isso tudo também existe uma mudança de paradigma de produção e de interpretação de todas as instâncias que compõem o processo de confecção de um produto audiovisual, mas essa modificação também implica fatores estéticos e fatores éticos. 

A verdade é que ainda estamos no meio do furacão, tentando entender o que toda essa imensa modificação vem trazendo, e estamos todos ainda nos adaptando a isso. Eu, por exemplo, gravei nos últimos tempos – há cerca de um ano –, o Chuteira Preta 2, do Paulo Nascimento; eu já tinha gravado quatro anos atrás o Chuteira Preta 1, e toda fotografia foi feita com o Renato Falcão – um grande fotógrafo gaúcho que mora nos Estados Unidos –, e ele trabalha com o conceito da iluminação natural, inclusive à noite – à noite gravamos cenas à luz do luar –, e hoje em dia existem câmeras que são capazes de captar as imagens mesmo em condições de escuridão quase absoluta. As câmeras enxergam mais do que os olhos dos atores, e essas possibilidades eram impensáveis há 30, 40 anos. 

São tantas as alterações de nível técnico e tecnológico que todas elas também possibilitam modificações e melhorias nas questões estéticas, sem falar nas temáticas desse mundo contemporâneo, dominado não só por possibilidades impensadas de criação, mas também – infelizmente – por fake news, esse mundo movediço, pantanoso, que a gente tá vivendo nesse momento. Então eu acho que todos nós ainda estamos aprendendo a lidar com esses novos paradigmas, inclusive de produção: a questão da TV aberta, da TV fechada, do streaming etc., é tudo muito diferente, tanto que os meus filhos não veem televisão, eles assistem em celular, eles têm YouTube, eles assistem outras plataformas. Hoje em dia não existe mais aquela coisa da pessoa sentar na frente da televisão no horário da novela. Até existe, mas é muito menos, porque a pessoa faz o seu horário, faz a sua programação. 

Todos ainda estamos aprendendo a produzir, a nos inserir no meio dessa torre de babel tecnológica e estética, porque para nós, que somos de uma geração um pouco mais antiga – eu nasci em 1960, tenho 62 anos –, muita coisa se modificou nesses quarenta e tantos anos. É saudável e crucial que a gente se adapte a esses novos tempos, mas, ao mesmo tempo, não abrindo mão de coisas que são imutáveis. 

Cristiano: E o teatro no meio disso tudo, no meio dessas transformações, como ele resiste?

Breda: Muita gente diz que o teatro vai morrer, mas a verdade é que há cinco milênios o teatro resiste e se reinventa, especialmente quando ele se atém à sua especificidade. Hoje em dia você é capaz de, num filme, dar um tiro e a câmera acompanhar a trajetória da bala em câmera lenta, até ela se alojar na testa da vítima, do adversário. No teatro, basta você tirar um lenço vermelho do bolso e aquilo simboliza o sangue da bala que te pegou. O teatro aposta no simbólico em detrimento do explícito. Você não precisa pegar uma arma com pólvora e dar um tiro em cena, você pode usar um símbolo. 

O teatro tem essa capacidade de fazer muito mais – guardadas as proporções – com menos verba. O teatro é menos verba e mais verbo. O importante é o seguinte: também existe um diálogo saudável entre todas essas novas e recentes tecnologias, entre todas essas novas formas de realização audiovisual, artística e teatral, mas ao mesmo tempo a gente segue preservando coisas que são atemporais e que, inclusive, alimentam essas novas formas. A gente tem que ter certa sabedoria pra poder lidar com tudo isso e aproveitar o melhor de cada coisa, de cada época, sem perder de vista aquilo que é essencial. E pensar no que isso pode contribuir, utilizando essa mistura pra fazer aquilo que nos interessa fazer, dizer e discutir. 

Cristiano: Tu transitas de forma muito tranquila tanto no teatro quanto no cinema e na TV, e produzes muito nestas três linguagens. Se tu fosses instado a eleger um ou dois papeis que mais te exigiram como ator em cada uma delas, quais seriam e por quê? 

Breda: Em cinema eu poderia falar do próprio Feliz Ano Velho, que foi um divisor de águas na minha trajetória pessoal e profissional, que me fez mudar de Porto Alegre para São Paulo, e depois para o Rio de Janeiro. E não só do ponto de vista profissional, de um novo lugar onde morar e trabalhar, mas também porque Feliz Ano Velho era um filme, naquela época, em que eu também estava falando, imerso naquela coisa do personagem que procura o ator, e do ator que procura o personagem, ou seja, eu também falava de coisas que eram importantes para mim como pessoa, além de como artista, como ator – claro, todo ator quando pega um personagem importante sempre é reflexivo, sempre é metafórico de algum processo interior seu – no caso do ator. Então, esse filme, não só por tudo o que ele provocou de modificações na minha vida pessoal e profissional, ele também refletiu, discutiu coisas muito importantes pra mim, além de ser incrivelmente exigente do ponto de vista técnico, de disponibilidade física, temporal etc. Por isso, em cinema eu considero esse um dos trabalhos mais importantes, um dos mais exigentes, assim como o Sargento Garcia, que eu fiz com o Tutti Gregianin, que também foi um trabalho extraordinário, onde aquele personagem também falava de uma época e de uma questão extremamente importante, da ditadura militar e de outras tantas coisas, do afeto naqueles anos de chumbo. Em cinema, num primeiro momento, eu poderia te citar esses dois trabalhos. Muito embora eu recentemente tenha feito coisas significativas pra mim em termos pessoais. Por exemplo, com o Gustavo Spolidoro eu fui rodar em Cotiporã – cidade onde meu avô e meu pai nasceram –, um longa-metragem chamado Os Dragões. E foi incrível eu voltar à cidade onde eu passei a minha infância, onde eu brincava no pátio do hotel, e 50 anos depois o pátio do hotel havia virado set de filmagem. Então foi um resgate absolutamente extraordinário do ponto de vista pessoal. 

Em teatro, Arlequim: Servidor de Dois Patrões foi uma coisa também absolutamente extraordinária, por tudo o que ele exigiu, por toda preparação que eu tive, por toda a trajetória de vida que eu tive que percorrer até poder subir num palco e encarnar aquele lendário personagem da Commedia dell’arte. O Homem e a Mancha também, do Caio Fernando Abreu, porque foi meu primeiro monólogo. Foi uma experiência riquíssima, aterradora – lembro-me da noite da estreia, eu entrando em cena absolutamente apavorado: “meu Deus, por que eu fui inventar de fazer um monólogo?”. Então, na minha trajetória teatral eu poderia te citar esses dois, dentre tantos trabalhos, porque são 44 peças. Agora eu acabei de estrear uma como diretor, primeira peça que eu dirigi, chamada Ele, Ela e uma Garrafa de Vodka – uma peça pra dois atores, com o Marcelo Argenta e a Jaqueline Macoeh, num texto do Vinícius Cattani. 

Em televisão, agora está reprisando a novela Vamp, que a gente fez no início dos anos 90. Eu fazia um anjo da guarda da vampira protagonista, que era a Cláudia Ohana. Imagina uma vampira ter um anjo da guarda? Mas o fato é que eu era. Antes disso a gente tinha feito Que Rei Sou Eu? – que também foi uma novela de época, extraordinária, que fez um sucesso absoluto naquele tempo em que não existia TV a cabo nem internet, e tinha uma audiência imensa. O Brasil inteiro tinha parado pra assistir Que Rei Sou Eu?. E, recentemente, eu continuo trabalhando: entre setembro e outubro do ano passado eu gravei na Globo a novela Além da Ilusão; e a partir de primeiro de janeiro eu comecei a gravar a série Reis, da Record. Entre um e outro eu fiz uma série da Disney Channel chamada How To Be a Carioca. Então, entre uma novela e uma série teve esse seriado. E foram dois trabalhos muito distintos. Uma coincidência é que no dia que meu personagem teve seu último capítulo no ar em Além da Ilusão, era o dia que meu outro personagem entrava num outro canal, na série Reis. O dom da ubiquidade finalmente conseguido através dessa coincidência. 

Mas o fato é que eu continuo trabalhando em teatro, em cinema, em televisão, em publicidade, gravando audiolivros, gravando consultas astrológicas, correndo de kart, em breve vou voltar a correr a pé, porque eu sou um atleta de corrida de rua, já fiz maratona – meia maratona –, hoje em dia estou mancando, mas eu volto lá e vou conseguir, porque o pior já passou [em maio deste ano, Breda sofreu um grave acidente de moto, quando quebrou o fêmur esquerdo, a clavícula direita e uma costela direita]. 

Então, qual o substrato mais importante disso tudo? A extrema alegria e prazer que eu tenho de fazer o que eu faço, porque eu sou um apaixonado pelo trabalho, e você sendo apaixonado tudo fica mais fácil. É quase como a relação da gente com os filhos, e eu tenho dois filhos: um de 20 anos e outro de 16. E isso é nítido quando você vira pai: você não precisa avisar a seus filhos que está na hora de jogar o videogame, mas você precisa avisar que é hora de fazer o dever de casa. Quando você não quer fazer uma coisa, tudo é álibi pra você não fazer. E quando você quer fazer uma coisa, tem prazer e alegria, nada, nenhuma dificuldade é grande o suficiente pra que isso não aconteça. Eu acho que o que justifica a possibilidade de eu ter sobrevivido a esses quarenta e dois anos trabalhando e tendo fôlego, gás, interesse, tesão, alegria, prazer, pra continuar fazendo isso, é justamente a alegria em si. Oswald de Andrade dizia que a alegria é a prova dos nove. 


Marcos Breda com os filhos Daniel e Jonas, em 2018 – Arquivo Pessoal.

Cristiano: Ao longo da nossa conversa tu vens falando desse teu processo de dor e de recuperação. Tu és um motorista bastante experiente, ou seja, são anos e anos ao volante. O que aconteceu na noite daquele acidente e que lição tu tiras desse triste episódio, que poderia ter tido um desfecho ainda pior? 

Breda: Eu ainda estou mancando, porque eu sofri o acidente de moto no dia 6 de maio, e eu tive uma fratura horrível no fêmur esquerdo. Foi uma fratura cominutiva, eu não sabia esse nome, aí eu perguntei para o médico: “Quê que é uma fratura cominutiva, doutor?”, e ele me explicou: “É uma fratura estilhaçada do fêmur. O fêmur não quebrou, ele estilhaçou”. E hoje é o dia número 110 depois do acidente (a entrevista foi gravada no dia 24 de agosto de 2022), e eu ainda uso muletas pra caminhar na rua, como uma questão de segurança, e estou fazendo fisioterapia até hoje. Vou conseguir sair dessa sem sequelas, ou pelo menos não mais sequelado do que eu sempre fui (risos), é um processo muito doloroso, muito longo, mas graças a Deus eu sobrevivi e isso acabou encerrando 47 anos de vida de motociclista, porque aos 62 anos eu não posso me arriscar a levar outra queda dessas. Foi uma cirurgia gravíssima, tive de fazer uma inserção de uma haste de titânio muito grande dentro da medula óssea do fêmur. 

Cristiano: Esse acidente é mais incompreensível quando a gente pensa que, além de pilotar moto, tu também és piloto de kart. 

Breda: Eu dirijo moto há mais de quatro décadas, e eu acabei caindo sozinho, ninguém bateu em mim – isso é o mais incrível. Eu passei em cima de um quebra-molas invisível, mal sinalizado, e esse quebra-molas me projetou de moto. Era de noite, e eu saí “voando” da moto, estatelei no chão e tive essa fratura no fêmur, essa ruptura na clavícula. Eu não enxerguei, caí sozinho, porque eu estava esgotado, cansadíssimo. Estava trabalhando 7 dias por semana, doze horas por dia. Mas acho que além de exausto, de alguma maneira, não fui capaz de me proteger daquilo. Penso que isso veio a reboque, talvez, de uma necessidade de parar e reavaliar uma porção de coisas. Então, se eu não estava sendo capaz de estruturar um limite pras minhas forças, pra minha movimentação, o acidente acabou servindo pra isso: “Olha, vamos parar e vamos reavaliar uma porção de coisas”. E é o que eu estou fazendo hoje. 

E não estou glamourizando o meu acidente, mas “o que a gente pode fazer a partir disso?”, a partir de uma coisa péssima, horrível? Que lições podemos tirar? Que lições eu estou podendo tirar desse acidente, dessa parada forçada e de toda a reflexão que eu tenho feito a partir disso? 

Da mesma forma que essa pandemia nos obrigou a todos a fazermos uma reflexão, a olharmos para uma porção de coisas que ficaram agudizadas com essa parada forçada, num contexto de pandemia, e na sequência de uma quase guerra mundial, quando muitas coisas vieram à tona. Depois disso tudo a gente tem melhores condições de saber quem é quem, e, principalmente, saber quem é o quê. Não se trata também de edulcorar ou elogiar uma coisa tão difícil como, por exemplo, a pandemia. A pandemia foi uma coisa horrorosa, aliás ela ainda está aí, ela não terminou. 

A gente tem que olhar pra si mesmo e dizer: “Eu não sabia disso, então vamos aprender, vamos nos disponibilizar, vamos estar presentes e disponíveis, como ator e como ser humano”. 

Cristiano: Qual tua análise da situação política do Brasil atual, das políticas públicas voltadas para as questões culturais e artísticas? 

Breda: Uma pergunta que não quer calar: quando acaba isso? Porque é insuportável. Se alguém nos dissesse há exatos dez anos, em 2012, que 2022 seria do jeito que está sendo, a gente diria: “Isso é um absurdo, esse roteiro é fantasioso, é impossível o país descer tanto”, todas essas barbaridades acontecendo à luz do dia e a gente abismado, pasmos, assistindo tudo isso acontecer. Pelo menos da época que me foi dado viver, estamos passando por um dos momentos mais difíceis na história do Brasil. Em alguns aspectos não tão graves quanto na ditadura militar, em outros aspectos ainda mais graves que na ditadura militar. Claro que esse desgoverno não é uma questão de incompetência, ele é sim um projeto de desmantelamento. Mas eu acredito que esse pesadelo está perto do seu final, eu quero acreditar. E não é só porque eu sou um otimista quase patológico, mas porque astrologicamente existem indicações nesse sentido, e eu torço mais do que nunca para que essas indicações sejam certeiras, porque o país não aguenta mais, a arte e a cultura não aguentam mais, a população não aguenta mais. Eu não aguento mais, estou de saco muito cheio. Existe o Homo sapiens, e eu sou o “Homo indignadus tempus integralis”. Eu durmo e acordo indignado, mas não desesperado. Eu nutro a esperança de que dias melhores virão, porque virão. Mesmo a hora mais escura da noite está irremediavelmente grávida da aurora. A história é um pêndulo. Ela vai pra um ponto de inflexão direito, volta, vai para o ponto de inflexão esquerdo, e essa impermanência é tudo que existe, então eu acho que a hora mais escura dessa noite já passou e o alvorecer não tarda. Espero que você, eu e muita gente boa que eu conheço estejamos vivos e prontos pra essa nova fase que virá. 

Cristiano: Tu estás voltando pra o Rio Grande do Sul pra gravar mais um filme, Perseguição e Cerco à Juvêncio Gutierrez. Pode falar um pouquinho sobre esse projeto e sobre o teu personagem? 

Breda: Esse filme é a oportunidade de celebrar, mais uma vez, a parceria com o Tabajara Ruas. É um personagem muito interessante, o romance é extraordinário. Meu personagem chama-se Pedro, é o pai do protagonista, um narrador – o olhar daquele garoto que presencia as coisas acontecendo. Mas o meu personagem, dentre os personagens do filme, é dos que mais sofre uma transformação do início para o final, e isso é uma coisa muito interessante. É um personagem que entra em crise consigo mesmo. É fascinante você poder retratar, vivenciar um personagem com uma transformação rica. O conflito interno de um personagem é que o torna interessante para o ator fazê-lo. A gente vai filmar em Cacequi, no interior do Rio Grande do Sul. É uma forma também de eu me isolar um pouco, de ir ao encontro dessa minha limitação de movimento, porque durante esse trabalho, certamente, aprenderei uma porção de coisas, não só como ator, mas também do ponto de vista pessoal. Você tem que estar com os olhos e os ouvidos bem abertos para aprender com o teu trabalho, tanto quanto com o cotidiano mais aparentemente sem importância. Existem lições que estão sendo ensinadas a todo o tempo para o ator. E eu acho que fazer esse trabalho agora, com o Tabajara, vai me possibilitar isso: fazer algo fascinante, com uma equipe fascinante e um personagem com o qual eu inevitavelmente aprenderei coisas muito importantes e significativas pra mim. 

Cristiano: E quais são os teus projetos futuros? Alguma coisa prevista pra o próximo ano? 

Breda: Terminamos de filmar com o Tabajara em final de outubro, início de novembro, e eu e o Werner Schünemann já estamos nos preparando para ensaiar o espetáculo Mais Esperto que o Diabo, que deve estrear no início do ano que vem, um romance do Napoleon Hill. É o encontro de um escritor com o próprio Diabo. O Werner vai fazer o Diabo e eu vou fazer o escritor – o Napoleon Hill. A adaptação é do Paulo Nascimento e a direção, provavelmente, será de Aimar Labaki, diretor paulistano, que, por sinal, dirigiu um longa metragem chamado Cordialmente Teus, no qual eu contraceno com meu filho, Daniel Breda, que agora está com 16 anos. 


Marcos Breda contracenando com o filho Daniel Breda no filme Cordialmente Teus, 2020. Direção de Aimar Labaki. Foto de Jacob Solitrenick

Cristiano: Pra encerrar: Como foi a experiência de contracenar com o teu filho? Ele vai seguir os passos do pai?

Breda: Contracenar com o meu filho Daniel – tanto em televisão como em cinema – foi um dos momentos mais incríveis da minha vida. Como ator e como pai. Fiquei, claro, comovido e embevecido. Mas o melhor foi perceber que eu não era o único a gostar do trabalho dele. Os diretores gostaram, os colegas gostaram, o público gostou. Melhor ainda: ele próprio gostou e gosta de trabalhar como ator. Ele é um ator iniciante, claro, tem muito a aprender, mas ele gosta de trabalhar como ator. Gostar do que se faz não é garantia de que somos bons naquela atividade. Mas não gostar é garantia de que não somos nem seremos bons naquela atividade.

O ponto é: ele parece gostar de ser ator e já demonstra certo talento para esse tipo de trabalho. Se vai seguir carreira ou não ainda não sabemos, mas a porta já está aberta. Cabe a ele atravessar ou não essa porta. Tenho muito orgulho dele e ficaria muito feliz se ele seguisse a profissão. Mas a decisão é dele e quem tem que ficar feliz é ele. Como pai só me cabe apoiá-lo e deixar que ele seja feliz com suas escolhas. E torcer muito por ele porque o amo muito. Assim como amo muito o irmão dele, o Jonas (Breda), que já tem 20 anos e se forma em 2023 no curso de Designer Gráfico da PUC do Rio de Janeiro.

A verdade é que sou ator, locutor, produtor, diretor, professor, astrólogo, capoeirista e piloto amador de kart. Mas a minha grande alegria nessa vida é ser pai. Foi para isso, mais do que qualquer outra coisa, que vim a esse mundo. Amo demais esses dois moleques.


Cristiano Goldschmidt é jornalista e pedagogo, doutorando e mestre em Artes Cênicas pela UFRGS. Conselheiro de Estado da Cultura do RS.

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.