Entrevista

Raymundo Faoro: as ideias no lugar

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Raymundo Faoro: as ideias no lugar Jornal do Commercio, Recife, 1948

Raymundo Faoro nasceu em 1925, em Vacaria, RS, e faleceu em 2003 no Rio de Janeiro, onde vivia desde 1951, trabalhando como procurador do estado desde 1963. Cursou Direito na UFRGS, em Porto Alegre, tendo-se formado em 1948. Por esse tempo, foi parte do Grupo Quixote, de uma juventude interessada na renovação da cena literária e intelectual da cidade. 

Foi um importantíssimo presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, entre 1977 e 1979, num momento crucial do final da ditadura militar, quando a Ordem foi atacada, inclusive com bombas, em função do papel decisivo que tinha, sob a liderança de Faoro, como voz pública que lutava pelo restabelecimento da democracia no país. 

Publicou dezenas de artigos na imprensa, desde sua juventude, incontáveis entrevistas (a cada ano, Mino Carta o entrevistava como a um guru) e publicou ao menos dois livros luminosos: Os donos do poder (1958), assunto central da entrevista feita por Marcelo Coelho que a seguir reproduzimos, e A pirâmide e o trapézio (1974), extenso estudo sobre a impregnação histórica na obra de Machado de Assis.

O que se vai ler a seguir é parte da entrevista, talvez a derradeira dada por ele, feita por Marcelo Coelho, sociólogo e jornalista, para publicação na Folha de São Paulo de 14 de maio de 2000. Reproduzimos, com a licença do autor, a abertura da entrevista e algumas passagens da conversa.

Luís Augusto Fischer


Autor de um dos maiores clássicos da sociologia brasileira – Os Donos do poder -, Raymundo Faoro nunca deu aulas na universidade, tendo feito carreira como advogado. Viúvo, mora sozinho, num apartamento sem luxo, na rua das Laranjeiras, no Rio. O bairro, antes aristocrático, hoje é poluído e feio. A impressão de solidão que acomete o entrevistador contrasta com o tom bem-humorado desse gaúcho alto e disposto, que me recebe com cavalheirismo e bonomia. Eu estava intimidado: mais do que Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda ou Caio Prado Jr., a meu ver é Raymundo Faoro quem de fato decifrou o Brasil. 

Escrito num estilo terso e rico, seu livro é uma verdadeira revolução para quem estiver acostumado aos cânones do marxismo, às dolências de Gilberto Freyre, à ansiosa euforia de Darcy Ribeiro, à ginga de Roberto DaMatta. Tem-se, em Os donos do poder, um retrato quase desesperado da experiência histórica brasileira. Falsas revoluções, falsas esperanças nada fazem além de confirmar, ao longo de séculos, o domínio daquilo que Raymundo Faoro caracterizou como o “estamento burocrático”. O termo é estranho e requer explicação. 

Estamento, em sociologia, é um nome para designar camadas sociais. Seria o equivalente de “classe”. Mas com uma diferença. Enquanto “classe” se define pelas posições que cada grupo assume dentro do sistema produtivo – proprietários dos meios de produção versus operariado -, o “estamento” se define por regras de prestígio, educação, linguagem, “posição”. Assim, na França do século 18 havia três estamentos ou três “estados”, a nobreza, o clero e a burguesia, que desencadeou a revolução. Desencadeou também outro sistema de estratificação social: o que opõe, segundo a propriedade, burgueses e proletários.  

Para Raymundo Faoro, vivemos ainda um sistema estamental no Brasil. Burocratas, e não proprietários, detêm o poder. Isso explica a fragilidade de nosso capitalismo e a inexistência de uma real democracia. Os conchavos de ACM [Antônio Carlos Magalhães, antigo prócer do PFL, hoje União Brasil] com FHC [Fernando Henrique Cardoso] se ligam à frase clássica de Antônio Carlos Ribeiro de Andrada: “Façamos a revolução antes que o povo a faça”. Uma tradição anti-revolucionária, conciliatória, conformou o Estado brasileiro, sufocando a nação; o estamento burocrático apropriou-se do país, fazendo de todo desenvolvimento econômico o pretexto para o parasitismo e o favorecimento.

Esse, resumindo mal, é o argumento de Os donos do poder. Seu autor, desencantado e frio, foi ao mesmo tempo personagem importante no movimento pela democratização do país nos anos 70. Como presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), foi representante, não raro acerbo, da “sociedade civil” nas negociações empreendidas por Geisel e Golbery com vistas à democratização do país. Confessa, hoje, que suas esperanças foram fraudadas. A democracia travestiu-se na enésima conciliação entre poder coronelista e ideologia da modernidade. 

Mas não é com rigorismos indignados que Raymundo Faoro recebe o entrevistador. Sua simpatia não exclui a formalidade: tratou-me o tempo todo de “senhor”. No apertado espaço de sua biblioteca – onde têm lugar de honra Borges e Machado de Assis, concedeu-me uma entrevista. Avesso a pormenores biográficos, mais interessado em ideias e livros do que em confidências, deu, ao jornalista intimidado, a medida de sua grandeza intelectual. 

Marcelo Coelho


Marcelo Coelho – Lembro-me de que, quando li Os donos do poder, meus colegas de Ciências Sociais estranhavam a ideia de “estamento”. Sabíamos só que havia classes. O quadro de referências era muito distante do que o sr. escrevia. 

Raymundo Faoro – A palavra estamento era tão abominada pela cultura marxista da época que, quando Marx escrevia “Stand”, traduzia-se por “classe”. Os marxistas achavam que havia classes até no Império Romano. Luta de classes no Brasil do século 16? Não havia classe coisa nenhuma… matavam o índio e acabavam com o negro. 

MC – No momento da primeira edição, como foi recebido o livro?

RF – Nelson Werneck Sodré só faltou me chamar de filho da puta. Outro, mais delicado, foi o Wilson Martins, repudiando tudo o que eu escrevi. Gilberto Freyre escreveu sobre o livro também. Disse que minha tese teria validade, mas que a parte sobre o começo da colonização não tinha pertinência. 

MC – Em 1958, de qualquer modo, o senhor sofreu uma espécie de prevenção ideológica. O senhor tinha por volta de 30 anos na época.

RF – Trinta anos… Mas o livro começou a ser escrito na faculdade, a partir da leitura de Joaquim Nabuco. Vi que a maioria dominante não tinha terra, alimentava-se da própria burocracia. O pai de Nabuco era juiz. 

MC – O sr. começou a interpretar o Brasil a partir do que acontecia no Império.

RF – E se dizia, sobre aquela época, que o senhor de escravos era conservador. Dei uma virada nessa interpretação, que ficou. O conservador lida com a riqueza mobiliária, não com a terra. Ousei fazer, então, a ligação de patrimonialismo com estamento, o que não é weberiano. 

MC – Ficou a ideia de que seu pensamento era ultraliberal politicamente, levando a uma rejeição por parte da esquerda.

RF – Foi rejeitado pela direita também. Naquele tempo, 1958-60, vivia-se a miragem de que estávamos num Estado capitalista adiantado e de que as coisas funcionavam muito bem, que as instituições eram sólidas. Ninguém queria ouvir o que eu estava escrevendo. Quando veio o golpe, percebeu-se que ao menos estávamos sujeitos a outro tipo de coisa. 

MC – Com relação ao gosto literário, fora Machado de Assis, quais suas preferências?

RF – Passei por tudo. Depois que aprendi o francês, passei por um encantamento pelo Chateaubriand. Chateaubriand, Victor Hugo… tive um período balzaquiano muito grande. Li toda a obra de Balzac… depois, me desfiz dos livros, não está mais em minha cogitação relê-los. Depois, na língua alemã, li muito Kafka. Conheci ele desde Porto Alegre. Havia lá um repórter esportivo que traduziu “A Metamorfose”. Quando aprendi o alemão, comecei a ler Kafka de toda maneira. Tenho até uma livraria sobre ele. Mas a minha mais permanente influência é do Montaigne. Naquele tempo, não havia muitos livros franceses em Porto Alegre. Pedi a um amigo que ia ao Rio para me arranjar os livros de Montaigne. Esse eu li e reli umas cinco, seis vezes. 

MC – Tem escrito algo? Algum projeto?

RF – Na minha idade projetos são ilusórios… Mas cometi uma extravagância, um prefácio ao livro do Affonso Arinos (de Mello Franco) sobre Rodrigues Alves, no qual botei às claras o que era aquela Primeira República… o que eles chamavam de “populacho” era na verdade o povo. Desprezo pelo povo no caso da revolta da vacina, por exemplo… Rodrigues Alves, quando fez a reforma urbanística do Rio, expulsou o povo do centro, criando as favelas e o subúrbio. 

MC – Nesse ponto, é Machado de Assis quem tem consciência da brutalidade dominante.RF – Mas quem diz isso com mais veemência, e menos elegância, é Lima Barreto. Há um texto em que ele reproduz um diálogo mais ou menos assim: “O povo não vai gostar…”. E o outro responde: “Mas o povo, a gente abre umas colônias correcionais por aí”. Caricaturando, era mais ou menos o que pensava a elite.


Raymundo Faoro. Arquivo Familiar. Sem data

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