Entrevista

Margarida Peixoto e Marcelo Ádams: 20 anos de parceria na vida e na arte

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Margarida Peixoto e Marcelo Ádams: 20 anos de parceria na vida e na arte Margarida Peixoto e Marcelo Ádams em "Goela abaixo ou por que tu não bebes (Foto: Luciane Pires Ferreira)

Conciliar casamento e vida profissional não é tarefa fácil. Com o tempo, os desgastes aparecem, e aquilo que inicialmente parecia ser prazeroso se torna um fardo muitas vezes difícil de ser carregado. Rompem-se então os laços afetivos e profissionais, deixando para trás muitas relações que, aos olhos do público, se mostravam perfeitas. Por outro lado, há exemplos de casais que romperam paradigmas, atravessaram os anos e consolidaram suas parcerias no amor e no exercício conjunto de suas profissões. 

Na arte, temos várias histórias que ilustram o sucesso que pode alcançar uma relação construída com base no afeto, em interesses comuns e alicerçada em acordos bons para ambos os lados. Nicete Bruno e Paulo Goulart, Fernanda Montenegro e Fernando Torres, Tarcísio Meira e Glória Menezes.

A revista Parêntese traz nesta edição uma longa e inédita entrevista realizada pelo pesquisador teatral Cristiano Goldschmidt com o casal Marcelo Ádams (48) e Margarida Peixoto (65). Quem ler acompanhará os diferentes caminhos que os conduziram ao teatro e a um casamento que já dura 20 anos, completados em janeiro deste ano. A data do casamento é a mesma da fundação de sua Companhia de Teatro, que em todos esses anos levou aos palcos 13 espetáculos profissionais e mais de 30 resultantes das oficinas de montagem.  

De lá para cá, veio o reconhecimento do público e da crítica, dando-lhes muitos prêmios. Essas conquistas são o resultado de quem persegue qualidade técnica e estética em suas montagens, mas nunca de olho em possíveis premiações – como ambos afirmam em suas falas. 

Marcelo ganhou o Prêmio Açorianos de Melhor Ator, em 2006, por O homem e a Mancha; Prêmio Açorianos de Melhor Ator, em 2008, por Édipo e por O médico à força; Prêmio Braskem de Melhor Ator, em 2015, por Os homens do triângulo rosa. Margarida foi contemplada com o Prêmio Tibicuera de Melhor Atriz Coadjuvante, em 2005, por Locomoc e Millipilli; Prêmio Açorianos de Melhor Atriz Coadjuvante, em 2006, por Hamlet. Conquistaram também o Prêmio RBS de Melhor Espetáculo pelo Júri Popular, em 2008, por O médico à força; Prêmio Cena Inesquecível, concedido pela Escola de Espectadores de Porto Alegre, em 2014, pelo espetáculo Os homens do triângulo rosa. Além disso, foram diversos os Prêmios Açorianos nas categorias de Melhor Figurino e Melhor Ator Coadjuvante e prêmios de Melhor Direção e de Melhor Espetáculo em diversos espetáculos participantes em festivais realizados no interior do RS. 

Provocados, Marcelo e Margarida discorreram sobre os mais variados assuntos. Nas próximas páginas, convidamos nossos leitores a desbravarem conosco essas trajetórias profissionais cheias de memórias afetivas e de lembranças familiares, além do tanto de conhecimento em teatro, literatura e política que ambos demonstram ter, na teoria e na prática. Boa leitura!


Cristiano: Vocês tem um histórico de reconhecimento do público e da crítica no teatro gaúcho, com premiações e peças que permanecem há bastante tempo em cartaz, se renovando a cada temporada. Mas eu gostaria de iniciar ouvindo um pouco sobre a trajetória individual de vocês. Como é que começou essa história com o teatro, ou seja, desde a primeira experiência como espectadores, aquela que despertou o desejo da escolha de vocês pelo ofício, até a formação no ensino superior.

Margarida: Na verdade, eu comecei desde criança, porque eu brincava muito de interpretar. Eu era muito pequena e ia ao cinema com a minha mãe. Eu adormecia nas sessões, mas eu sempre via o começo dos filmes, ou até a metade, que eram filmes românticos para a época dela. Eu tenho 65 anos, bota 60 anos atrás. Mas quando voltava pra casa ficava imitando aquelas cenas românticas. Adorava aquilo, acho até que interpretava bem, mas claro que nem sabia, porque era uma brincadeira infantil, e foi indo, foi indo… Até que na época de escolher a faculdade eu acabei cursando Direito, e me formei. Advoguei muitos anos, mas sempre com o teatro na cabeça. Eu ia ao teatro, assistia ao teatro local, o que vinha de fora – adorava tudo, conhecia todo mundo. Claro que ninguém me conhecia, porque eu era uma espectadora. 

Um dia resolvi fazer uma oficina de teatro, quando eu tinha em torno de 35, 36 anos. E o meu primeiro professor foi o Zé Adão (Barbosa), porque eu o conhecia, era um ator que eu admirava muito. Ele já tinha a Companhia das Índias e dava um curso de teatro numa escola de tango que existia ali na avenida Independência. Me inscrevi, e adorei. Duas semanas depois do início da oficina ele me convidou para entrar na Companhia das Índias, porque viu em mim as potencialidades dos alunos que os professores veem. Ele já era um cara experiente, e me disse: “Tu és uma mulher de teatro.” Aí cheguei em casa, contei pro meu marido da época, que era um ator amador, fundador do Caixa de Pandora, da Caixa Econômica Federal, Luís Carlos Peixoto, e é por isso que desde então eu tenho esse Peixoto no sobrenome, porque eu não sou mais Peixoto, eu sou Passos por conta do Marcelo (Angelo Marcelo Ádams dos Passos), que é o nome que eu assumi quando nos casamos.

Mas aí cheguei em casa feliz e disse: “O cara (Zé Adão) me convidou pra estar na Companhia das Índias, ele vai montar Romeu e Julieta”. Nesse meio tempo, o Fernando Waschburger ia dirigir um espetáculo do Caixa de Pandora. E eu conhecia todo mundo ali. Tinha trabalhado no Caixa de Pandora, nunca como atriz, não tinha experiência nenhuma, mas cuidava dos figurinos, maquiava, fazia bilheteria, contrarregragem, fazia tudo o que tinha que fazer, porque o Carlos, meu marido, estava sempre nos elencos, então eu estava junto, numa parceria mesmo, e foi maravilhoso. Hoje não tem bilheteiro que me dê caô. A gente aprende a fazer de tudo. Só não sei fazer luz, não sei ir lá pendurar e depois afinar, mas sei o que eu quero de uma luz. 

Mas o meu sonho de menina era ser bailarina. Eu não queria ter filhos porque eu ia ser bailarina e ia ter que viajar pelo mundo. Desde muito pequenininha já tinha umas coisas bastante claras para mim. Então, a arte de interpretar foi desde criança, porque eu já era uma atriz e nem sabia, e o teatro, a interpretação, foram surgindo.

Depois, já adulta, eu cheguei a uma conclusão, como muitos, de que o teatro é um ofício, é uma coisa que escolhe a gente, não é uma opção que tu vais fazer, “ai, acho que eu vou ser artista”. Ainda não vi isso, e comigo também não aconteceu. E aí, ou tu cede e te entrega e vai descobrir onde realmente tu vais ter prazer em trabalhar, vai ao encontro da tua natureza, da tua vocação inata; ou a vida toda tu vais trabalhar numa coisa que não te dê essa satisfação, mas que te dá outras, e que talvez tu odeies todos os domingos, porque na segunda-feira tens que trabalhar. Isso não acontece com a gente, até porque, via de regra, a gente trabalha nos finais de semana. 

Então o caminho foi esse. Fiz essa oficina com o Zé Adão, o Zé me convidou pra peça, mas aí o Fernando Waschburger, que era do Caixa de Pandora, estava montando um elenco e eu fui lá para ver como é que era. Fizemos umas leituras e ele me escolheu para ser “o” protagonista de uma peça infantil chamada Vida de Cachorro (texto de Flávio de Souza), um texto muito bom. E ele falou: “Eu acho que tu tinhas que fazer o Pedro”. Eu pensei: “Tá louco!” Voltei lá para o Zé Adão, onde tinha audição para o Romeu e Julieta, e disse: “Eu não vou poder fazer, porque entrei para o Caixa de Pandora, e eu vou fazer um infantil”. Aí foi aquele reboliço, “não sei quê, mas não pode”. Era um monte de gente na minha volta, e eu dizia “não, não posso, porque eu já dei a minha palavra”, aquela coisa que a gente tem de honrar a palavra. 

Resumindo, fiz as duas peças. Com o Vida de Cachorro fomos contemplados com o Funarte e viajamos pelo Brasil inteiro nos festivais, eram amadores, eram profissionais. Era uma mistura, uma bagunça. E eu ganhei o prêmio de melhor atriz com o tal do guri, o Pedro. Depois fiz o Romeu e Julieta. A Sandra Loureiro ia fazer no meu lugar, já que eu tinha negado. O Zé Adão Barbosa ia dirigir Romeu e Julieta com o João Castro Lima, que era iluminador – e que morreu precocemente – e a Sandra Loureiro, que era esposa dele, ia ser a ama do Romeu e Julieta. Mas aí, por algum motivo, eles resolveram não trabalhar juntos. A Sandra naturalmente saiu e o Zé Adão me disse: “Agora tu vens”. E eu fiz a ama. Foi o meu primeiro trabalho adulto, que também concorreu ao Açorianos (Prêmio Açorianos de Teatro). Não ganhei, mas concorri bem faceira, bem feliz. Nem na entrega do prêmio eu fui, para tu ver que eu não tinha expectativa, porque ninguém me conhecia.

E aí foi uma sequência. Eu fiquei fazendo oficinas, o Zé Adão viu em mim muito potencial, e às vezes, quando ele se atrasava, me pedia pra fazer o aquecimento e passar o texto com meus colegas. Quando eu vi, já estava dando aula, e quando eu vi, me inscrevi no vestibular e em 1999 entrei para cursar teatro na UFRGS. Fiz dois anos de licenciatura, e estava tudo indo bem, porque na época as disciplinas do bacharelado e da licenciatura eram iguais. Mas depois os cursos se dividiram, tinha umas matérias que não me interessavam, e eu disse: “Ah, eu não vou estudar isso aí de jeito nenhum, porque eu nunca vou dar aula em escola. Eu sou atriz, eu já dirijo, eu quero outra coisa”. Fiz vestibular de novo, não parei nunca de estudar, mas fiz vestibular para entrar no bacharelado, e me formei em Direção. 

E foi no DAD (Departamento de Arte Dramática da Ufrgs) que eu e o Marcelo nos conhecemos. Nós fomos convidados pelo professor Sérgio Silva, que posteriormente foi o nosso padrinho afetivo de casamento, para participar do filme dele, e fizemos o Noite de São João (estreou em 2003). Começamos a virar as noites conversando, esperando para filmar, acabamos nos aproximando e casamos. São 20 anos até agora.

Cristiano: Antes de passar a palavra para o Marcelo, tem uma coisa que eu queria te perguntar. Tu mencionas a tua experiência na infância de ir ao cinema com a tua mãe. Eu lembro que no início desse ano, na estreia de “O Inverno do Nosso Descontentamento – Nosso Ricardo III”, tu falou que ela foi a responsável pelos figurinos. Tua mãe também é uma mulher de teatro ou isso veio na carona do teu envolvimento? Tem outros artistas na família? 

Margarida: Na carona. Minha mãe é de uma geração em que na escola elas aprendiam essas artes domésticas. Ela estudou em colégio de freiras, aprendeu a costurar, a bordar, todas essas coisas que ela sempre odiou. Minha mãe nunca foi uma dona de casa vocacionada. Sempre fez isso porque precisava, como eu, com pavor dessas lides do lar, mas a gente faz porque gosta de morar num lugar organizado e limpo e onde as coisas funcionem, então tu acabas te envolvendo pelas circunstâncias. Mas ela sempre costurou muito bem, e ela tem algumas habilidades, aprendeu a fazer aqueles bordados mineiros, e isso tudo ela faz e faz muito bem. Ela costurava e as pessoas elogiavam, diziam “Que acabamento!”, sempre teve muito capricho e muito talento para isso. A minha mãe está com 90 anos, Cris, mas é uma pessoa ativa, independente, lúcida. Para não dizer que só falei de flores, ela está muito surda, mas ela ama, ela quer participar, ela quer ouvir, ela responde, ela se integra o tempo todo. 

Quando a gente foi fazer a ficha técnica do Ricardo III, queríamos muito que o figurinista fosse o Antônio Rabàdan, que criou e executou os figurinos do Homens do Triângulo Rosa (2014), porque a experiência era ótima, e ele, como pessoa, no trato, é muito bom também, e nós o chamamos de novo para desenhar os figurinos d’o Inverno do Nosso Descontentamento – Nosso Ricardo III. A roupa do coronel foi feita numa alfaiataria, mas depois ela foi para a minha mãe, porque a gente teve que fazer vários ajustes e acertos, era uma roupa imensa para eu ficar menor do que sou, eu que já sou uma mulher pequena. Fiz a sugestão e o diretor (Luciano Alabarse) acolheu. Eu disse “Quero que o meu personagem pareça menor”, para a gente trazer a mediocridade da força militar, esse lado obscuro da força militar. Eu queria que ele ficasse menor, minúsculo, e aí tu só tens esse recurso, o de aumentar a roupa. Mandamos o alfaiate fazer desse jeito e ele enlouqueceu: “Mas como?” E a gente dizia: “É assim mesmo, a manga aqui (maior que os braços), as pernas têm que cair, a cintura é aqui (mais alta), tem que sobrar muito pano, eu tenho que ficar toda como um bonequinho, um títere”. Mesmo assim ainda não ficou no ponto, e depois o figurino foi lá para a mãe. E todo o figurino do Marcelo, todo o elemento que ele usa, o macacão, o robe, os adereços de cena, aquele quepe, tudo vem da minha mãe.  O vestido da menina, o macacão que eu uso lá no final e na outra cena, também. Ela fez tudo, e também a capa do Marcelo, que pesa quase 5 kg. Não sei como a “véinha” tinha braço para fazer tudo aquilo, porque é muito pesado. 

Ela já participou de outras produções, mas é daquele jeito: “Mãe, precisamos de uma costureira”. Porque a gente trabalha sempre com orçamento apertado. E quando o orçamento não é apertado e eu posso pagar pelo trabalho dela, eu a contrato também. E dessa vez a gente não teve nenhum aporte, nenhum centavo, nada, nada, nada. A produção é da companhia, das nossas reservas pessoais, e eu disse: “Mãe, preciso…”  E aí ela vem, e borda, e faz tudo, faz acabamento. O Rabàdan ficava as tardes lá com ela, ajudando a costurar todas aquelas medalhas. É muita coisa. Mas no final a gente paga ela. Ela diz que não precisa, mas sempre reconhecemos: “não, bem capaz, está aqui, se fôssemos contratar uma costureira, eu pagaria.” E é muito legal, porque eu confio no trabalho dela. Ela faz “de boas” e a gente ainda direciona um cachê para quem merece, e tá tudo em família. Mas a minha mãe não é da arte, não. 

Quem gostaria muito de ter tido uma filha artista foi meu avô materno, pai da minha mãe, que teve 18 filhos. Minha mãe teve 17 irmãos. Seis morreram ainda na infância, mas 12 se criaram. Morreram só dois que estavam muito velhos, com quase 100 anos. A minha mãe está com 90 e ela não é a mais velha da prole. Mas o meu avô queria que uma das filhas fosse atriz. Não os filhos, mas uma das filhas. O sonho do vô Miguel era que uma das filhas fosse ou cantora ou atriz. Imagina, naquela época eram todas consideradas vagabundas. E o velho já via nisso a beleza da arte. Um homem descendente de portugueses, um homem da enxada, técnico agrícola cuja família veio para o Brasil. Um homem que vendia verduras na feira, numa carroça. Eu andei muito na carroça do meu avô, no cavalo dele, quando criança, indo a Pelotas, porque somos todos de Pelotas. E ele queria que uma filha fosse artista. 

Quando estreei no palco com o Romeu e Julieta, com direção do Zé Adão, estreamos no Teatro São Pedro, eu fazendo a ama, que é um personagem maravilhoso, meu avô veio de Pelotas para me assistir; veio toda a família, e ficaram num camarote me assistindo. Ele já estava velho, claro, porque eu já estava com quase 40. E quando eu vi, apareceu aquele povo todo no camarim, o vô com o sorrisão, porque eu tinha salvado a história da família, que não ia ficar com aquela lacuna de não ter uma artista, porque eu finalmente estava preenchendo. Ele encantado com o espetáculo e com a minha atuação. Uma coisa que foi linda e que eu guardo com muito carinho. Então para tu veres, não tem, mas tem, entendeu? Mas realmente a única pessoa que buscou e seguiu a atuação fui eu. Que eu saiba ninguém mais buscou esse caminho na minha família.

Cristiano: E contigo, Marcelo, como as coisas aconteceram?

Marcelo: Fazendo uma leitura da minha história, eu chego no teatro por causa do cinema e da literatura. Obviamente porque são mais acessíveis. Do cinema, tínhamos na televisão todos os filmes que eram possíveis de serem apresentados. Não tinha TV a cabo na época. Tudo era na TV aberta: a Rede Globo, a Bandeirantes, a Guaíba, a Manchete, onde passavam os filmes. Quando eu era criança, no começo dos anos 1980, eu assistia porque era onde os filmes clássicos eram exibidos. Inclusive filmes mudos. Eu vi na Sessão de Gala um filme mudo, de 1928. Hoje em dia a TV aberta não exibe filmes antigos, com mais de cinco anos. Só os blockbusters vão para a televisão aberta. Então, na minha infância, eu vi muitos filmes bons. Claro que eu não tenho uma noção exata de quantos nem quais filmes eu vi. Mas vi muitos filmes clássicos, a maioria deles em preto e branco, e também coisas mais recentes, da década de 1960/70. Então a minha criação foi assistindo esses filmes, que eu chamo de cinema, embora fosse na televisão. E eu passava as noites assistindo. Lembro que a cada dia da semana a TV Globo tinha uma sessão diferente. Na segunda-feira, eram os Campeões de Bilheteria, na terça-feira era o Festival de Sucessos; a cada dia da semana tinha um filme lá pela meia-noite, uma hora da manhã, às vezes mais cedo. E eu assistia tudo. 

Muitos dos filmes clássicos que hoje os meus alunos não conhecem, eu vi quando eu tinha 8, 9, 10 anos, e aquilo foi me alimentando. Eu equiparo isso com a literatura, porque comecei a ler e a escrever muito cedo, com quatro anos. Então, eu li desde muito jovem. Comecei com gibi, aquela coisa mais com imagens e com os balõezinhos, depois lendo os livros, O Avião Vermelho, do Érico Veríssimo, e similares. Depois passei para os livros da Agatha Christie, literatura mais adulta. Mas desde muito jovem, dos quatro anos em diante, eu comecei a ler e não parei mais. Eu sou um grande leitor no sentido de volume. Eu leio muito, sempre vários livros ao mesmo tempo. Minha escolha pelo teatro é uma mistura desse meu encanto com o cinema, com a imagem, com o contar uma história com imagens, e também com a literatura, que é palavra, mas aí tu constróis as imagens da tua própria cabeça. 

Acho que a gênese da minha chegada ao teatro, que se deu vários anos depois, é pela ficção. Eu fui muito encantado pela ficção, pelo contar histórias. E como eu falei, isso é muito mais próximo para a gente, porque temos o cinema na televisão, e a literatura no livro. Agora, como é que se faz teatro quando tu és criança? Ou tu fazes na escola, ou tu te matrículas em cursos, o que pra mim não era nada comum, eu não conhecia cursos de teatro para fazer quando era criança. Isso nem passava pela minha cabeça. Então, essa minha disposição pela ficção se deu, certamente, via cinema e via literatura. 

Quando eu estava um pouquinho maior, com nove, dez anos, com aquela turminha de amigos e amigas do bairro, a gente de vez em quando brincava de fazer uma história. Não chamávamos de “teatrinho” porque não conhecíamos essa palavra, teatro. Na verdade, era teatro, mas a gente não chamava assim. Cada um tinha uma personagem, era o avião que caía não sei onde, aí ficávamos na ilha deserta, essas histórias fantasiosas baseadas em filmes que víamos. A gente adorava histórias de terror. Desde pequenininho eu gostava, o castelo com o vampiro, essas histórias que as crianças gostam e se sentem estimuladas a despertar e alimentar suas fantasias. Então, foi por aí. 

Na minha infância, até durante os primeiros anos do ensino fundamental, da quinta até a oitava série, eu não tinha nenhum contato com o teatro, nunca tive, a não ser naqueles eventos de escola. Por exemplo, quando na Semana da Pátria a gente ia encenar alguma coisa. Às vezes eu fazia o papel do duque não sei do que, ou o José Bonifácio. Imagina uma criança de oito anos fazendo José Bonifácio. 

Acho que o primeiro papel que eu fiz foi o de uma vírgula. Eu gosto de brincar com isso, era na primeira ou segunda série no máximo, tinha lá aquelas historinhas dentro da própria escola, e cada criança fazia um ponto de exclamação, ponto de interrogação, e eu era a vírgula. Claro que não lembro o texto. Provavelmente eu dizia alguma coisa que tinha vírgulas no meio para demonstrar. Era um divertimento, era uma brincadeira que me dava muito prazer, mas como criança eu não encarava isso como “o que eu quero ser quando crescer…”, não pensava nisso.

Desde muito cedo eu também gostava muito de escrever, escrevia as minhas historinhas, tinha cadernos que eu escrevia histórias de mistério. Então, talvez lá nessa infância eu já começasse a pensar assim: “Eu gostaria de escrever”. E em que faculdade se escreve? Jornalismo ou Letras. Pensava: “Letras deve ser para escrever livros”. Essas coisas que você não sabe como funciona profissionalmente. Mas eu lembro que nessa fase eu me interessava pelas letras e, eventualmente, pelo jornalismo, porque eu escreveria no jornal, nas colunas. E foi por aí que eu fui me aproximando, tanto é que quando já era adulto eu fui fazer faculdade de jornalismo na FAMECOS (PUC-RS). Eu não me formei porque eu tive que fazer uma opção entre a minha carreira jornalística e a carreira no teatro. Eu não achava viável conciliar as duas, e eu fazia as duas faculdades ao mesmo tempo. Mas eu fiz 70%, 80% da faculdade de jornalismo. Eu fiz e eu gostava, porque é uma coisa que me interessa muito, principalmente a escrita.

Lá pelos 15, 16 anos, eu tive uma primeira experiência que foi uma oficina de expressão corporal no SENAC, aqui no centro de Porto Alegre, na rua Coronel Genuíno, naquele SENAC que tem até hoje, ali pertinho da av. Borges de Medeiros. Eu fiz uma oficina de algumas tardes por semana, e no final desse percurso fizemos um vídeo com algumas cenas. Eu nunca vi esse vídeo, não sei o que aconteceu com ele, mas essa foi a primeira coisa que eu fiz nesse sentido, fora essas experiências escolares que eu citei. Mas gostei muito das aulas desse curso, tanto das experiências corporais quanto dessa apresentação final, que foi gravada em vídeo. Acho que a partir daí eu comecei a pensar como uma possibilidade para fazer profissionalmente. Mas eu ainda não dei esse passo, porque eu fiz vestibular para letras, e ainda bem que não passei, porque a minha vida talvez tivesse tomado outros rumos. Eu queria entrar na faculdade, aí eu fiz vestibular para Ciências Atuariais, que eu não sei do que se trata. Eu só queria entrar na faculdade. Não passei também, e que bom que eu não passei, porque imagina eu lidando com os números, coisa que eu nunca gostei. Nunca fui uma pessoa ligada aos números, não sei por que escolhi esse curso, acho que é porque eram poucas vagas. Devo ter pensado: “Eu entro, aí depois eu faço outra coisa na UFRGS”. Mas não passei também, ainda bem. 

Quando eu fiz vestibular para teatro, eu passei de primeira, não sei se é uma coisa que Freud explica, porque eu rodei nas outras, mas na faculdade de teatro eu consegui entrar. Entrei de primeira e comecei a fazer a faculdade e até então obviamente não tinha feito nada profissionalmente. Tinha feito um espetáculo em 1993 com o Pedro Delgado, porque eu tinha sido aluno dele numa oficina de teatro que durava alguns meses. E aí foi mais ou menos o mesmo que aconteceu com a Margarida, o Pedro me convidou para fazer uma peça, me convidou para atuar. Era uma peça semiamadora, sem nenhum apoio, a gente apresentava na Cia de Arte, mas tinha bilheteria, cobrava ingresso. Eu digo semiamadora porque não tinha nenhum profissional, todo mundo ali trabalhava em outras coisas, mas fazia o seu teatro também, como é muito comum acontecer. 

A partir do convite do Pedro, senti que aquilo era bom para mim, me senti à vontade e aos poucos eu fui considerando a possibilidade de realmente fazer disso uma carreira. Eu senti vontade de me especializar, ou seja, eu queria conhecer sobre isso, porque todos aqueles colegas da primeira peça não tinham nenhuma formação acadêmica, tudo era feito na prática, você aprendia vendo e fazendo, mas ninguém podia me dizer muito mais do que aquilo, porque eles também não tinham formação para que eu pudesse aprender mais. Como eu sempre fui estudioso, pensei: “Eu tenho que estudar isso de uma forma mais profunda”, e fui fazer faculdade de teatro no DAD, o Departamento de Arte Dramática. 

Cristiano: E foi no DAD que você e a Margarida se conheceram.  A Companhia Teatro ao Quadrado, fundada por vocês dois, completou 20 anos agora em 2022…

Marcelo: 27 de janeiro de 2002 é a data que a gente convencionou como a fundação da Companhia.

Cristiano: Ao mesmo tempo em que o grupo prioriza as montagens profissionais de vocês dois, existe um trabalho paralelo capitaneado pela Margarida, que conduz as oficinas e os cursos oferecidos semestralmente e que também resultam nas montagens de final de curso realizadas com os alunos. Ou seja, tu tens todo um trabalho voltado para a docência em teatro na Uergs, e a Margarida é responsável pelos cursos e oficinas da Companhia. O teu papel na oficina é importante na medida em que a tua produção dramatúrgica se sobressai ali, nos textos que tu assinas e que muitas vezes ganham vida pela primeira vez nessas montagens. Afinal, como nasceu a Companhia Teatro ao Quadrado e qual a característica do grupo? Como vocês a definem?

Marcelo: A Companhia surgiu no âmbito do encontro de dois atores que estavam fazendo o mesmo filme (A Noite de São João, de Sérgio Silva). A gente já se conhecia muito superficialmente pelo DAD, onde eu tinha entrado dois anos antes da Margarida. A gente não teve aquelas cadeiras comuns que normalmente se tem quando se entra no mesmo ano. Talvez tenhamos feito uma disciplina teórica, mas nem éramos colegas de sentar juntos, não teve muita intimidade. De fato nos aproximamos neste processo do filme do Sérgio Silva, que foi filmado durante o mês de janeiro de 2002. Por isso que o 27 de janeiro é o dia que marcamos como aniversário da Companhia, porque foi quando ficamos juntos pela primeira vez. Eu fui na casa dela e ficamos juntos naquele dia, e a partir daí a gente não se soltou mais. O casamento aconteceu na primeira vez que ficamos juntos. Mas nesse período, durante o mês de janeiro inteiro, íamos para uma fazenda, lá em Viamão, que era a locação principal do filme, onde passávamos horas sem filmar, naquelas preparações de iluminação, onde tivemos muito tempo livre esperando, gravávamos uma coisa e esperava-se um pouco, junto com os outros colegas. Havia outras pessoas do teatro que tínhamos conhecido, que estavam junto com a gente. Então, a conversa era com todo mundo, eventualmente entre nós também, mas inicialmente não tínhamos nenhuma intenção, no sentido de que eu estou interessado nela. Era como amiga.

Margarida: Era só uma afinidade mesmo, de quando o papo é bom, e a gente virava a noite conversando e, bah, tudo a ver…

Marcelo: Uma relação que se criou do profissional porque pensávamos coisas parecidas. Quando ficamos juntos, consideramos a fundação da Companhia. E o 27 de janeiro é também o nosso aniversário de casamento, porque não tem outra data a não ser essa. Eu ainda era aluno do DAD, a Margarida também, mas eu já estava me formando quando ficamos juntos. 

Me formei em interpretação em 2002. Estava em processo de finalização do meu TCC com o Rodrigo Ruiz, e no final de abril ou em maio daquele ano apresentei meu trabalho final na Ufrgs, que se chamava A Secreta Obscenidade de Cada Dia, texto de um dramaturgo psicanalista chileno chamado Marco Antonio de la Parra. Um texto muito legal. Os personagens são o Freud e o Marx, e eu fazia o Freud. Apresentamos a peça com um bom desempenho, eu gostei de fazer. O Rodrigo e a Margarida também gostaram do resultado. E a gente pensou: “Então vamos continuar com esse trabalho, vamos levar profissionalmente para fora da universidade”, porque queríamos apostar nessa montagem. Não tínhamos nenhum dinheiro para financiar, mas já tínhamos montado para o DAD, tinha figurino, tinha cenário. Eu e o Rodrigo pensamos: “Vamos apostar, vamos ver o que acontece aí. Vamos chamar a Margarida, que está próxima, para ela dirigir com esse olhar de fora”, porque no trabalho de TCC tu não tens uma direção, é o próprio aluno que se dirige, e aí algumas coisas acabam ficando um pouco precárias, porque não tem esse olhar importante de fora que a encenação precisa. Convidamos a Margarida para dirigir a peça e ela entrou como diretora de um trabalho que já existia, no sentido de que já tinha uma estrutura por ter sido apresentado, mas queríamos melhorá-lo para fazer uma carreira comercial. E esse foi o primeiro trabalho que eu e a Margarida fizemos juntos, uma produção nossa, e nesse momento com o Rodrigo Ruiz. Fizemos umas cinco temporadas dessa peça durante 2002 e no ano seguinte: no Teatro de Câmara, no Teatro de Arena e na Sala Carlos Carvalho. Com esse trabalho foi a primeira vez que eu fui indicado ao Açorianos de melhor ator. Por ser uma montagem acadêmica e porque ninguém me conhecia, foi uma grande surpresa. Já comecei com o status de ser indicado para um prêmio importante. Não ganhei, quem ganhou naquele ano foi o Luiz Paulo Vasconcelos. Mas a indicação me fez pensar: “Acho que a gente está fazendo algumas coisas legais que teve um reconhecimento, não é?” A partir dessa experiência, tendo em vista que esse trabalho tinha nos dado prazer, pensamos: “Vamos nos organizar para produzir outros trabalhos”. E foi dessa forma informal que a Companhia nasceu.

Margarida: As coisas vão acontecendo, tem que ir e fazer, aí quando vê tem-se uma companhia, tu olhas para trás depois de um tempo e pensa: mas onde é que começou?

Marcelo: Aliás, tem um detalhe, isso já foi contado outras vezes. Não sei se o Jessé falou sobre isso na entrevista que fez contigo, mas, inicialmente, em 2002, o nosso grupo chamava-se Caixa Preta, por causa da questão da caixa preta do teatro. Mas depois o Jessé criou um grupo de artistas negros e ele queria colocar o nome Caixa Preta, e colocaram. Só que a gente já estava com esse nome, já tínhamos cartazes com o nome, com divulgação no jornal: “grupo Caixa Preta apresenta”. E o que a gente fez? Cedemos o nome Caixa Preta para o Jessé e o seu grupo. Então, o grupo tem esse nome porque nós cedemos para eles.

Margarida: Na verdade, era muito mais deles, né? Eu pensei: “Não dá para reter e cortar o barato deles, eles são caixa preta muito mais que nós, por outras razões”. Aí a gente mudou de nome e o Marcelo rebatizou nosso grupo.

Cristiano: E surgiu Teatro ao Quadrado. 

Marcelo: Nós já éramos uma Companhia, tínhamos então que ter outro nome. O que a gente ia fazer? Criar outro, aí surgiu a Companhia Teatro ao Quadrado.

Margarida: Porque éramos só nós dois, ao quadrado.

Marcelo: Achamos interessante essa ambiguidade do nome do grupo. 

Cristiano: Além dessa montagem de conclusão de curso, como o grupo foi se consolidando nos primeiros anos?

Marcelo: Nos primeiros anos, nossos primeiros cinco trabalhos nasceram no DAD. Trabalhos acadêmicos que ganharam temporadas comerciais. Em 2002, foi A Secreta Obscenidade de Cada Dia, direção da Margarida em que eu atuava. Em 2004, eu já tinha me formado em atuação e tinha pedido o reingresso para fazer Direção – a Margarida estava fazendo Direção, então eu fazia Direção também. O segundo trabalho foi uma peça de Molière chamada Escola de Mulheres (2004), a Margarida era a diretora e eu era o protagonista. O terceiro trabalho foi o Goela Abaixo, que existe até hoje. Ele foi criado em 2005, comigo na direção, a Margarida e o Clóvis Massa como atores.

Margarida: O Clóvis era o nosso professor na época. 

Marcelo: O Clóvis era nosso professor lá no DAD, e a peça chamava-se a Audiência, ainda lá no DAD. E como a recepção novamente foi boa, pensamos: “Vamos levar essa peça também para o público comercial!” E demos um nome que achávamos mais comercial, que foi Goela abaixo – Por que tu não bebes? Desde então, não paramos mais, são 17 anos com essa peça em cartaz.

Margarida: Depois, o Clóvis foi fazer doutorado em Paris, nós tínhamos temporada aqui, o Marcelo entrou para substituí-lo e acabou ficando. 

Marcelo: O terceiro trabalho da Companhia Teatro Ao Quadrado foi O Sofá (2005), uma peça dirigida pela Margarida, com atuação e protagonismo meus. Essa peça e o Goela Abaixo, duas peças acadêmicas, entraram na programação do Porto Alegre Em Cena. Ficamos contentes, porque nosso trabalho estava tendo um reconhecimento, mesmo sem nenhuma produção. Não tínhamos dinheiro, mas a gente se esmerava para fazer o melhor possível, como fizemos agora no Inverno do Nosso Descontentamento. Naquela época eu ainda não era professor, não tinha emprego fixo. Fazíamos o que dava com os cachês, com a graninha que a gente ia juntando para poder montar.

A próxima peça da companhia chamava-se Burgueses Pequenos (2007), também com direção minha e com a Margarida e o Clóvis como atores. Novamente entrou no Porto Alegre Em Cena. Ou seja, as primeiras peças surgiram na academia, na Ufrgs, ganharam temporadas comerciais, e algumas concorreram a prêmios ou foram indicadas ao Porto Alegre em Cena. 

Em 2008, pela primeira vez ganhamos um financiamento público do Fumproarte para montar O Médico à Força, do Molière. Já tínhamos feito Escola de Mulheres, que foi um sucesso. Lotava o Teatro de Arena. Botávamos umas 120 pessoas dentro do Arena, onde cabem 100. Imagina o prazer que era fazer uma comédia e ver o teatro encher de gente. De 2008 para cá conseguimos financiamento para qualificar todas as nossas peças, contratar profissionais e remunerá-los. E sabemos que às vezes isso não é possível, mas é fundamental que as pessoas sejam remuneradas pelo seu ofício. Ganhamos alguns Fumproarte, ganhamos prêmio da Funarte, ganhamos prêmios do Estado, do Teatro de Arena. Aos poucos conseguimos estabilizar, regularizar a nossa produção com esses aportes financeiros, que não eram nenhuma fortuna, como tu sabes, mas eram razoáveis, e conseguíamos pelo menos pagar o figurino, o cenário, dar um cachezinho para os artistas. Então a nossa produção se modificou a partir de 2008, quando se tornou mais profissional.


O Inverno do nosso Descontentamento – nosso Ricardo III (Foto: Vilmar Carvalho)

Cristiano: A última peça de vocês, que estreou esse ano, O Inverno do nosso Descontentamento – nosso Ricardo III, uma contundente crítica aos déspotas e ao totalitarismo, é uma produção totalmente independente, sem recursos públicos. Foi uma opção ou foi reflexo da falta de incentivos e de políticas públicas?

Margarida: Foi porque o Brasil deu um passão para trás. 

Marcelo: Mas a gente pensou: se a gente for esperar que existam financiamentos públicos, a gente nunca mais faz teatro. Então vamos bancar e vamos nos financiar. Ainda bem que tivemos condições de fazê-lo. E acho que foi um grande acerto, porque o trabalho realmente agradou ao público, e nós estamos muito contentes com o resultado, mas é meio que um ponto fora da curva do que a gente vinha fazendo nos últimos anos, produzir sem dinheiro de financiamento, mas era isso ou não fazermos nada. Ainda mais no meio da pandemia, sem um edital público aberto. Fomos sendo levados pelas circunstâncias, pelo resultado que a gente ia obtendo, e isso ia nos dando mais pernas para então dar um passo a mais, e as coisas foram dando certo.

Em 2004 eu entrei no mestrado em Letras. Em 2006, passei no concurso para professor efetivo na Universidade Federal de Santa Maria, no curso de Artes Cênicas, onde em 2007 iniciei dando minhas aulas. Depois, em 2011, fui para a Uergs, onde até hoje sou professor no curso de Teatro, Licenciatura. Consegui então certa estabilidade, porque passei a ter o meu salário mensal, e assim deu para nos organizarmos melhor nessas questões financeiras. A nossa Companhia foi se consolidando com o passar dos anos. Hoje eu a considero uma Companhia consolidada tanto pelo reconhecimento do público, quanto pela nossa metodologia de trabalho, que é muito clara para nós. Sabemos como funciona o nosso trabalho.

Cristiano: Vocês já falaram das premiações. Nós sabemos que sem fomento, sem editais e sem patrocínio é muito difícil para o teatro se manter. Qual a importância das premiações na construção dos espetáculos e na construção de uma carreira? Ou seja, qual o peso dessas premiações, que significado o artista deve dar para isso? O artista deve perseguir as premiações – tanto no sentido de aporte financeiro para que as produções possam ser viabilizadas, como também da premiação no sentido de reconhecimento da atuação dos artistas – ou o artista deve fazer o seu trabalho sem almejá-lo?

Margarida: Depende. Se ele tem uma dedicação exclusiva à arte, eu acho que ele deve perseguir dentro da realidade que nós conhecemos do Brasil. O Brasil de anos atrás, não no Brasil de hoje, que é difícil, quem sabe no Brasil de um futuro breve, né? Nessa circunstância, nesse país onde a gente nasceu, onde a gente vive e onde fazemos arte, onde trabalhamos, devemos sim perseguir sobretudo os aportes financeiros. Não a vaidade do prêmio pelo prêmio, porque geralmente esses prêmios nem se revertem em público. Porque a informação dessas premiações não chega ao público. Um exemplo é o Prêmio Açorianos, aqui em Porto Alegre. Quem é que vai? Quem é que assiste? É quem faz teatro, quem já está no meio. Recebe o prêmio ou não recebe, passou uma semana, acabou. Depois, tu estás em temporada e tu botas “tal espetáculo ganhou prêmio isso, prêmio aquilo”. Mas chega no público? Eu acho que não.  As pessoas não sabem das companhias. As pessoas, no geral, não sabem dos teatros, não sabem sequer o endereço. Estávamos fazendo temporada no Teatro Renascença, e quantos me perguntaram, “Onde é que é mesmo?” As pessoas não têm ideia de onde fica o Centro Municipal de Cultura. Agora, se tu falas “Ali, perto da Zero Hora”, daí sim. 

Por outro lado, nós, enquanto artistas, precisamos perseguir os financiamentos, porque eu considero obrigação do Estado o fomento na cultura, em todas as áreas das artes, porque o país precisa disso, porque ainda somos formadores de público, de plateia. O Brasil é um país jovem, com uma cultura precária, apesar de regionalmente rica e pulsante. Mas viver da arte no Brasil, para a grande maioria de nós, é quase impossível. A maioria dos artistas de todas as áreas precisa de incentivo e de fomento. É obrigação do Estado proporcionar condições para que essa cultura cresça, para que seja acessível, para que a gente cresça culturalmente e deixe de ser um povo tão tosco e tão frágil que cai em qualquer esparrela. As pessoas se encantam por qualquer lixo comercial, vendável, vide o que está acontecendo há tantos anos com a música no Brasil. Grande parte da música que vende, que toca, é de qualidade muito baixa, muito fraca. Então, cadê os grandes festivais de música? O apoio aos grandes artistas, aos músicos, aos cantores, às orquestras? 

No teatro, sobretudo nesse governo (de Jair Bolsonaro), os artistas são inimigos dele, não é? Ele nos elegeu como tal. Como trabalhar assim? Eu estou com 65 anos, o Marcelo, com 48, e foi só agora que conseguimos ter uma grana para produzir contra a maré, contra essa avalanche, contra essa sanha de tirar-nos tudo e punir os artistas.

Estreamos o Inverno em janeiro e já fizemos cinco temporadas em uma cidade que praticamente não tem mais teatro. Nós conseguimos, mas os nossos colegas podem? O pessoal que está começando, ou colegas que vivem só do teatro, só da arte, que não tem um Marcelo como professor universitário, eu como professora, como produtora, como dubladora, tanta coisa que eu faço, agora mesmo fazendo direção de elenco de dois projetos enormes. Temos trabalho e podemos nos bancar, mas a maioria dos colegas não pode, assim como a gente em muitos momentos não pôde. Então, cadê o governo? É que a gente resolveu que não vamos parar. E vamos lutar para mudar isso nas eleições, porque nosso trabalho tem muito a ver com as eleições de outubro deste ano. Esse Inverno do Nosso Descontentamento tem a ver com as eleições, tem a ver com esse ano no Brasil, tanto é que a gente começou a trabalhar esse espetáculo ainda no ano passado. Ele foi construído em 2021, desde o texto, o estudo, as pesquisas, a construção da dramaturgia, os ensaios virtuais, até o ensaio presencial, que começou lá por setembro/outubro, pra gente poder estrear em janeiro. Só os dois atores e o diretor (Luciano Alabarse), lá no Centro Cultural 25 de julho, numa sala grande, a gente de máscara, uma vacina cada um. Decidimos que íamos fazer e oferecemos graciosamente para a abertura do Porto Verão Alegre. Então foi assim, Cristiano, buscando parcerias com o hospital da PUC, conseguimos elementos cenográficos que eram caríssimos. Mas vai, vai e você bota 30, 40 mil para montar um espetáculo, sem a menor chance de retorno financeiro. A gente sabia que não ia ter. Agora estamos numa situação em que conseguimos fazer, mas nem sempre foi assim. Nem sempre para nós e, sobretudo, para a maioria dos nossos colegas. Então, se a gente pode, a gente tem que fazer porque não podemos nos omitir. Mesmo que seja a fundo perdido.

Respondendo enfaticamente, sim, é obrigação do poder público fomentar a arte no Brasil, em outras áreas também, mas especificamente na nossa área.

Marcelo: Eu também posso responder rapidamente em relação a isso, porque tem dois aspectos. Uma coisa são os financiamentos, esses prêmios que, na verdade, são financiamentos para que se consiga viabilizar um espetáculo. Esses, obviamente, são fundamentais, porque é aí que tu consegues diversificar a produção. Ou seja, tu vais ter vários espetáculos produzidos numa cidade, num estado ou no país, com qualidade promissora, porque tu vais ter na ficha técnica profissionais que vão ser remunerados. Sem falar na questão da economia que circula, porque cada real que o governo investe num espetáculo de teatro, de dança, de música, isso se multiplica e chega em tantas outras pessoas, por isso é importante economicamente. É fundamental. 

O Estado precisa fomentar porque eu não acho que se possa pensar que a iniciativa privada vá bancar os trabalhos, porque ela vai bancar os trabalhos que de alguma forma dialoguem com as suas ideologias. Isso é óbvio.

Margarida: Com o marketing da empresa.

Marcelo: O dono da Sadia ou da Gerdau faz o que quer com seu dinheiro. Quem sou eu para dizer que estão errados? Escolham quem querem apoiar. Mas não podemos ficar à mercê disso, se não o nosso trabalho vai acabar, vamos acabar sendo censurados sub-repticiamente. Ou seja, na lógica das empresas, a verba não vai para muitos projetos porque não lhes interessa falar de determinados temas, “vamos falar de coisas bonitas, ou de coisas que são mais palatáveis”. Então, esse dinheiro que vem dos governos estadual, municipal e federal, diretamente para os artistas, sem passar pela iniciativa privada, é fundamental para que a arte também consiga se superar. Inclusive na maneira como ela aborda alguns temas. No Brasil, e em Porto Alegre, aqui mesmo na nossa cidade, no nosso estado, com colegas tão qualificados, foi graças ao incentivo público que vimos espetáculos tão inovadores e tão importantes, que realmente marcaram a nossa trajetória como espectadores. Se não fosse pelos incentivos públicos, provavelmente não teríamos visto essas peças. Então isso é fundamental.

O outro prêmio, que tu falas, Cristiano, é a questão do reconhecimento. Esse é o que eu considero o prêmio festivo. O Açorianos ou o Kikito – no caso do cinema –, ou qualquer prêmio que reconheça uma trajetória, os melhores do ano, eles são muito relativos, mas são importantes pela visibilidade. Mas como disse a Margarida, nem todo mundo vai ficar sabendo que o fulano ganhou um prêmio de melhor ator ou de melhor atriz. De todo modo é uma visibilidade dentro da própria cultura. É o momento de festejar uma existência, seja daquele trabalho ou desses artistas que apesar de tudo, apesar das dificuldades, estão produzindo. Penso que esse prêmio é importante, até porque nós, artistas, vivemos sempre tão oprimidos economicamente, que quando tu tens a possibilidade de receber esse destaque ou esse olhar carinhoso sobre o teu trabalho, isso não deixa de ser um estímulo. A pessoa que ganha como melhor figurinista sabe que o trabalho dela não foi em vão. Porque o público ou os seus pares estão achando bonito o seu trabalho, e estão dizendo, “olha, o teu trabalho ficou muito bom, parabéns!” Isso não é uma coisa linda de acontecer? Não é sobre quantos troféus eu tenho na minha estante. Não é sobre isso. Isso é uma coisa egoísta. O prêmio é uma maneira de festejar a nossa união como classe, porque acaba sendo mais a classe que toma conhecimento dessas premiações.

Margarida: Essa alegria e esse contentamento ficam na nossa bolha.

Marcelo: Um mês, dois meses depois, tu meio que vais esquecendo. Um ano depois ninguém lembra mais quem ganhou o prêmio do ano passado. E não estou tirando a importância disso. É muito importante, justamente porque é uma maneira de se afirmar: “Nós existimos, nós temos um prêmio”. Pensa no Açorianos, esse prêmio tem 45 anos. Quantos profissionais já ganharam esse prêmio? Olha que coisa bonita. Os prêmios são fundamentais também nesse sentido. Mas obviamente que o prêmio não vai construir a carreira de ninguém, ele não traz público. Talvez em raras exceções alguém vá ver uma peça de teatro porque ganhou um Açorianos, ou um Tibicuera, ou um Kikito.

No nosso país a premiação não tem relevância no sentido comercial, mas tem a relevância afetiva, a relevância do reconhecimento. E ninguém trabalha sem reconhecimento. A psicologia nos diz isso. Tu precisas que alguém te faça um carinho de vez em quando, se não tu vais embora, desiste. Ou seja, o prêmio é como uma mensagem que diz: prossigam que vocês estão fazendo uma coisa que a gente está reconhecendo como boa, com qualidade. 

Por exemplo, comigo, cada vez que eu faço um trabalho, eu faço meu melhor possível, que poderia ser digno de um prêmio. Eu quero fazer o meu melhor, aquilo que eu consigo fazer com o que eu sou hoje em dia. Digno de um prêmio, mas não que eu queira esse prêmio. Mas que as pessoas vejam o meu trabalho e digam que se trata de um trabalho de qualidade. Isso é uma alegria, porque me faz pensar que eu estou no caminho certo, que eu não estou perdendo o meu tempo. Eu não ganho dinheiro, mas tento me comunicar com a sociedade pelo meu trabalho. Nesse sentido, o prêmio é uma coisa importante e deve ser valorizado. 

Cristiano: Margarida, tu citas a política de destruição cultural do governo Bolsonaro, que na verdade começou ainda com o Michel Temer. A censura, o ódio, as mentiras, a negligência, os crimes políticos de toda natureza estão presentes em muitas montagens de vocês, mais ainda no “Inverno do nosso Descontentamento”. Ou seja, são peças vistas como manifestos políticos. Como vocês avaliam o espaço para se falar de política no teatro contemporâneo? A abordagem e o tom dados por vocês nunca foi motivo de preocupação?

Margarida: Para nós, é um espaço em branco, aberto, onde a gente aborda do jeito que a gente quer, mas sempre de forma muito ética. Até agora ninguém entrou em uma de nossas peças e nos ameaçou. Já nos alertaram: “cuidado, cuidado!”. Com a estreia do próprio Inverno a gente ouviu comentários de colegas: “Gente, que loucura. Vocês não têm medo?” 

Quando a gente estreou Os Homens do Triângulo Rosa, em 2014, também diziam que os neonazistas iam lá jogar pedra, que iam dar tiro. Eu disse: “Meu Deus, vai ser uma publicidade para a peça! Porque no outro dia a Brigada vai estar aqui fazendo a segurança para nós. Que venham!” Claro que não foram, porque são uns covardes, uns canalhas.

A mesma situação agora com o Inverno. Claro que tem entre os espectadores – não são muitos – mas tem gente que levanta, que vai embora do espetáculo, porque a nossa posição é visivelmente a favor da esquerda democrática, da esquerda progressista e contra o atual governo. Isso está claro, qualquer pessoa percebe isso. E a gente foi até onde a gente quis. E não precisamos explicitar, falamos tudo o que precisava ser dito sem citar nomes. Usamos o texto do Shakespeare como base para falar do Brasil e de todos os tiranos e déspotas do mundo, e o Ricardo III é um veículo para trazermos tudo isso, agregando outros textos, que foram inseridos por nós, falas que o Marcelo coloca, já que ele é o protagonista do espetáculo e o texto está praticamente 100% com ele. A gente nunca pensa: “ah, acho que isso está muito pesado.” Não! Os recursos foram usados para deixar o texto mais sutil, na ironia, mais na insinuação, ou quando escancara, é breve. Mas agimos com total liberdade. Não nos intimidamos e nem pretendemos. Eu sou muito “faca na bota”. Eu sou pequeninha, mas sou um limãozinho galego. Eu não tenho medo das pessoas. Se um cara vem pra cima de mim, eu vou para cima dele também. Já cansei de fazer isso na vida. Se alguém bota a boca, a gente bota a correr. A educação vai pra onde a gente também é recebido com educação, mas hay que tener coraje e não ficar refém dessas ameaças, entende? 

Não sei se tu lembras, Cris, no começo do governo do inominável – porque de dentro da minha boca não sai o nome dele –, lá em 2018, houve um boato de que quem se manifestasse contra ele nas redes sociais, que já estavam rastreando essas pessoas e que ia haver uma lista como houve na ditadura. Aí mesmo que eu botava a boca. E todo mundo dizia: “gente, não é pra falar, vão nos perseguir”. Mas em 1964 eu vi a minha família envolvida, antes do golpe, depois do golpe, politicamente envolvidos, com perseguições, com tio meu tendo que fugir de Porto Alegre para não ser preso, porque os amigos dele sumiram. Então, quando criança, a gente vivia naquela situação. Eu sei como é que é, aonde vão as ameaças e o terror que se estabelece. O tempo todo se fica com medo. “Mas aqui ó que eu vou ficar nesse medo! (sinal de figa)” A gente acredita, a gente luta e a gente não é irresponsável, estamos apenas fazendo o nosso trabalho. Se alguém invadir o nosso espaço, a gente tem mecanismos para se defender disso. Não podemos recuar antes de tentar, e estamos trabalhando com a liberdade que a gente persegue, que a gente honra e que a gente defende.


Os Homens do Triângulo Rosa (Foto: Adriano Arantos)

Marcelo: Em relação às nossas montagens, não é que seja uma coisa programada, Cris, de que nós somos um grupo de teatro político, por exemplo. Acho que a gente nem pode ser qualificado desta forma. De tudo o que já fizemos nesses anos todos, a gente fez três comédias de Molière que foram muito bem no sentido da recepção do público. E que são entretenimento, tecnicamente qualificado, e acho que atingimos o objetivo de ser engraçado, de provocar o riso na plateia. Mas quando montamos uma peça de Molière, e fizemos isso em três ocasiões, não estávamos preocupados em ser políticos, não nesse sentido de críticas sobre o governo, porque a gente não se sente obrigado a fazer teatro político. Existem grupos que notadamente suas ações são todas politizadas, o “Ói Nóis Aqui Traveis” é um desses grupos. Eles são muito mais políticos, até porque surgiram no meio da ditadura. Então, a gênese deles já está na crítica, e o tipo de teatro que eles fazem, teatro de rua, tem esse envolvimento político muito mais profundo do que nós. Nós contribuímos com a nossa parte, com o Triângulo Rosa, com o Inverno, com o próprio O Concreto Sobre Nossas Cabeças (2018). O 2029, que foi uma distopia que eu escrevi em 2019 para os alunos da Margarida. Sim, são peças que tem um ingrediente político muito forte, mas como ator eu adoro uma comédia rasgada. E a dramaturgia sempre tem que ser de qualidade, isso é fundamental, porque o objetivo é fazer rir, fazer as pessoas felizes. Então, nesse sentido eu digo que a gente não tem esse compromisso com o político. Portanto, realmente, nos últimos anos a gente tem sido movido a isso, não porque nos sentimos em dívida ou porque achamos que estamos fazendo muita comédia, mas porque eu acho que nós também vamos mudando como artistas. Nós vamos olhando as coisas e vamos vendo nosso papel na sociedade, e nesses últimos anos, a gente tem visto que o nosso papel talvez seja o de gritar um pouco mais, ser mais contundente. O que não impede que daqui a pouco novamente façamos uma comédia, um besteirol, se acharmos que é o momento de fazê-lo. 

De forma geral nós somos seres políticos, porque eu e a Margarida, individualmente, somos pessoas muito antenadas na política. E tem acontecido que o nosso lado individual, politizado, tem ido para o lado da arte, das nossas funções dentro do teatro. E nós concordamos que o teatro é um lugar privilegiado para trazer essas questões candentes, mesmo que eventualmente a gente não tenha a possibilidade de atingir um público extenso como o cinema e a televisão têm, porque no teatro muito menos pessoas vão ter acesso ao teu produto. Mesmo assim, ainda acreditamos que o teatro é um meio privilegiado, porque é nesse encontro cara a cara que podemos discutir questões que são importantes para a nossa sociedade. E isso só se atinge mesmo na presença. E o teatro tem essa força poderosa que a gente tem empregado nos últimos anos, a de estarmos fazendo um teatro que já é político nesse sentido mais amplo possível, porque estamos exercendo a nossa cidadania, como artistas, falando o que consideramos importante que seja dito. Ainda temos liberdade para fazer isso. E a nossa politização pessoal sempre será um filtro para as coisas que queremos fazer, como tem acontecido nos últimos anos, porque a gente tá sendo meio que levado a isso. Olhamos para um lado e para o outro e pensamos: “pô, a gente tem que falar sobre determinado assunto”, porque isso nos incomoda tanto como indivíduos quanto como artistas, e então o assunto vai também para o teatro. Ou seja, eu acho que o teatro é político sempre. Só que às vezes ele é mais escancaradamente contundente pelos temas que traz. E às vezes ele é político no sentido de que traz para o espectador alguma outra possibilidade de ver o mundo com um pouco mais de leveza, que não seja só na porrada. 

Cristiano: Quais são as referências artísticas que ajudaram a construir e a consolidá-los como artistas? Alguma figura que tenha sido marcante na formação de vocês?

Marcelo: Desde alguns anos eu tenho um interesse muito grande no que a gente chama de estética brechtiana. Seja na dramaturgia, porque gosto bastante dos textos, das peças escritas pelo Brecht, mas principalmente no papel que o teatro tem dentro das ideias do Brecht. É um teatro político, algo que sempre me interessou, e aos poucos fui tentando aplicar essas ideias, não no sentido de pegá-las e botá-las exatamente na nossa realidade, porque a Alemanha dos anos 1940 é muito diferente do Brasil do século 21. Obviamente é diferente nesse contexto, mas em outros aspectos, não é. Porque o Brecht sempre tratou da relação de opressores e oprimidos. Isso sempre me interessou, mesmo sem eu inicialmente ter essa clareza do que se tratava exatamente o teatro do Brecht. Mas, esteticamente, a gente vai lendo as ideias teatrais dele, do distanciamento crítico, do estranhamento, dos recursos. E aquilo sempre foi me fascinando. A diferenciação entre o artista e o personagem. O ator sai do personagem, daqui a pouco é o ator que está se relacionando diretamente, portanto, politicamente, com a plateia. Depois, ele coloca de novo a máscara e volta a ser o personagem. Isso tudo sempre me interessou e foi me interessando cada vez mais. E hoje em dia eu acho que eu posso dizer que o Brecht e as suas ideias sobre o teatro são as que estão em primeiro lugar quando eu vou pensar no meu trabalho, “o que o Brecht faria?”. Eu me inspiro muito no sobre o que ele queria do teatro e de alguma forma eu quero coisas parecidas com o teatro que o Brecht desejava.

Eu entendo que existem artistas que se dedicam a vida inteira a uma forma de fazer teatro. Por exemplo, conheço pessoas incríveis que são stanislavskianas, a vida inteira elas pesquisam as ideias do Stanislawski em relação ao teatro, o que é genial. A gente também aproveita isso o tempo inteiro. Mas eu não sou esse tipo de artista de teatro que tem um único foco, e acho que a Margarida também pode dizer o mesmo. Acho que o nosso foco é múltiplo. O Grotowski, por exemplo, esteticamente, tem uma diferença enorme do Brecht, quando ele fala que o teatro é o encontro entre um espectador e um artista e o que se dá no encontro desses dois elementos. Isso é o que eu também penso sobre o teatro. É espetacular e grandioso que o teatro não precise ser uma coisa só. 

O teatro é muito simples, e por isso ele é complexo. O teatro se dá numa relação entre duas ou mais pessoas, com uma mensagem usando a teoria da comunicação. Essa mensagem é o que ele diz ou o que ele age. Isso é o suficiente para haver teatro. Interessa-me muito essa relação simplificada entre esse ser que performa e esse ser que aprecia essa performance e que, também, obviamente, a partir da sua reação, vai afetar o performer. Então, teoricamente, não tem a ver Brecht e Grotowski, mas eu acho que tem a ver. 

Um artista de teatro não precisa estar vinculado a uma única técnica, uma única estética. Eu me considero múltiplo. Algumas coisas me interessam bastante, como, por exemplo, a questão da qualidade da dramaturgia, que é uma coisa que sempre buscamos nos nossos trabalhos. E acho que precisamos saber contar as coisas de uma forma que interesse, de alguma maneira, aos espectadores. A isso que eu chamo de dramaturgia, ou seja, como é que eu conto esse algo que eu quero contar? Com imagens ou com palavras? Sempre me interessou, seja como ator, seja quando eu escrevo, quando eu sou dramaturgo. Então não existe uma única influência, é um pouco de cada coisa que eu leio. Por exemplo, vou ler agora o Jorge Dubatti, e vejo: nisso aqui eu penso igual. Mas também não posso dizer que o Dubatti é minha influência só porque uma coisa que ele falou me interessa muito. Nós vamos recolhendo os diferentes pensamentos em teatro, aquilo que lemos, que assistimos e que nos impressiona, e tudo isso vai formando essa grande colcha de retalhos. Agora, se é dessa linha ou daquela linha, isso para mim não tem muita relevância. Eu não quero fazer um teatro vinculado a uma coisa só, quero fazer um teatro que me estimule para que eu não pare de fazer teatro. Então eu vivo desse auto estímulo que é eu ler, eu assistir coisas de teatro, eu pensar sobre teatro, sobre o que me interessa fazer nesse momento no teatro. E isso vai me estimulando a querer saber mais e a desenvolver mais essa linguagem. 

Sobre o nosso trabalho, também acho que tem algumas coisas que a gente repete nos espetáculos, ou seja, tem algo ali que é, vamos dizer assim, um “estilinho” nosso, “isso aqui é nosso, porque a gente pensa assim”, e isso acaba aparecendo nas nossas peças. É normal, porque um artista tem o seu estilo. Então a gente já reconhece alguns pontos porque já fez várias vezes essa abordagem, não no sentido de se repetir, mas no sentido de ser a nossa crença do que o teatro pode fazer. Os teus gostos e os teus interesses vão aparecendo na prática e aí tu vais consolidando esses gostos e esses interesses.

Margarida: Tudo é uma grande escola. Tem os teóricos, mas tem a prática da gente e a prática dos outros. E ser plateia, assistir, contemplar e se envolver. Para mim, a influência de outros atores e de outras atrizes vem da excelência do trabalho que eu vejo no palco. E quando eu me envolvo, esqueço-me de mim, porque há uma interpretação com muita sinceridade, uma interpretação com estofo, trabalhada, entendida, onde o subtexto já tá muito impregnado no ator, na atriz, e o texto sai com o frescor da novidade. Adoro ver teatro assim, esse teatro humano, essa interpretação humana, onde tu te reconheces e reconhece a humanidade como um todo, na sua complexidade, na sua vastidão e ao mesmo tempo na sua simplicidade, porque a técnica não aparece. Eu gosto quando o ator é tão qualificado que as suas técnicas não aparecem, elas já estão inseridas na sua performance. É maravilhoso e é um estímulo também para a gente chegar nessa excelência. Ser espectadora de tantos atores e atrizes maravilhosas que eu já assisti na minha vida inteira foi algo determinante, desde o tempo que eu não fazia teatro – de quando eu era advogada, como me impressionava –, e é gratificante todas as vezes em que eu consigo chegar perto disso, de ser espontânea, de ser crível, de estar no estado da personagem, de alcançar esse estado onde eu sei que é tudo muito sincero e onde a gente consegue a atenção e o envolvimento do público. 

Cristiano: É muito visível a sintonia e a afinidade que vocês têm um com o outro nesses 20 anos de parceria, tanto no casamento quanto no trabalho. Uma última pergunta então para a gente encerrar: É difícil separar a vida pessoal da vida profissional?

Marcelo: No nosso caso eu nem sei como é que se separa. Não tem uma separação. Eu já vi gente falar assim “ah, da porta da casa para dentro não se fala em trabalho”. Para nós, os principais assuntos são sempre sobre o trabalho, seja o que a gente está fazendo, seja a vontade de fazer coisas, seja pra gente viver, lembrar coisas que a gente fez. O trabalho é tão orgânico na nossa vida, que não é trabalho. Falar de teatro é falar da nossa vida em comum, como casal e como parceiros de ofício.

Margarida: E a gente também trabalha com os amigos. A gente se encontra no trabalho e se encontra em casa também. Então, tudo gira em torno do teatro. E ninguém se estressa. O Marcelo é obsessivo com o teatro. Mas às vezes teu cérebro tem que ir para outro lugar.  Mas isso é muito eventual. E em casa temos espaço suficiente para que a gente tenha privacidade para nossas leituras, nossos estudos. O Marcelo fica preparando aula, corrigindo e orientando os alunos, escrevendo. Mas a gente também ensaia nossos trabalhos em casa. Como o Goela Abaixo, que todo ano a gente reensaia. Já tem vinte anos e continuamos nos apresentando com esse espetáculo. Então, tudo é de comum acordo. E isso também vai da sorte desses encontros. Da sorte e das opções. A gente optou por ficar junto porque nos interessa, porque é bom para nós, e porque a gente também tem essa sabedoria de dar espaço, de ceder, de ouvir, de ponderar e de se impor quando necessário, o que eu acho muito saudável. E é tranquilo, como tem que ser. Não é uma água morna e nem uma água parada, um lago plácido, porque ele está vivo. A gente não vive em conflito. E a gente nem tem esse ânimo da competição, porque também existe competição entre os casais. Ter, temos, mas não aquela coisa doentia de um querer se sobressair ao outro. Lidamos muito bem com isso, tanto é que na pandemia, enfiados dentro de casa, não tivemos problemas de passar pelo confinamento. Passamos muito bem, até porque a gente conseguiu produzir, fazer as coisas, ter a nossa rotina. E tu vês que em 2021 a gente já estava ensaiando para 2022. E o Marcelo trabalhando, porque a UERGS não parou, a aula foi remota o tempo todo, os semestres estão todos dentro dos cronogramas. Então, não é que não trabalhávamos, mas a gente se organizou e deu tudo certo. Conseguimos chegar até aqui.



Cristiano Goldschmidt é jornalista e pedagogo, doutorando e mestre em Artes Cênicas pela UFRGS. Conselheiro de Estado da Cultura do RS.

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