Entrevista

Olyra Miranda Netto – Uma tataraneta a caminho

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Olyra Miranda Netto – Uma tataraneta a caminho

Chego para conversar com a tia Olyra, por extenso Olyra Miranda Netto, que completará 110 anos no dia 6, terça-feira. Cento e dez. Nasceu em 1912, sim, senhor. 

Eu a conheço desde… Peraí: ela me conhece desde praticamente o meu nascimento. A tia Olyra é avó de uns primos meus, e foi uma prima querida, a Solange Netto Fischer, que conduziu a conversa e que eu tinha contactado para essa visita. 

Minha família então – pai, mãe e a irmã mais velha, Ana Rosa – veio para Porto Alegre em 1958, no ano mesmo em que nasci. Minha irmã nascera em Lajeado, a terra em que meus pais se conheceram e casaram; migraram para Novo Hamburgo, onde eu nasci, e viemos para a capital. Calhou de morarmos no edifício 1514 da avenida Pernambuco, bairro São Geraldo. E a tia Olyra era nossa vizinha, no mesmo andar.

Essa história é, portanto, do tempo dos vizinhos. Tempo de confiança nos que moravam na porta ao lado. Tempo imemorial, que aconteceu antes e segue acontecendo em alguns contextos. Quem chegava fazia amizade, conversava, integrava os filhos, e quem vivia já no lugar emprestava uma xícara de arroz e cuidava das crianças meio em estilo comunitário. Isso era na classe média, esta mesma imprecisa classe que hoje raramente abre a porta para essa integração, que segue existindo entre os pobres.

A tia Olyra era casada com o tio Benjamin (sim, eu devo ter evocado esse nome ao batizar meu filho) e tinha quatro filhas, jovens adultas naquele momento. Minha mãe e meu pai eram poucos anos mais velhos que elas, de forma que a tia Olyra ficou meio de tia dos meus pais também. 

Ao me receber, a Solange já contou que a tia tinha lembrado que eu adorava que o tio Benjamin me punha nos ombros e fazia um cavalinho, pelo corredor. 

A tia Olyra está já sentada, confortável, quando eu chego. A Solange junto, para garantir que ela entenda o que eu perguntar – a tia Olyra está bem surda. A voz está fraca, como que rouca, mas clara e segura.

Bem, aos 110 este parece ser o maior problema de saúde dela. Porque no mais ela segue lendo jornal, fazendo crochê, tomando um copo de cerveja de vez em quando e até mesmo caminhando, com um andador.

(Luís Augusto Fischer)


Tia Olyra fazendo crochê, no momento em que cheguei para a entrevista. (Foto Luís August Fischer)

LAF – Que que a senhora se lembrou sobre mim? 

Olyra – (Com muita dificuldade de ouvir) Além de velha, surda!

Solange – Ele quer saber o que tu me contou antes, que tu lembrava dele como o vô.

Olyra – Ah, o que eu me lembrava! (Para mim) Tu não te lembra nada dele?

LAF – Me lembro que ele era muito simpático comigo.


Tia Olyra e a Solange, no momento da entrevista, esta semana. (Foto LAF)

Olyra – Ele te botava no ombro e saía pelo corredor do edifício, toc, toc, toc, e tu chegou a um ponto que ele chegava lá embaixo e tu já ia na porta da tua casa bater pra tua mãe abrir. E vocês ficaram muito amigos!

LAF para Solange – Em que ano ele morreu?

Solange – 1963.

LAF – Eu tinha cinco anos!

Olyra – E a minha amiga… se foi? 

A tia Olyra quer saber da minha mãe, falecida em janeiro deste ano, aos quase 85 anos. Elas se gostavam muito. Faço rápida conta: a tia Olyra é 25 anos mais velha que a mãe. 

LAF – Sim. Ela andava muito fraquinha…

Fica um intervalo de tristeza aqui. Um choro embargado na saída.

Solange – Que coisas tu lembra da tua vida, de Porto Alegre?

Olyra – Muita coisa, muita coisa… De brincadeiras: cantar, pular corda… (Faz o gesto com as mãos balançando alternadamente) Aquele… Diávolo! Um carretel grande, que tinha que jogar pra cima e aparar no cordão de novo. Bilboquê. “Calçada é minha! Não é tua!” Brincar com a minha cachorrinha… a Florzinha! E gostava de colher flores, no mato, fazer buquês. 

Solange – Tu nasceu em casa?

Olyra – Foi com parteira, em casa… Há quantos anos! A parteira ia em casa.

LAF – A senhora estudou no colégio Souza Lobo?

Olyra – Sim, até o quinto ano. Eu não gostava muito de estudar… Mas fazia os temas, sim. Aí fomos morar em Canoas, mas antes em Sapucaia, até o pai comprar uma chácara em Canoas, onde moramos muitos anos. Lá já tinha o meu irmão, que eu cuidava, o Renato.

Quando o colégio completou cem anos, a tia Olyra esteve presente – e tinha já mais de cem anos de idade!

LAF – E onde nasceram os seus pais?

Olyra – Eu não lembro. Pode ser que eles alguma vez tenham falado, mas eu não guardei.


Em 1933, o casalzinho noivando (arquivo da família)

LAF – E o tio Benjamin, nasceu onde?

Olyra – Ele era de São Paulo. 

Solange – Conta como vocês se conheceram.

Olyra – Num baile, em Canoas.

Solange – Vocês eram pé-de-valsa?

Olyra – Eu toda vida sempre gostei de dançar. Só não danço agora porque não posso mais! Éramos bons de valsa. Lá em Canoas nós éramos muito conhecidos. Eu cantava na igreja, era corista. Essas coisas eu vou me lembrando… 

LAF – A senhora trabalhou fora de casa?

Olyra – Não trabalhei fora nunca, mas em casa sempre! Nós casamos e fomos morar em Santa Catarina. Onde era?… Joaçaba! Quando saímos de lá eu já tinha a Maria de Lourdes, a Noêmia, que morreu com dois aninhos, a Carmen – tu soubeste que ela…? –, a Ana Lúcia e a Elvira. Depois é que viemos morar na Pernambuco! Foram cinco filhas mulheres. Agora perdi a Carmen.

Foto da família em 1959: Ana Lúcia, Maria de Lourdes, Carmen e Elvira, as filhas, e abaixo a tia Olyra e o tio Benjamin. (Arquivo da família)

Mais uma trama: a Carmen trabalhava como secretária na firma em que meu pai trabalhou por quase vinte anos, cuja sede fica a duas quadras do edifício em que moramos.

Solange – Lembra de alguma música que tu gostava muito?

Olyra (entoa, com voz um pouco rouca mas totalmente clara) – “No rancho fundo, bem pra lá do fim do mundo”…

(Risos dos três)

Solange – Tinha algum cantor ou cantora preferidos?

A tia Olyra não entende a pergunta.

Tia Olyra (pegando no ar o assunto) – Mas música eu tava pronta pra ouvir, qualquer uma, rádio sempre ligado, sempre ouvindo e cantando. Eu lavava louça, lavava roupa, sempre cantando. Eu trabalhei muito, mas sempre alegre, sempre feliz, graças a Deus. Lá em Santa Catarina minha vida subiu mais, porque lá ele [o marido] era chefe de seção… Como é? 

Solange (tentando ajudar na compreensão, dizendo as palavras alto e claro) – De contabilidade? Administração? Escritório? 

Tia Olyra – Sim, e tinha o chefe, que mandava na Celulose Irani, em tudo. Então lá a esposa dele era a primeira-dama, e eu era a segunda-dama. São coisas que eu mais me lembro. Se tinha uma mulher que ia ter uma criança, ela dizia que queria que a segunda-dama estivesse na minha companhia. Vinham me buscar e lá ia eu… No princípio tinha missa só uma vez por mês lá. E quando chegava o dia da missa, tinha 2, 3, 4 crianças pra batizar! Eu tenho, como é?…, não sei quantos afilhados lá. Batizei muitos que nunca mais vi!

Solange – Lembra da Segunda Guerra?

Tia Olyra – Segunda Guerra? Eu lembro é do Getúlio, que vai fazer anos da morte dele agora… dia 24 de agosto. Aliás, faz poucos dias!

Eu lembro e conto pra Solange, sem esperança que a tia Olyra me entenda, que eu recordo perfeitamente de o leiteiro entregar os litros de vidro em cada apartamento. E que quando havia algum problema de abastecimento ele ia primeiro nos apartamentos que tinham criança. Lembro do cheiro que ele trazia, misto de suor e leite. Como os cobradores dos ônibus, ele carregava um bolo de notas de dinheiro, gastas, sujas, no bolso da camisa ou do jaleco. (Os cobradores, que circulavam entre os passageiros para cobrar, tinham grupos de cédulas separadas por valor entre os dedos da mão. 

LAF – A senhora lembra da igreja São Geraldo, quando ela foi construída?

Solange repete e enfatiza.

Tia Olyra – Não lembro, mas eu comecei a cantar lá ainda não tinha o coro. 

LAF – Posso tirar umas fotos nossas?

Tia Olyra – Mas eu nem tô arrumada!

LAF – Qual a origem do seu nome? Tinha algum parente com esse nome?

Tia Olyra – O meu nome? Foi tirado pelo nome do instrumento [a lira]. Foi o seguinte: a minha mãe era Ondina. Depois veio a minha irmã, Ondilina. O pai queria um outro nome com O. Disse que um dia passou e viu na vitrine o instrumento e pensou: lira, Olyra. Tinha o Omar antes, e depois o Renatinho, que foi o único que saiu diferente. Meu avô era Militão de Miranda e a avó era Primilívia; meu pai era Renato Telles de Miranda, e a mãe Ondina Barros de Miranda.  

Pergunto pra Solange quantos netos e bisnetos são. Ela procura num arquivo no celular e responde: “São 13 netos, 16 bisnetos, 6 trinetos e, ela ainda não sabe, uma tataraneta a caminho”. 


A tia Olyra segurando a minha mão, querida. (Foto: Solange)

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