Entrevista

Rodrigo Campos – O coletivo cheio de individualidade da Encruza

Change Size Text
Rodrigo Campos – O coletivo cheio de individualidade da Encruza Encruza (Foto: José de Holanda)
  • Entrevista por Theo Tajes e Eduardo Reis
  • Fotos de Theo Tajes e José de Holanda

No dia 24 de agosto Porto Alegre vai receber um show inédito, a Encruza, projeto formado por sete eméritos representantes da nova música paulistana. Juçara Marçal, cantora de voz espetacular e presença para lá de magnética, reina no palco, soberana, ao lado de Kiko Dinucci, Rômulo Fróes, Rodrigo Campos, Thiago França, Marcelo Cabral e Gui Amabis, todos compositores e instrumentistas com diversos trabalhos individuais lançados. Encruza, na verdade, é a reunião de três outros projetos, Metá Metá, Passo Torto e Sambas do Absurdo, agora apresentado pela primeira vez em um teatro. No caso, o São Pedro.

Rodrigo Campos, um dos integrantes da Encruza, conversou com a Parêntese sobre o show e seus trabalhos solo. Nascido no pequeno município de Conchas, o paulista de 45 anos começou a ficar conhecido pelo público ao ser escolhido como Revelação no 24º Prêmio da Música Brasileira pelo disco Bahia Fantástica (2021). Antes disso já havia lançado São Mateus Não É Um Lugar Assim Tão Longe (2009). A carreira seguiu com os individuais Conversas com Toshiro (2015) e 9 Sambas (2018), ao mesmo tempo em que Rodrigo se junt aos projetos Passo Torto e Sambas do Absurdo. Nessa conversa em sua casa, no bairro paulistano da Pompeia, Rodrigo Campos falou de seu início, de suas influências, do ofício da música e do que o público gaúcho pode esperar desse cruzamento de talentos chamado Encruza.



Parêntese: Como a música entrou na tua história?

Rodrigo Campos: Foi em São Mateus, um bairro da periferia de São Paulo, na Zona Leste da cidade. Um bairro com tradição em samba e rap. Desde moleque eu ia brincar na rua, ficava jogando bola e escutando o samba no bar, atento. Aos poucos comecei a montar uns grupinhos de criança para batucar em panela, em baldes, eram grupos de samba de brincadeira, até que a gente começou a comprar instrumentos de verdade. Com doze anos eu fui estudar cavaquinho, meu pai me deu um cavaquinho e eu comecei a me dedicar mesmo, tocar, tirar as músicas, aprender harmonia. Durante um tempo foi isso, foi o samba. Aí comecei a tocar violão sozinho, de cabeça, passei a montar os acordes, a tirar as músicas. Um pouco mais tarde eu fui estudar na Fundação das Artes, que é uma escola de música interessante de São Caetano (cidade no ABC paulista), é como se fosse uma EMESP (Escola de Música de São Paulo) da antiga, sabe? Muito músico bom saiu da Fundação das Artes. E aí eu estudei lá a parte teórica. Nessa época da Fundação eu meio que decidi que ia ser músico, porque até então eu fazia outras coisas. Tive vários empregos e cheguei a estudar um pouco na faculdade de Direito também. Nessa época eu falei, não, meu negócio é a Fundação das Artes, larguei a Faculdade de Direito e, a partir daí, só trabalhei com música. Eu era novinho, entrei na faculdade com dezoito e, na metade do segundo ano, eu já passei para a Fundação das Artes e larguei tudo. 

P: Caminho sem volta, diga-se. 

Rodrigo Campos (Foto: Theo Tajes)

RC: Meu pai ficou putaço da vida, mas não tinha o que fazer. Eu trabalhava num bingo, nessa época. Nesse começo eu tocava cavaquinho, percussão, violão, tudo de um jeito mais informal, não com tanto método assim. Já na Fundação eu pegava mesmo, estudava, sei lá, umas cinco, seis horas todos os dias. Fiquei um tempo fazendo isso durante uns quatro, cinco anos, dos dezenove até os vinte e tantos. E eu compunha também, eu sempre compus. Logo que eu peguei o cavaquinho já comecei a compor, a experimentar coisas de composição. Não que a composição esteja apartada de ser músico, mas tem essas funções, né? Compositor, músico. E na época eu via as coisas meio fragmentadas ainda. 

P: Aconteceu alguma coisa para mudar essa tua percepção?

RC: Aconteceu, sim. A vida. Nesse meu caminho, você tem que procurar um jeito de sobreviver. Você fala, ah, mas se eu for compositor, como é que o compositor ganha a vida? Como músico eu poderia tocar, dar aula, montar uma estratégia. O diabo é que eu compunha desde os doze anos. Dos doze até essa época da Fundação eu devo ter feito, sei lá, umas cem músicas, uns cem pagodes, uns cem sambas. Então aí eu começo a considerar mesmo que posso ser um compositor. 

P: Foi nessa época que você assumiu mesmo: sou músico?

RC: Foi. Aos vinte e quatro anos eu saí de São Mateus e fui morar na Mooca (outro bairro da zona leste de São Paulo) com uma namorada que eu tinha na época, e essa namorada tinha um grupo de teatro, então eu fazia as trilhas para o grupo dela. Foi onde eu gravei as minhas primeiras músicas e falei, pô, agora acho que tem um estilo aí. A primeira música que eu gravei foi São Mateus, a outra foi Para Onde Vão Os Meninos de São Mateus. E tem outras que eram de uma safra anterior, tipo Caminho das Pedras. Mas foi com São Mateus e Para Onde Vão os Meninos de São Mateus que achei um caminho que ainda tinha a ver com o samba e tal, mas já com uma identidade que não era exatamente aquela que você relaciona direto com o samba. Tanto que a galera do samba falava que não era samba e a galera que não era do samba falava que era samba!

P: E como você ficou nisso tudo?

RC: Eu penso que, inconscientemente, eu achava interessante, divertido ter um lugar menos claro no sentido do gênero musical. Eu comecei a compor buscando esse samba que queria um caminho próprio, a minha identidade como compositor querendo aparecer ali. E foi então que eu parti para o meu primeiro disco. São Mateus Não É Um Lugar Assim Tão Longe é o marco do meu trabalho solo, que começou oficialmente em 2009. E nesse ponto a gente já pode começar a falar da minha galera, já que foi exatamente nessa época que eu conheci aqueles que viriam a ser os meus parceiros.

P: Você tem o seu trabalho solo, mas pode-se dizer que não anda só, certo? 

RC: É isso. Essa galera toda da Encruza, eu conheci porque decido que ia ser músico. Thiago França eu conheci um pouco antes até dessa época, porque o Thiago era do samba também, igual a mim, e às vezes eu trombava com ele nos trampos e tal. Mas quando eu lancei meu primeiro disco foi que a galera começou mesmo a aparecer. Eu chamei o (Marcelo) Cabral para tocar na banda do meu primeiro disco. O Cabral conhecia o Gui Amabis, que era produtor. Aí o o Rômulo Fróes foi no show de lançamento do meu disco e eu comecei a me aproximar do Kiko (Dinucci), que eu já tinha conhecido um pouco antes, a gente tocava junto no Ó do Borogodó (bar paulistano de samba e choro). E então o Kiko trouxe a Juçara (Marçal), ele já tinha lançado o disco Padê com a Juçara. Isso tudo quer dizer que todos os membros da Encruza, esse show que vai estar em Porto Alegre, todos eles realmente foram afetados uns pelo trabalho dos outros. A gente começou a se aproximar primeiro para tomar uma cerveja e tal, e aí começaram a pintar os projetos. 

P: E a Encruza passou a ser quase uma confraria.

RC: A partir do nosso encontro, todos os discos da última época de cada um dos integrantes tinham elementos da Encruza. Meu próximo disco depois de São Mateus Não É Um Lugar Assim Tão Longe, o Bahia Fantástica, já tem todo mundo. Thiago, Juçara, Kiko, Cabral, Rômulo. Antes, em 2011, a gente lançou o Passo Torto, e nesse mesmo ano a gente também gravou um disco do Rômulo, que é o Labirinto em Cada Pé. Então começou a funcionar muito esse esquema de colaboração entre a gente, acho que a gente tinha umas referências parecidas, todo mundo gostava de samba, mas todo mundo também tinha uma inquietação de trazer alguma novidade para o samba, tentar imprimir alguma marca mais pessoal. Nossas bandas, enquanto galera, sempre tiveram isso, o Metá, depois o Sambas do Absurdo. Então foi meio por aí que comecei a andar em turma. Acho que o meu primeiro trabalho trouxe essas pessoas e, a partir daí, eu também passei a colaborar com eles. Eu só não tenho elas no meu primeiro disco. Nos outros todos, um ou outro participa, quando não a galera inteira.  

P: Cada um traz alguma coisa sua para o trabalho, é isso? É ao mesmo tempo uma sinergia e uma diferença. Talvez por isso a riqueza do encontro de vocês. 

RC: Exatamente, cada um tem uma identidade muito, muito forte, mas ao mesmo tempo todos sabem colaborar. A maior qualidade do grupo é essa, saber abrir mão na hora em que, pô, fiz um lance aqui, mas agora chegou o Kiko, mudou a ideia que eu tinha desse arranjo e tal, aí veio o Cabral e mudou mais ainda, daí vem o Thiago e palpita, todo mundo acaba interferindo. Então é isso, cada um traz uma marca, mas também todos são capazes de ser flexíveis a ponto de absorver as ideias dos outros.

P: Vocês se consideram uma nova geração do samba?

RC: Na verdade, a gente viu que a cena transcende a geração. Porque ela abrange o que veio antes e o que está vindo depois, não é só aquela galera dos anos dois mil, né? Ná Ozetti chegou antes e faz parte da nossa cena porque gravou com a gente, assim como o Maurício Pereira e a galera que veio depois. Então o negócio acaba ficando mais elástico, a palavra geração fica meio obsoleta, meio que não consegue abranger todas as pessoas que estão colaborando. Essa diferença de conceituação entre cena e geração é do Rômulo (Fróes), mas eu também acho cena mais interessante, porque a cena é isso, é o recorte.

P: Uma parte do público mais jovem descobriu o samba, por assim dizer, com os trabalhos de vocês. Especificamente em Porto Alegre, existe uma ligação muito grande com o rock’n’roll, mas as casas lotam com shows do Metá Metá, por exemplo.

RC: Acho que a gente consegue fazer essa ponte com a galera que curte rock porque a gente usa as guitarras, né? E umas vezes tem a estética ruidosa, os samples, a sonoridade faz a liga. Às vezes alguém fala, tirando o som em volta, deixando a canção crua, essa melodia é uma melodia de samba, né? E é massa quando alguém percebe isso, é aí que se faz a conexão. O Kiko e o Cabral são os caras que fazem melhor essa conexão porque os dois vêm desse lugar mais do rock. O Cabral era skatista, ele falou que, nos campeonatos, ficava rolando um puta punk rock no fundo. E o Kiko era assim na vida, guitarrista, tinha banda de punk rock. Por toda a vivência dele com as diferentes vertentes do samba paulista, o Kiko conseguiu fazer essa ponte e criar a estética afro do Metá Metá. Já o meu samba tem uma influência maior do samba do Rio, do ponto de vista melódico e harmônico. Aí temos o Rômulo, que nunca foi propriamente um sambista, não tem essa vivência de sambista, mas ele tem no Nelson Cavaquinho um dos maiores ídolos dele. E o que ele vê no Nelson vai além do samba, isso que é legal. Ele vê uma coisa da estética do Nelson como se o Nelson fosse independente de gênero. Nelson Cavaquinho é um sambista, mas transcende isso, é um artista, certo? É como você pegar o João Gilberto e falar que João Gilberto é bossa nova, não, ele é mais que isso, João Gilberto é um artista que transcende o gênero. 

P: Tem muito pagode no teu passado.

RC: O pagode é meu ponto de partida. Quando eu comecei a tocar, o pagode era um movimento, não era um gênero. O pagode nasceu nas quadras do (bloco de carnaval carioca) Cacique de Ramos, uma reação dos caras que compunham sambas autorais e que precisavam cantar no meio de surdo, caixa, repinique, cavaquinho e tal. Só se ouvia percussão pra caralho, ninguém ouvia a harmonia. Aí os caras inventaram instrumentos para que a galera ouvisse o som deles. Inventaram o tan tan e o repique de mão, que equilibraram os sons. O que estava desencontrado, mixou, e ajudou também a acompanhar a voz de quem cantava. O Mussum, dos Originais do Samba, deu de presente um banjo country, de seis cordas, que um lutier transformou no banjo que a gente conhece. O que era para ser só samba virou algo diferente. Um dia a Beth Carvalho foi lá e pirou, ficou pasma com o som destes novos instrumentos, achou que dava um novo molho para a coisa. Em 1978 ela gravou um álbum chamado De Pé No Chão, em que é acompanhada pelo Fundo de Quintal, banda formada por esses caras do Cacique de Ramos. Ela gravou essa estética e foi a reinvenção do samba. Assim como a Tropicália falou, agora a gente pode botar guitarra elétrica, pode cantar em inglês, o pagode fez isso também. O Fundo de Quintal gravou o primeiro álbum em 1980, dois anos depois de gravar com a Beth, e afirmou essa sonoridade de vez. Quando eu comecei a tocar, era esse samba que eu curtia, com o tan tan, com o repique de mão, com o banjo. Só que, com o tempo, saí de São Matheus, fui ficando mais velho, saquei que a galera tinha um certo preconceito com o som, até porque depois vieram grupos que faziam músicas mais românticas dentro do pagode. 

P: Tem vezes em que a gente acha que não gosta, mas está só desinformado.

RC: Total. Por causa disso eu acabei abandonando o pagode por um tempo, mas depois voltei a tocar. Rômulo conta até uma história, a gente estava num bar na Vila Madalena (bairro da cidade de São Paulo) e uns caras estavam falando mal do pagode. Daí eu peguei o cavaquinho, fui até eles e comecei a fazer uma levada de pagode, imitei o repique e os caras curtiram, a galera toda curtiu. E eu fiquei cada vez mais confortável em falar desse som, do pagode, que é muito importante na minha formação. Daí tem isso de transformar a música numa afirmação do som popular, do som do Brasil. Mesmo o pagode romântico tem esse efeito tropicalista. 

P: Existem planos de gravar um álbum da Encruza?

RC: A gente já falou disso algumas vezes, mas sempre cai numas marés em que cada um começa a fazer alguma coisa, aí um não pode, outro também não. Tem discos que têm todos os integrantes, mas, assim, fazer o álbum da Encruza, com esse nome, não sei se vai ter. Porque a Encruza talvez seja isso, a ideia de que,  se materializar demais, aí ninguém vai querer se ver mais. Enquanto ainda tem esse horizonte, vamos deixar a cenourinha na frente do burro, para a gente não perder o foco (risos). Vamos ver o que vai acontecer no futuro.

P: O que Porto Alegre pode esperar da Encruza?

RC: Primeiro que a gente está saindo de uma pandemia e isso, por si só, é bem emocionante. Segundo que Porto Alegre vai ser das minhas primeiras viagens. Não saio de São Paulo desde 2020, faz muito tempo. Então, para mim, vai ser bem emocionante, tem esse elemento de estar de novo no mundo. Todo mundo junto, tocando em outro lugar, todo mundo feliz de estar com os amigos, feliz de estar dividindo o palco. Do ponto de vista musical, é um jeito de poder entender como os trabalhos individuais influenciam no coletivo, e vice-versa, músicas resvalando nas músicas dos outros. Você vê o que vai influenciando o quê, é interessante pra quem gosta da gente. Para quem não gosta, de repente descobre uma coisa nova e gosta. Acho que é por aí.

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.