Entrevista

Tiago Maria: Um criancista do realismo fantástico

Change Size Text
Tiago Maria: Um criancista do realismo fantástico

Daí que era novembro de 2021 e me chega um e-mail. Muita intimidade, um humor desconhecido e um convite: live sobre literatura pra uma atividade da UERGS. Mas vem cá, te conheço? Não conhecia Tiago Maria, e isso era só um detalhe.
Ele é assim, cinco segundos já desenrola um assunto em comum, dois minutos uma prosa, meia hora empenhadas e é praticamente impossível não se apaixonar por suas ideias e visão de mundo. Com uma linguagem limpa e certeira, muito swing e imaginação, a crônica se torna campo de uma produção criativa. Figura de mil e um causos, já viu e viveu muita coisa. Aqui ele conta um pouco de sua infância, formação e sonhos. Se você não acredita em mim, confere aqui a entrevista dada por whats app e tira a prova dos nove no folhetim que vai proporcionar aos leitores e leitoras da Parêntese um passeio pelos inferninhos de Porto Alegre.. Tá ligado?

Nathallia Protazio


Parêntese – Pra início de conversa, conta pra nós de onde tu é, como foi a infância no Sarandi, teu convívio familiar.

Tiago Maria – Sou gaúcho, mas não fanático, porto-alegrense, criado no coração da Vila Elisabeth, zona norte, bairro Sarandi. Minha primeira infância foi atravessada por uma atmosfera rural. Passávamos os finais de semana em uma chácara onde tive contato com tudo que é tipo de bicho, açudes, pomares, café batido, muita árvore, plantações, trovas ao redor de fogueiras, caçadas e pescarias. Já mais crescido um pouco (um pouco porque não cresci muito) a realidade não foi diferente da gurizada das periferias, escassos recursos, pouca estrutura, muita verdade servida crua e bastante amor envolvido. Minha geração ainda tinha pátio, brincava no meio da rua e sabia o nome dos vizinhos, principalmente dos chatos. Tenho, além de um irmão e uma irmã, seis tios no ramo paterno, mais cinco tias e um tio por parte de mãe, o que me rendeu, além de causos infinitos, muitos primos e primas, tias-avós, madrinhas, afilhados e afilhadas que não vou nomear aqui pra não passar a vergonha de esquecer alguém. Nossa relação é igual a de qualquer família saudável: enlouquecedora. Ah (que já tão me olhando atravessado aqui): sou pai de três meninas, a Júlia (23), a Luiza (14) e a Maitê (9).

P – Então tu foi pai cedo, pegando aí um período de já mais de duas décadas. Mudou a maneira de ser pai no início dos anos 2000 pra cá?

T – Com certeza. Em vinte anos nos transformamos em pessoas diferentes. Tivemos mais acesso à informação nesse período do que no último século inteiro. A sociedade se reestruturou. As crianças e a infância são outras. Os pais também mudaram. Nossa relação com os filhos não poderia ser a mesma. A tecnologia, principalmente a internet, acelerou processos que talvez levassem anos, décadas para acontecer. Gerações mais recentes têm na palma da mão um universo inteiro. A comunicação é quase instantânea, fluida e transparente, exige honestidade acima de tudo, muita responsabilidade e confiança. Bem diferente de quando as crianças não participavam das decisões da família, mal sabiam o que estava acontecendo, não tinham voz, nem podiam dar opinião. Essas mudanças, ao meu ver, foram boas. Hoje, vivemos praticamente uma “paternidade líquida”.

P – Ouvi dizer que de jogador de futebol a manobrista tu já fez de tudo um bocado. Qual a tua relação com o termo “profissão”? Escrever é uma profissão pra ti?

T – Sim, joguei futebol até os dezenove anos. Morei um período em Caxias do Sul e Torres, mas não considero uma carreira. Como fui pai bem jovem, pobre e não tão bom de bola, precisei encarar o trabalho que tivesse para, como se diz lá no Saranda, “encher as latinhas”. Então fui de barman a estoquista, passando por vendedor, bancário, pintor, empresário, autônomo, MEI, celebrante do amor… Quando pude pensar em uma “profissão”, já depois dos trinta, apaixonado por boas histórias e pelos livros, a única certeza era de que eu queria viver para e das palavras, daí que o curso de Letras e as atividades profissionais com a redação publicitária chegaram, como todas as coisas boas, exatamente quando tinham que chegar à minha vida.  

Sobre a escrita, bom, excluídos os misticismos todos, sobra que escrever é uma atividade como qualquer outra, comum em diversas profissões. Jornalistas escrevem bastante, professores, redatores, roteiristas, advogados e por aí vai. Agora, trabalhar com literatura, tornar-se autor, publicar, ter leitores, frequentar eventos e feiras literárias, pagar as contas e viver com dignidade do ofício de escrever livros é coisa para bem poucos. Quando preciso identificar em algum check-in de hotel, se quero desconto, escrevo: professor; sendo a intenção confundir, ponho: Copywriter. 

P – Sobre o teu processo de escolarização e só agora estar cursando um ensino superior, além de ser pai de três gurias, o que acaba te colocando em contato direto com muitas instituições escolares, diga, ainda vale a pena sonhar em ser professor? Como você tem visto a educação no nosso país?

T – Ser professor é quase um estado de alma. E, já disse o poeta, tudo vale a pena quando ela não é pequena. Estudei um breve período em uma escola particular, depois frequentei escolas públicas. Tive professores, nos dois âmbitos, que me marcaram para sempre, pessoas incríveis que me ensinaram muito mais com a sua postura, atitudes e caráter do que usando as grades curriculares. Ser professor, pra mim, passa por exercer todos os dias a cidadania. E se a sala de aula é mesmo um microcosmo do social, creio que vale a pena sonhar e trabalhar por uma sociedade mais justa e responsável, na formação de cidadãos pensantes, críticos e conscientes.

A educação por aqui segue a mesma estrutura desde o início dos tempos. Não é possível que as crianças, a tecnologia e o mundo estejam completamente diferentes e as escolas ainda sejam iguais às dos nossos avós. Um detentor do conhecimento (o professor), alunos enfileirados um atrás do outro aguardando seu depósito de saber. E as nomenclaturas: grades, disciplinas, provas… isso me remete a um presídio. Ou seja, o estudante precisa provar alguma coisa, caso contrário é presumidamente culpado. Acredito que a escola deva ser um espaço de emancipação, de construção de liberdades. Vejo que a maioria está desconectada dos alunos. Em especial nos governos neoliberais, a escola passou a ser ainda mais conteudista e tecnicista, muito preocupada em formar mão de obra. Claro, existem exceções, e contam sempre com um esforço sobrenatural dos bons professores e o envolvimento fundamental das famílias e da comunidade escolar.

P – A infância é um assunto recorrente no teu texto. Você se considera um adulto com alma infantil? Isso é mal visto pela sociedade adulta ao teu redor?

T – Adulto com alma infantil creio que não mais. Inclusive, vendi minha alma esses dias. Hoje me entendo bem como “criancista”, conheci o termo faz pouco e venho usando sempre que posso (agradeço a oportunidade). Grosso modo, trata-se de uma pessoa que é ativista das crianças, que favorece e valoriza os seus saberes. As crianças, em especial as pequenas, me encantam e comovem. Tenho com elas, e com a minha, uma relação espontânea e genuína, nos damos bem.  “Não sei se sempre fui um velho ou nunca deixei de ser criança”..  

São mais criativas, com visões diversas e descarregadas de padrões e construções sociais as crianças. A infância é o período em que somos mais nós mesmos. Não são muitos os que levam sua criança na alma, porém a sociedade adulta, seriíssima, emburrada, as chama de “infantiloides”, faz birra e tende a desvalorizar, diminuir essa riqueza toda, “coisa de criança”.

P – Tiago, por que Maria?

T – Meu Maria é uma reverência a Antônio Maria de Moraes, cronista fundamental na história do gênero e que ainda não é muito conhecido, dado o tamanho e a relevância da sua obra. Nos conhecemos no bar, cinquenta anos após a sua morte, em 2014, quando a Santa Sede lançou Maria Volta ao Bar, antologia em sua homenagem. E porque Maria é um nome simpático, quem não tem uma Maria na família? Também traz um pouco do feminino, o que sempre é bom e me agrada por demais. 

P – Tiago, conta como a escrita entrou na sua vida. Foi ao mesmo tempo que a crônica?

T –   Minha lembrança mais remota com relação à escrita vem da terceira série, nos noventa. Criei uma história que chamava “O equilibrista no muro de Berlim”, tema recorrente na época, envolvia um pouco de história e ficção científica, um espião que era uma mistura de James Bond com professor Bugiganga. Não lembro muito do enredo, mas uma coisa me marcou bastante, a professora recolheu meu caderninho e nunca mais o devolveu. Até hoje não sei o motivo. Aliás, se estás lendo essa entrevista, professora, podias explicar melhor o acontecido e, de preferência, devolver meu caderno. Fiquei anos sem escrever uma linha. Só bem depois, já adulto e leitor compulsivo, arrisquei outras histórias. 

Me descobri cronista muitos anos depois em uma oficina de desbloqueio da escrita criativa com a professora Valesca de Assis. Ali já tinha descoberto as crônicas. Entendi então que tudo que eu escrevia era tentando imitar o Luis Fernando Veríssimo, coisa em que, por óbvio, fracassei miseravelmente. Até emergir algo que parece original, um fiozinho do que pudesse vir a se tornar uma voz própria, foram diversos exercícios, muita prática, leituras, escritas e reescritas de textos. Bom, creio que um dia essa voz vai aparecer, ah vai, mesmo que seja assim, esganiçada e fora do tom. 

P – O teu livro Semvergonho é dividido em algumas partes temáticas. Uma delas, a Nonsense, minha preferida definitiva, é criativa e inteligente num nível que as pessoas não estão acostumados a ler na crônica. Teve gente que chegou a pensar que objetos falantes e seres de outro mundo não fizessem tão parte assim do cotidiano para estar presente em crônicas. O teu cotidiano é assim mesmo, fantástico?

T – Agradeço antes de tudo a deferência e a preferência da editora. Acredito que dar voz a objetos, utensílios e seres inanimados, assim como usar o universo fantástico, são recursos até bem batidos na literatura; em crônica, porém, que é um texto mais do cotidiano, feito para uma leitura rápida, não se usa muito. Um desperdício. Tenho de fato uma tendência a imaginar diálogos improváveis, por exemplo, entre a escova de dente e a pasta que dividem a mesma rotina; ou pensar na fofoca que rola entre meias e seus respectivos pares nos varais improvisados dos apartamentos; pousada num fio de luz, consigo ver os balõezinhos dos pensamentos de uma pomba solitária; nos jardins, quase sempre caladas, depressivas, me enternece a solidão das torneiras. Coisas desse tipo. Tudo muito normal. 

P – Nonsense na crônica é uma forma de fugir da realidade?

T – Pode ser. Embora a realidade muitas vezes se apresente no esplendor dos seus absurdos, recheada de disparates, desprovida de significados e sem nenhuma coerência, confesso que controlar de certa forma todos esses aspectos através da linguagem me parece tentador. Na escrita, a liberdade criativa, realidades inventadas, situações ilógicas e absurdas, aquilo que nos desconcerta, a conduta contrária ao bom senso, tudo isso me interessa.

P – Como foi o processo de publicar o teu primeiro livro solo como cronista?

T – Assim, escrever é bem intimista, solitário até. Publicar, tornar público, no entanto, é muito coletivo. O Semvergonho é fruto de um trabalho planejado e executado por muitas mãos, com muito amor e competência, por pessoas muito importantes no meu processo de outorga como escritor e trajetória como autor. Tive, por exemplo, o privilégio de ser editado por Nathallia Protazio, que é colega no Coletivo de Escritores Negros, e  fez também a leitura atenta, seleção e preparação dos textos; a bênção, o suporte e edição do mestre Rubem Penz, idealizador da Oficina Literária Santa Sede; a capa, layout e produção foram do Giancarlo, que é meu vampiro da guarda e assessor para assuntos de qualquer natureza;  na produção e imprensa, o querido Felipe Basso (meu Maria) amigoirmão e cúmplice; e teve a revisão final da minha Tetê, necessária e insubstituível. Assim, com essa rede amorosa de apoio, foi mais fácil controlar a ansiedade, então roí só as unhas da mão esquerda. O livro foi possível graças a uma campanha de financiamento coletivo que teve a meta alcançada em duas semanas, então estou bem feliz com o resultado até aqui, a aceitação e o carinho recebidos.

P – Tiago, entre os que nascem e os que se tornam semvergonhos, a sem-vergonhice crônica é um caminho sem volta?

T – Acredito de verdade nas duas variantes. Tem semvergonho que já vem de berço. E tem os que a vida vai transformando em semvergonhos pelas mãos do acaso, por necessidade, ou só de sem-vergonhismo, mesmo. Agora, é preciso que se diga, esse semvergonho está para mim sempre associado mais à ousadia, a certo atrevimento e espontaneidade. Depois que se assume para si esse espírito não tem volta, tudo fica mais leve, menos truncado e natural, daí que a gente percebe que a vida é uma sem-vergonha descarada e que viver é, de fato, uma experiência crônica.

P – Como tem sido a experiência de escrever um folhetim? O que o público leitor pode esperar da história?

T – Encarei como um desafio. Jamais me ocorreu criar esse tipo de narrativa. Confesso que estou me divertindo muito. Depois do gatilho inicial com uma ideia prévia, as personagens, os cenários e o enredo quase que têm vida própria, vão orientando a escrita conforme se desenrolam os acontecimentos. Bem diferente da crônica, que normalmente apresenta um tema único que já nasce definido, está mais ligado ao cotidiano, tem poucos personagens, ou até mesmo nenhum. 

A história está ambientada nos inferninhos de Porto Alegre. Locais e até personalidades conhecidas se misturam em um universo fantástico-libidinoso, costurados com a linha da comédia pastelão. O público pode esperar um texto leve e divertido, cheio de verdades não tão inventadas e mentiras genuínas, mas sem o exibicionismo rebuscado da literatura. Conduzidos pela dupla Dieison e Tropeço, vai desbravar os mistérios, luxúrias, encontros e desencantos que se escondem sob a despudorada luz dos cabarés da cidade. Lê e depois me diz, não faz igual minha professora, tá ligado? 

RELACIONADAS
;
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.