Entrevista | José Falero

Tônio: uma identidade de liberdade

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Tônio: uma identidade de liberdade Tônio Caetano com Terra nos Cabelos. Foto: Flávio Dutra.

Um papo com Marcos Caetano Corrêa, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura na categoria Conto

No final de 2019, um mal-estar estranho e inesperado me tirou de combate, e os sintomas se recusaram a ir embora nos dias seguintes. Lancei-me, então, ao pinball do sistema público de saúde, sendo encaminhado de uma unidade a outra e de outra a uma, torcendo pra não cair no buraco da morte enquanto isso. Numa dessas, me vi rumo ao Cristo Redentor, onde amargaria uma espera interminável por uma tomografia, e, ao chegar lá, dei de cara com o sorriso gigante e eterno de Marcos Caetano Corrêa, o Tônio. É que Dalva, minha namorada, comentou com ele sobre meu estado de saúde e sobre minha consequente ida ao Cristo, e não precisou mais do que isso pra que ele prontamente atravessasse a cidade e fosse também ao hospital, pra ficar lá comigo, esperando o tempo que fosse necessário. E esperou. Só saiu de lá quando eu também saí.

Eis o vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2020 na categoria Conto: não só um escritor pra lá de talentoso, não só um cara íntimo das palavras, mas também um amigo precioso, um ser humano extraordinário. E, unindo o útil ao agradável, conforme se diz, dia desses eu tive a oportunidade de ir bater um papo com esse sangue bom, a serviço da Parêntese – tomando todas as devidas precauções contra a Covid-19, claro. Confere aí.

Parêntese – Qual é o teu nome, meu?

Tônio Caetano – Meu nome civil é Marcos Caetano Corrêa. Adotei o Tônio por causa de um livro do Thomas Mann, que se chama Tonio Kröger. O Tônio nasceu como uma identidade de liberdade. Tem muito a ver com ser gay, poder utilizar as redes sociais sem a interferência da família. Comecei a usar esse nome lá no tempo do Orkut, e depois já entrei no Facebook com ele. Caetano vem da minha mãe mesmo.

P – Tu nasceu aqui?

TC – Sim. Sempre morei aqui no Partenon. Mas a minha família é lá da Vila Vargas, que também é Partenon. A Vila Vargas, tu sabe, é passando a Tuka, entre a Volta da Cobra e o Morro da Cruz. E foi lá que a gente nasceu, foi lá que eu morei durante bastante tempo. Acho que morei lá até os 20 anos, mais ou menos. Quando eu conheci o Marcelo [Marcelo Brum, companheiro de Tônio], ele morava em Viamão e eu trabalhava na PUCRS. Logo a gente foi morar junto na Cidade Baixa.

P – Tu gostava de trabalhar na PUCRS?

TC – Olha, basta eu dizer que trabalhei 10 anos na PUCRS. [Risos] Eu comecei a trabalhar lá acho que com 17 pra 18 anos, como estagiário. Depois um cara foi demitido e me contrataram [como secretário] pro lugar dele. Mas foi bom, sim. Trabalho é um pouco como relacionamento, né? Eu e a PUCRS, foi bom enquanto durou. 

P – Lá nos tempos de Vila Vargas tu já tinha o hábito da leitura e da escrita?

TC – O da leitura, sim, sempre. Eu já tinha meus livros, já tinha a minha estantezinha. Tem até uma história engraçada sobre isso. Quando eu me mudei da Vila Vargas, não tive como levar todos os meus livros, e eles ficaram lá. Às vezes, quando eu ia visitar, aproveitava e levava um ou dois comigo, mas não tinha como levar todos, porque não tinha espaço na Cidade Baixa, onde eu tinha ido morar. E mesmo quando eu fui morar em Passo Fundo não pude levar todos os meus livros comigo. Eu só consegui morar num lugar com espaço pra todos os meus livros depois, quando voltei pra Porto Alegre. Mas, aí, quando eu fui lá na Vila Vargas, descobri que a estantezinha e os livros haviam sido doados para os Mensageiros da Caridade. [Risos]

P – E a escrita? Quando que surge a escrita na tua vida?

TC – Na verdade, eu já escrevia quando morava na Vila Vargas, mas não levava a sério como levo hoje em dia. Eu escrevia diário, poesia. Eu até andei revisitando esses escritos… Eu tomava um pé, tomava um fora, e aí ia escrever um poema. Coisa bem adolescente. Com o tempo, fui levando a escrita cada vez mais a sério. Então é difícil pra mim definir exatamente quando a escrita surge na minha vida, como tu perguntou.

P – Tu pode falar sobre o teu livro secreto, que tá na coleção da Venas? [risos]

TC – Claro, eu posso falar sobre isso, sim. O Sobre o fundo azul da infância não é um livro secreto. Foi assim: quando eu me inscrevi no Prêmio Sesc, era fevereiro. Eu não achava que iria ganhar. Mais ou menos em abril, quando surgiu o convite da Venas Abiertas pra publicar um livro, que faria parte da coleção A voz da ancestralidade, eu resolvi participar. Daí saiu o resultado do Prêmio Sesc. Então, como cada autor da coleção decidiu a data de lançamento do seu livro, tomei a decisão de que o lançamento do meu livro que integra a coleção da Venas Abiertas, o Sobre o fundo azul da infância, ficaria pra depois do lançamento do Terra nos Cabelos.

A coleção A voz da ancestralidade completinha, incluindo Sobre o fundo azul da infância, de Tônio Caetano. Foto: Flávio Dutra.

P – Assim como Terra nos Cabelos, Sobre o fundo azul da infância também é um livro de contos, o que pressupõe ficção. Mas dá pra dizer que os teus tempos de Vila Vargas são o subsídio dos contos de Sobre o fundo azul da infância?

TC – Eu comecei a pensar muitas questões a partir do Ancestralidades [coletânea em verso e prosa de escritores negros de várias partes do país, da qual Tônio tinha participado, também pela Venas Abiertas, em 2019]. Acho que são questões das quais eu talvez fugisse um pouco. Então, eu comecei ali uma espécie de processo de resgate, digamos assim. E esse processo atravessa, também, os contos de Sobre o fundo azul da infância. A nossa casa, lá na Vila Vargas, foi meio complicada. A nossa família sempre foi muito permeada pela mistura do alcoolismo, religião, pobreza, numa casa com 7 filhos. Então a nossa infância e a nossa juventude foi permeada por um pouco de violência. E daí eu era o gay da família. Então a vida lá na Vila, pelo menos esse é o meu olhar, eu tinha um certo… Não era ódio. Mas eu tinha muitas questões, digamos assim. O meu pai passava o dia trabalhando, e quando chegava em casa, já sabia tudo o que a gente tinha feito. “Ah, vocês roubaram laranjas!”, “Ah, vocês brigaram na rua!”. Então eu ficava com um certo rancor da comunidade, da vizinhança. Acho que todo aquele contexto contribuiu pra que eu fosse me fechando. São questões que hoje na vida adulta eu tento refletir e ultrapassar. 

P – Tu acha que a escrita nasce daí? Tu acha que isso de tu levar a escrita cada vez mais a sério ao longo da tua vida tem a ver com ter ficado cada vez mais fechado, mais introspectivo?

TC – Eu penso muito sobre isso. Na verdade, eu me pergunto até se eu não fosse gay, se eu escreveria. E eu acho que talvez sim. Independentemente das minhas questões, eu era um leitor, e acho que isso talvez me levasse à escrita. Mas eu acho que não seria o mesmo tipo de escrita que eu acabei desenvolvendo justamente por ser gay, pela questão da introspecção etc.

P – E quanto ao subsídio dos contos que compõem Terra nos Cabelos? 

TC – Sempre reparei que, quando eu escrevia um personagem masculino, ele necessariamente se tornava gay. Eu acho que eu não tinha, e talvez ainda não tenha, competência pra fazer um personagem homem hétero. Isso sempre me levou a fugir dos personagens masculinos. Por isso também esses textos do Terra nos Cabelos são todos contos de mulheres. Me senti mais tranquilo pra fazer ficção assim, escrever mais sobre o imaginado e menos sobre mim mesmo, descolar um pouco a minha figura do personagem. E as histórias foram pensadas a partir do tema de cada uma delas. Eram coisas que eu queria falar. Vamos pegar, por exemplo, o conto que dá nome ao livro, o Terra nos Cabelos. Eu queria falar sobre uma vó. Eu queria aquela personagem, foi assim que começou. Então, refleti muito sobre isso, li muitos livros que eu achei que pudessem me sugerir alguma coisa, e, de repente, aquela voz veio, sabe? O conto nasceu pronto, digamos assim. Quando me veio, quando eu entendi o que eu queria, eu me sentei e escrevi, escrevi, escrevi.

P – Tu escreve poema também, né?

TC – Olha, eu prefiro chamar de “tentativas”. Mas eu fico pensando que os meus poemas ainda têm uma certa toada que eu tenho tentado evitar. Uma toada… tipo, essa coisa triste. Isso é uma coisa que eu tenho pensado em relação à nossa escrita, à escrita negra, enfim, à escrita de minorias. Tentar sair dessa coisa triste. Outro dia eu tava vendo uma live, e daí a antropóloga falava justamente sobre isso, sobre escrever histórias de pessoas negras com família, com dignidade, enfim, sair dessa coisa da dor. E eu fico me perguntando por que isso às vezes nos é difícil. Sabe? Por que às vezes é difícil pra nós escrever… não digo “finais felizes”, mas escapar um pouco da carga melancólica. Poxa, a gente viveu, e vive, momentos felizes. Então, são memórias, são experiências que a gente tem, sim. Por que não passar isso pra escrita?

 Tônio Caetano e José Falero. Foto: Flávio Dutra.

P – Eu perguntei sobre a escrita de poema porque a tua prosa é bastante poética. E como tu escreveu primeiro justamente poemas, ainda que pouco trabalhados, tu acha que esse movimento é o motivo de a tua prosa ser poética como é?

TC – Muita gente me dá esse retorno, dizendo justamente isso, que a minha prosa é bastante poética. O que é engraçado. Porque, sim, os poemas que eu escrevia eram pouco trabalhados, eu não levava muito a sério, e além disso o grosso das minhas leituras ao longo da vida foram prosa, eu não li muita poesia na vida. Então, não acredito que o fato de a minha escrita ser como é tenha a ver com os poeminhas infantis que eu escrevia ou com os poemas que eu li. Se a minha prosa é poética, acho que isso tem muito mais a ver com o tipo de prosa que sempre li ao longo da vida.

P – Agora uma pergunta bola nas costas. O batalhão de pessoas que não entende o conceito de lugar de fala já andou te perturbando pelo fato de o Terra nos Cabelos ter só personagens mulheres? [risos]

TC – Já respondi bastante sobre isso. [risos] Já me pediram até pra definir lugar de fala.  [risos] Bom, eu acho que é uma coisa que ainda vai vir mais. Eu ainda vou ter que falar muito sobre isso. Mas tudo bem, eu não tenho medo dessa questão. Eu entendo, claro, que o meu livro suscite essa discussão, não só por serem personagens femininas, mas também por serem histórias em primeira pessoa. Mas isso é ok, isso é perfeito, é o jogo, faz parte. Eu até fico curioso pra ver o que as pessoas terão a dizer sobre isso, ficarei atento. Porque assim a gente vai aprendendo todo mundo junto.

P – Tu já deve tá cansado de responder isso que vou perguntar agora. [risos] Como foi o momento em que tu soube que era vencedor de um dos prêmios literários mais prestigiados do país?

TC – Era um domingo de tarde. Eu tava em casa. Bem aqui onde tô agora. As cadelas aqui comigo e o Marcelo lá na cozinha. Quando tocou o telefone e eu vi o DDD do Rio, decidi nem atender. E não atendi mesmo, desliguei. Depois tocou de novo e eu pensei: “Puta merda”. Aí resolvi atender, e o cara disse o meu nome completo: “Alô? Marcos Caetano Corrêa?”. E eu pensei: “Loja. Só pode ser loja. Loja ou banco. Quem mais, no Rio, saberia o meu nome completo? Como essa gente descobre o celular das pessoas?”. Fiquei bravo. Eu sempre fico bravo com essas coisas. Daí ele perguntou: “Tu se inscreveu no Prêmio Sesc de Literatura?”. Daí caiu a ficha. Eu coloquei no viva-voz, e as cadelas começaram a fazer um escândalo. Começaram a latir. Elas sempre ficam latindo quando eu coloco no viva-voz, porque elas pensam que tem gente na casa. Gritei o Marcelo e pedi pra ele levar as cadelas, porque eu nem tava conseguindo falar com o cara. E quando ele falou que eu era o vencedor na categoria Conto, eu nem sabia o que dizer. Por algum motivo, não me pergunte por quê, tive um ataque e fiquei dizendo: “Que horror, que horror, que horror!”. E aí depois o cara disse: “Estamos gravando essa ligação”. [risos] E eu pensei: “Puta merda, eles tão gravando tudo isso”. [risos] Depois, no vídeo oficial que o Sesc divulgou, lá tava eu dizendo: “Que horror, que horror, que horror!”.

P – Tu já tá pensando em novos projetos?

TC – Eu procuro escrever com regularidade. Escrevo um conto por semana. Às vezes, um conto a cada duas semanas. Então, somando o que eu produzo com as sobras, isto é, os contos que não entraram nem no Terra nos Cabelos nem no Sobre o fundo azul da infância, já tenho bastante material. Não digo que são todos textos prontos. Alguns estão em uma primeira versão, e ainda quero trabalhar neles. Além disso, antes de pensar um novo projeto propriamente dito, quero promover o Sobre o fundo azul da infância, depois de lançar o Terra nos Cabelos. E, sabe, no final das contas, acho que tá tudo certo, tudo no seu devido lugar, com essa configuração. Na minha cabeça, faz muito sentido o Terra nos Cabelos ser lançado antes de Sobre o fundo azul da infância. Porque, se tu parar pra pensar, os contos do Terra nos Cabelos foram escritos bem antes dos contos do Sobre o fundo azul da infância.

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