Entrevista

Usina do Trabalho do Ator: 30 anos dedicados ao teatro

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Usina do Trabalho do Ator: 30 anos dedicados ao teatro UTA: Cinco tempos para a morte (Foto: Claudio Etges)

O dia 25 de maio é uma data emblemática e festiva para a Usina do Trabalho do Ator (UTA). Neste ano de 2022, para comemorar seus 30 anos de atuação, os integrantes do grupo – Gilberto Icle, Celina Alcântara, Dedy Ricardo, Thiago Pirajira, Ciça Reckziegel, Gisela Habeyche e Shirley Santos Rosário – concederam uma longa entrevista ao pesquisador teatral Cristiano Goldschmidt. Na oportunidade, além de resgatarem sua trajetória, puderam refletir sobre seus trabalhos, referências e processos de criação. Dos coletivos mais longevos ainda em atividade no Rio Grande do Sul, a UTA foi dos primeiros a entender a importância da representatividade negra na cena teatral, característica que mantém até hoje, repercutindo diretamente no seu elenco e nas suas montagens. Conhecidos também por se dedicarem intensamente à pesquisa, suas peças (não foram muitas ao longo dessas três décadas) percorreram o Brasil e o exterior, alcançando o reconhecimento do público e da crítica. A Revista Parêntese publica com exclusividade a íntegra dessa conversa, que abordou ainda a estética do grupo, sua atuação durante a pandemia, perspectivas e projetos futuros, e as (falta de) políticas de incentivo à cultura no Brasil


Cristiano: A Usina do Trabalho do Ator (UTA) completa 30 anos neste dia 25 de maio. Com a diversidade e a pluralidade de atividades e de montagens ao longo de todos esses anos, vocês ainda se consideram um grupo de teatro local? Ao olhar a abrangência da atuação, as premiações e o reconhecimento do grupo, como é que vocês se veem hoje, passados 30 anos? 

Gilberto Icle: Eu acho que a gente nunca pensou ou se colocou se a gente é local, ou se a gente é nacional, ou se temos alguma representatividade. Eu acho que em alguns traços, somos uma coisa e outra, talvez. Mas a pergunta que você faz é significativa, e a resposta é também significativa, porque fizemos muito poucos espetáculos. Eu acho que não são 10, talvez sejam 10 em 30 anos. Se forem 10, é um a cada três anos. Uma, porque a pesquisa requer muito tempo, e nossos trabalhos sempre são resultado de muita pesquisa; duas, porque as condições materiais não são as ideais. Todos nós somos professores, temos uma carga enorme na universidade. Quando não éramos professores da universidade – porque não faz 30 anos que somos – para nos mantermos, já tínhamos muito trabalho fora. Os financiamentos que se conseguem para os espetáculos são muito restritos, eles são para coisas muito básicas, para pagar o mínimo para os atores, para pagar o mínimo que se precisa para fazer o figurino, o mínimo para contratar um compositor. É tudo muito restrito. Então tem um aspecto que é a falta de uma política pública mais efetiva que possibilite que a gente trabalhe mais, e nesses 30 anos trabalhamos menos do que poderíamos. Penso que a gente é local nesse sentido, embora a gente tenha saído muitas vezes, feito espetáculos em vários lugares, em outros países. Mas um trabalho mais abrangente implicaria um trabalho sustentável maior. E a gente não faz um trabalho sustentável, no sentido de que não podemos contar com o ingresso do público, não podemos contar com o cachê que se ganha numa apresentação de teatro de rua. Seria impossível manter o grupo dessa forma – é insustentável, portanto. Vivemos desse pouco que de quando em quando aparece, aliado ao fato de que a gente tem um processo muito demorado. E isso vai dar essa característica de a gente fazer um trabalho a cada três anos, muitas vezes ficando muitos anos apresentando o mesmo trabalho. Por exemplo, o espetáculo Mundéu (1998) circulou muitos anos, fazendo inúmeras apresentações. Fizemos uma circulação enorme no Nordeste. A gente foi diversas vezes para o SESC-SP fazer pelo interior, ficamos anos fazendo. A mulher que comeu o mundo (2006), da mesma forma, A dança do tempo (2015) estava se encaminhando um pouco para isso, mas aí veio a pandemia. Veio primeiro o Bolsonaro, que já acabou com um monte de coisa. O Temer já acabou com um monte de coisa, depois o Bolsonaro terminou de terminar. Então não sei se a gente é local ou não. 

Thiago Pirajira: Eu acho bem provocativa essa pergunta. Se a gente parar para pensar no quanto o grupo circulou nesses 30 anos, penso que se pode dizer, sim, que o grupo tem uma experiência, uma expertise nacional. Por conta de todos os lugares que o grupo já circulou no país, para não dizer fora. E tem outra questão que também influencia – além de todas essas que o Gilberto já falou –, que tem a ver com um trabalho que o grupo preza, que é ouvir os colegas – e por eu experienciar isso nesses 15 anos que já faço parte do grupo –, que é um trabalho de produção que sempre foi feito internamente pelos integrantes, muitas vezes de uma maneira “como dava”, por conta das urgências da vida de cada integrante, e que por alguns momentos tiveram presenças de figuras específicas para realizar a produção. E aí não tem como a gente não destacar que por um longo período tivemos no grupo a presença da Anna Fuão, que foi nossa produtora, e foi o momento em que a gente circulou muito, em que muitas possibilidades aconteceram, porque tinha uma pessoa trabalhando especificamente na produção. Lógico, não se pode negar que no contexto em que a gente tinha uma pessoa que trabalhava na produção também se tinham iniciativas e políticas públicas para a cultura que funcionavam. 

E esse trabalho do grupo que tem a ver com a pesquisa, que nos toma bastante tempo, se a gente vai contabilizar em número de horas de processo, eu acho que talvez seja maior do que o número de apresentações. Mas penso que esse fator da produção também é importante de se destacar. Depois que a Anna faleceu – o que coincidiu com o fato das questões políticas no Brasil irem por água abaixo –, a gente teve um baque muito grande na perda dessa figura de uma produtora, dessa figura de irmã de grupo, de fazer parte da família. Isso nos abalou muito e influenciou na continuidade de circulação do grupo.

Cristiano: A fala do Thiago nos remete à formação do grupo e à entrada de integrantes em diferentes momentos. Na entrevista que realizei com vocês no ano passado para a revista Ato (edição especial do Palco Giratório SESC 2021), vocês lembraram que a UTA iniciou com um projeto na oficina teatral Carlos Carvalho, do Maurício Guzinski, que se chamava Núcleo de Investigação Usina do Trabalho do Ator. Findado esse projeto, a formação original da UTA contava com Gilberto Icle, Celina Alcântara, Alice Guimarães, Silvana Stein, Leela Alaniz e Roberto Birindelli. Como o grupo foi se consolidando e se reestruturando com o passar dos anos? Quais referências podem ser encontradas no trabalho de vocês? 

Dedy Ricardo: Eu percebo a minha entrada no grupo como um momento de reestruturação, em 2000. A Usina do Trabalho do Ator estava completando oito anos – eu lembro que a minha estreia foi no aniversário de oito anos –, quando eu substituí a Elisa Pierin , no espetáculo Mundéu (1998). E para mim foi todo um desafio, porque eu conhecia e admirava o trabalho da UTA. Quando veio a oportunidade de trabalhar com o grupo, de estar com pessoas que eu tanto admirava, foi bonito. 

Estava pensando nas referências que tu perguntaste e eu acho que nós nos retroalimentamos como referência. Por exemplo, com o próprio Teatro de Los Andes, porque no Mundéu a gente trabalhou o Baratha Natyam com a Alice Guimarães, que é do Teatro de Los Andes. E eu lembro que quando a gente fez 25 anos, a Alice veio conversar conosco, e numa das falas ela disse assim: “eu dou muita oficina na Bolívia e o meu treinamento é o da Usina do Trabalho do Ator”. Então, na Bolívia se aprende o que se faz na Usina de Trabalho do Ator, porque a Alice leva o nosso trabalho para lá, e ao mesmo tempo ela nos traz o Baratha Natyam, e nós trabalhamos com isso, então nós somos referências uns para os outros. Eu acho isso bem bonito.

Celina Alcântara: Nós sermos as nossas referências sempre foi importante e acho que constituidor da Usina. Isso é parte do que nós somos, do que nós fomos sendo. E, nesse sentido, as mudanças e a troca das pessoas também foram provocando mudanças de referências. E as mudanças no grupo foram ocorrendo de tempos em tempos sem que a gente tivesse planejado. Os dois primeiros anos na Usina do Gasômetro foram a base, a sedimentação de um trabalho, o momento em que tínhamos um espaço, tínhamos ali um tempo determinado para trabalhar. A gente trabalhava muito, das 7h da manhã à 1h da tarde, o tempo inteiro, quase sem pausa. Trabalhávamos muito radicalmente. Esses dois primeiros anos foram de muita radicalidade em relação a essa ideia de trabalho de teatro laboratório, mais fechado, mais entre nós, se desenvolvendo. Aí aconteceu a perda desse espaço, perdemos o espaço da Usina do Gasômetro logo no segundo ano de trabalho, e fomos para a Cia. de Arte a partir de uma relação com a Ciça (Reckziegel) e com o Élcio (Rossini), que já estavam na Cia. abrindo espaço. Então, a gente vai pra lá e se junta, também como modo de desbravar um espaço de trabalho na cidade. E o trabalho começa a se reorganizar de outras maneiras. 

E tem o momento que a gente vai para o Odin Teatret, o que se estende lá na Europa para alguns membros do grupo. Vem também o primeiro trabalho em que conseguimos o apoio do FUMPROARTE, que é O Ronco do Bugio (1996), e que ao mesmo tempo é um momento em que a gente toma uma decisão importante em relação ao trabalho do grupo, que é fazer teatro de rua. É muito mais presente inclusive a nossa relação com a rua do que com o espaço fechado do teatro. Então, a gente foi se fazendo e se refazendo. E o fazer-se e refazer-se têm exatamente a ver com isso, com as pessoas que foram congregando o grupo. 

Cristiano: A rua como espaço de atuação é uma marca no trabalho de vocês. Eu queria que vocês falassem um pouquinho sobre como é que se deu essa relação dos espetáculos e do próprio grupo com os espaços, particularmente com a rua, e do porquê dessa opção. 

Gilberto Icle: Eu acho que não começou como um manifesto, do “vamos fazer assim” como uma proposta estética do grupo. Quando a gente teve a ideia de fazer O Ronco do Bugio, eram 17 bufões-bugios, um grupo enorme fazendo uma algazarra enorme. Olhamos para aquilo já imaginando que na rua seria melhor. Foi a primeira experiência. Depois disso se descobriu a maravilha que é fazer teatro na rua, e começamos a propor trabalhos para a rua, mas propondo sempre um aspecto que já estava no Ronco do Bugio, que era usar o espaço. Por exemplo, a gente podia fazer um círculo, mas se tivesse uma fonte, incorporávamos aquela fonte no espetáculo e cada apresentação tinha uma configuração diferente. A gente combinava: a primeira parte, vamos fazer aqui na fonte, depois alguém chama lá no arco. E aí o público precisa se deslocar lá pro arco para ver a outra parte, e assim sucessivamente. Então a gente foi buscando essa ideia da mobilidade do espaço, e daí também surgiu a ideia de fazer espetáculos que pudessem ser para a rua ir pro palco.

Dedy Ricardo: A mulher que comeu o mundo (2006) também tem uma versão para o palco e outra para a rua…

Gilberto Icle: A partir daí todos eles tiveram essa perspectiva.

Celina Alcântara: Desde o primeiro momento em que a gente se reúne como grupo uma coisa importante pra gente era experimentar diferentes espaços. Queríamos experimentar outros espaços que não fosse o palco à italiana. Tínhamos isso muito presente, desde as primeiras experimentações. Já na primeira experimentação é um trabalho que é uma espécie de espetáculo demonstração em que a gente usava o próprio espaço da Usina do Gasômetro, a sala onde a gente trabalhava.

Mas no primeiro espetáculo que a gente fez, que é o Klaxon, que apresentamos uma única vez no primeiro Porto Alegre em Cena, em 1994, nós o criamos para um espaço em que a gente pudesse quase como que reinventar o espaço de uma passarela do samba dentro do próprio teatro. Então a gente reconfigurou o espaço do teatro Carlos Carvalho de forma que ele nos desse essa relação um pouco de passarela do samba, porque a ideia do espetáculo era essa, como se nós desfilássemos o espetáculo, desfilássemos os personagens. E, além de tudo, a gente criou inspirados nos carnavais, nas marchinhas, nas figuras carnavalescas. Desde o início tinha uma vontade que era de testar, de pensar, realmente trabalhar, pensando em não se deter num espaço formal, convencional, que é à italiana. Nesse sentido, os trabalhos de rua que a gente fez, como no Bugio e com os outros, a gente também fez essa experiência de efetivamente experimentar e criar o trabalho com diferentes versões para a rua e para o palco. Por exemplo, o Mundéu era bem diferente na sua versão de palco, que a gente entrou em cartaz no Teatro Renascença, da sua versão que apresentávamos na rua. Tinham coisas que aconteciam na versão de palco que não aconteciam na rua. Com A mulher que comeu o mundo acontecia a mesma coisa. Tem um debruçar-se sobre os espaços.

Dedy Ricardo: Em Nos meses da corticeira florir (2001) acontece parecido, usamos nossa sala de ensaio como espaço de apresentação. Nosso espaço cênico é a nossa sala de ensaio, porque nós queríamos uma casa, nós queríamos um espaço aconchegante, nós queríamos receber a plateia como uma visita na casa da dona Anita. Nada mais natural do que a gente fazer na nossa casa, na nossa sala de ensaio na Cia. de Arte. Para além da experimentação do espaço, tem também uma questão que era de fazer com que as pessoas circulassem dentro do espaço da Cia. de Arte. Porque isso era importante pra gente, a gente queria manter a nossa grande casa que era a Cia. de Arte, em movimento, viva, ativa, e trabalhar lá era uma forma de fazer isso. 

Gilberto Icle: Lamentavelmente, recentemente também perdemos o espaço da Cia. de Arte. A prefeitura acaba de colocar o prédio à venda. 

Cristiano: Vocês têm todo um cuidado com o figurino, com os adereços, com o cenário, com a trilha sonora. Como é que se dá a pesquisa, o desenvolvimento e a criação desses aspectos, tão importantes no conjunto do trabalho do grupo? 

Gilberto Icle: Foi acontecendo de formas diferentes no decorrer do tempo, e a gente foi aprendendo.  Mas de um modo geral, o figurino, os cenários, em princípio tudo parte dos atores, assim como a música. São os atores que trazem as ideias para serem construídas de forma coletiva. Mesmo que tenha um figurinista que faça o figurino, ou seja, um figurinista que assina o figurino, mesmo que tem um compositor que assina a música – por exemplo, a gente já trabalha há muito tempo com o Flavio Oliveira, que compõe as músicas dos nossos espetáculos –, mas esses profissionais sempre fazem uma criação a partir das ideias dos atores, e os atores depois recriam aquelas coisas que foram criadas por esse profissional externo. Então é assim, são as ideias dos atores. E isso foi ficando mais evidente no decorrer do tempo.

Dedy Ricardo: Um exemplo bem prático: na Mulher que comeu o mundo (2006), eu tocava um tambor e eu o carregava com o braço e para mim era muito estranho carregar ele assim, porque eu tinha pouca mobilidade. Então eu o amarrei na cintura para poder ter mais mobilidade, para poder me utilizar dos braços para o trabalho. Quando o Chico Machado desenhou o meu figurino, por conta da minha necessidade, ele já desenhou uma saia que comportasse o tambor que eu já usava na cintura.

Cristiano: Eu também percebo nas montagens do grupo uma preocupação com as questões do Brasil, da nossa brasilidade, da nossa identidade, das nossas regionalidades. Isso é algo pensado, construído, ou vem ao acaso?

Celina Alcântara: Eu acho que um tanto disso já está na gênese da própria construção da UTA. Quando a gente se reuniu, queríamos criar o nosso jeito de fazer teatro, o nosso modo de operar com o teatro. Como é que a gente faz teatro sendo brasileiro, sendo gaúcho, com nosso sotaque, com os nossos corpos, com as nossas referências? Eu acho que isso está na gênese, desde um primeiro momento, como um desejo mesmo, que vem junto com o grupo, e que foi se transformando à medida que as novas experiências foram sendo trazidas. E eu falo um pouco disso relacionado a outras coisas, sobretudo a relação com a negritude, com o meu trabalho de atriz, porque a Usina do Trabalho do Ator foi o espaço que eu encontrei para propor e fazer o que eu queria fazer, desde a temática de personagens que não eram possíveis para eu fazer em outros lugares em que eu estava experimentando teatralmente, nos quais o que eu podia fazer já estava determinado pela minha condição física de mulher negra. Então esse para mim foi o espaço de a gente se criar em todos os sentidos, inclusive nos nossos jeitos de fazer teatro. 

Cristiano: Celina, tu trazes uma questão que eu acho bem importante para a nossa conversa, que é a questão da negritude nos espaços teatrais e dentro dos grupos de teatro. Isso talvez seja algo que vem acontecendo mais nas duas últimas décadas. Como vocês veem a presença e o papel do negro nas artes, principalmente nesse momento difícil que a gente está vivendo no país? De que forma a negritude e as africanidades estão presentes no trabalho do grupo? 

Celina Alcântara: Eu vou passar pro Thiago, mas antes vou dizer uma coisa. Essa questão vem se transformando bastante. A minha experiência é de um momento em que a classe teatral estava restrita a menos de meia dúzia de artistas negros. Na década de 1990, quando a Usina do Trabalho do Ator começa, reconhecidas na cena teatral de Porto Alegre como atrizes negras tinha eu e a Denizeli. E as pessoas nos confundiam, achavam que eu era ela, que ela era eu. Achavam que eu trabalhava com o Camilo de Lélis e que ela fazia parte da Usina do Trabalho do Ator. Então, se transformou profundamente de lá para cá, e eu acho que espaços como a Usina do Trabalho do Ator têm contribuído para isso, no qual, eu como mulher negra pude pautar coisas relacionadas à minha negritude, e é isso que a UTA tem pautado e tem feito em cena, porque traz a temática negra há 30 anos. E tem a ver com o fato de ter no elenco eu como mulher negra e depois a Dedy e o Thiago, e que também vão projetar isso dentro do grupo. 

No início dos anos 2000, quando começa o trabalho do grupo Caixa Preta, eu brincava que a Usina do Trabalho do Ator era o segundo grupo com maior número de negros na cidade, porque só existiam os dois em termos de grupos organizados. De lá para cá isso foi se transformando bastante, e acho que agora temos outro cenário, também a partir da contribuição da descentralização da cultura, que foi uma coisa que a UTA participou profundamente, tanto que eu fui oficineira da descentralização da cultura, e a gente participou lá, num primeiro momento, levando nosso trabalho para as oficinas. Acho que a Dedy inclusive teve contato com esse trabalho. 

Dedy Ricardo: Sim, eu fazia oficinas de teatro pela descentralização da cultura, quando a UTA foi na oficina apresentar a demonstração O Mestre ausente (1994), e foi ali que eu vi a primeira mulher negra fazendo teatro na minha vida.

Celina Alcântara: Então eu acho que a gente em alguma medida é parte dessa transformação. Thiago, passo a bola pra ti.

Thiago Pirajira: Penso que são várias coisas. É muito amplo falar sobre negritude no teatro feito de dez, vinte anos para cá. Ao mesmo tempo tem uma questão de invisibilização, porque por incrível que pareça não se tem no circuito de teatro na cidade, produzido há 20 anos, outras experiências de grupos de teatro de pessoas negras, porque elas não estavam inseridas e não são contadas na história do teatro. Mas acho que existe um caminho anterior, por exemplo, Grupo Satélite Prontidão, Grupo Raízes, Grupo Razão Negra, diversas experiências. Inclusive o Jessé Oliveira está fazendo um trabalho de resgate, de reinserção dessas pessoas e desses grupos na história do teatro local contemporâneo. É uma questão que tem a ver com a invisibilização dessas pessoas, não se trata da não presença, mas por uma invisibilização dessas presenças. Hoje, a gente tem na UTA 50/50, metade de pessoas negras e metade de pessoas brancas.

Dedy Ricardo: Não, é maioria. 

Shirley Santos Rosário: Eu faço a coluna do meio. 

Dedy Ricardo: Nós somos três autodeclarados pretos e uma autodeclarada parda. Ficam dois alemães e uma libanesa.

Thiago Pirajira: Para você ver, Cristiano, que é uma questão complexa da gente pensar e de se refletir. Mas eu acho que tem uma importância, por exemplo, falar um pouco do meu ingresso na Usina do Trabalho do Ator, que passa por eu ter tido a minha primeira experiência de teatro com a Dedy, que era uma referência, uma professora negra, quando eu ainda era adolescente. E quando eu ingressei na graduação em teatro da UFRGS tinha professoras como a Gisela (Habeyche), que recém tinha entrado no grupo, a Ciça (Reckziegel), eu tinha feito curso também com a Celina (Alcântara). Passei a fazer parte do grupo e assim reconfigurá-lo mais uma vez, em que a gente tem a presença de mais pessoas negras. 

E eu acho que isso tem a ver com um movimento histórico de artistas negros empurrarem mais a porta, darem mais pedalaços, reivindicando seu espaço. No caso da Usina, desde a sua origem, a gente já vem de uma experiência de não tanta simpatia com um modelo único e exclusivo de se fazer teatro, quando temos como inspiração o Lume, quando temos como inspiração o Odin Teatret, que estavam pensando outros modos de fazer teatro e que vão se inspirar, inclusive, em tradições e culturas não ocidentais, não brancas. 

Eu posso dizer que eu tenho a sorte de ter entrado num grupo em que já se pensava em práticas não tão colonizantes nos modos de fazer teatro, no qual certamente a experiência de ser negro pôde encontrar um espaço mais positivo para se manifestar. O que vai se refletir tanto antes de eu entrar, lá na Corticeira, mas talvez também lá no Klaxon. A própria experiência da Celina já deflagra, já apresenta e traz isso desde o início, mas mais recentemente na Mulher que comeu o mundo (2006), que por mais que não se assuma como uma experiência negra dramatizada tem elementos culturais brasileiros que têm indícios muito potentes de manifestações negras, até elementos mais assumidos como, por exemplo, no mais recente trabalho, que é A dança do tempo (2015), e que tem como princípio dramatúrgico a improvisação. Além disso, o espetáculo é inspirado na figura do orixá Tempo. 

Então, no caso da UTA, que é um caso específico, nós somos uma exceção como grupo, porque essa não é a realidade, a de termos grupos com essa distribuição de mais ou menos uma equivalência racial. No nosso caso de exceção, acho que temos tanto um campo e um espaço positivo de recepção para essas temáticas porque o grupo já discutia anteriormente a inserção de mais pessoas negras, já se discutia outro modo de fazer teatro, um pouco diferente do modo ocidental tradicional de se pensar e fazer teatro, destinado a um determinado tipo de corpo, que vai fazer um determinado tipo de personagem, que se não corresponde àquela imagem física não pode fazer. 

Dedy Ricardo: Ainda sobre A dança do tempo, para além dessa questão dramatúrgica, e também da questão da base de movimento do Jongo e do Maçambique que nós investigamos, tem uma coisa que eu acho muito legal da filosofia das africanidades e das afro-brasilidades que é a coisa do compartilhamento, quando a plateia já não é mais só plateia porque ela é convidada a fazer parte daquele cerimonial conosco. Então tem essa coisa de filosófico mesmo, que constitui o trabalho desde o seu cerne, desde que ele começou a ser pensado, e ele já começou a ser pensado para que se compartilhasse de alguma forma. Isso é outra experimentação bem ousada, eu diria, de nossa parte: a gente quer que o público, que as pessoas façam teatro junto com a gente. 

Ciça Reckziegel: Cris, quando tu perguntas sobre a negritude, sobre a temática dos espetáculos e sobre o texto, eu acho que cada exercício vai trazendo diversas questões e em cada espetáculo também vão surgindo diversas questões tanto do ponto de vista da pesquisa de atuação, quanto de temáticas de uma forma mais geral, mais cultural, e também de uma forma pessoal. Então, quando a gente tocou no tema da negritude, eu me lembrei de trazer aqui um momento que eu acho que foi bem significativo com relação a isso, que foi quando a gente trouxe a questão da mulher e da negritude feminina em Nos meses da corticeira florir. Ali foi o momento de um processo muito rico, porque a proposta veio justamente da gente pesquisar a trova, que era a questão da fala do texto, e aí começamos a trabalhar também as danças gauchescas, e fomos vendo a predominância do homem e a forma como a prenda, como a mulher, era completamente secundária, como um enfeite ou uma empregada, uma mão de obra. E então começamos a trabalhar com o texto Anai, do Barbosa Lessa. Ali aparecia mulheres guerreiras, mulheres indígenas, que são aceitas por Anai no seu exército. E nesse exército formado por Anai há, também, mulheres escravizadas que conseguem fugir. E a gente trouxe também para esse processo de criação as narrativas pessoais da Dedy, da Celina, da Leonor (Mello) e fomos trabalhando e transformando isso no espetáculo. 

Celina Alcântara: Esse espetáculo hoje seria visto como um espetáculo que tematiza a questão da negritude, do racismo, da religiosidade afro, da relação das várias mulheridades. E a gente tematizava isso desse outro lugar, que é um lugar um pouco de intuição, um pouco de percepção de si mesmo, da relação com o trabalho, de modos de construir. Mas é interessante como a gente olha para esse trabalho hoje, como ele tematizava uma série de questões que depois, contemporaneamente, vão ser faladas de maneira muito precisa. A própria ideia de um lugar de fala está muito pautada nesse espetáculo. O ponto de vista dessas mulheres tinha a ver um pouco com esse lugar de experiência, de fala, de modos de se constituir e de construir aquelas relações.

Às vezes olho para algum trabalho da UTA e fico lembrando – num momento como esse, dessa entrevista –, e penso em como fizemos coisas que hoje a gente consegue olhar e relacionar, inclusive com coisas desse momento político e histórico recente, contemporâneo, e que na época não eram pensadas nem olhadas desde esse lugar.

Gilberto Icle: Questões que abordamos nos espetáculos e que não eram tidas ou ditas com esse vocabulário de hoje. E isso era bem perceptível em Nos meses da Corticeira Florir porque as três personagens mulheres, elas estavam no plano do real, e o único homem que aparecia, ele era uma aparição. Ele não é um personagem que convivia com elas, ele só estava na história que a Anai contava, ele só aparecia em função da história. 

Celina Alcântara: Era um espetáculo bastante feminista. Sem que a gente tivesse focado em ser feminista, era muito feminista.

Cristiano: Antes eu falei dos aspectos visuais dos trabalhos do grupo. Eu queria que vocês falassem um pouco acerca da relação do grupo com o texto. De que forma o grupo está comprometido ou não, nas encenações, nas montagens, com o texto? E de que forma se dá essa relação com o texto?

Gisela Habeyche: A gente tem um trabalho muito íntimo com o texto. Como nosso trabalho tem uma raiz na improvisação, nós criamos a nossa própria dramaturgia em cena, improvisando. E ao final do trabalho de criação a gente chega a um texto. É um caminho um tanto diverso de quem parte de um texto. Nós não começamos no texto, nós chegamos ao texto no final do trabalho. No final do trabalho temos todo um texto escrito.

Mas eu acho significativo dizer que junto com esse texto muitas vezes existe a música, a canção. Eu acho que isso também é um jeito diverso do texto se estabelecer e que tem uma cara muito particular na UTA.  Quando eu cheguei, em 2005, para fazer uma substituição que acabou não acontecendo, talvez tenha sido o lugar onde eu mais consegui encontrar um espaço de colaborar com isso, que tem a ver com cantar em cena, e com um texto que se constrói também a partir deste canto. É um caminho inverso e é um caminho também bastante tradicional para quem trabalha com improvisação. Mas ao mesmo tempo ele é também diferente do que a gente encontra nos caminhos tradicionais de fazer teatro. 

Dedy Ricardo: Eu lembro que uma vez a gente estava num festival, acho que em São José do Rio Preto (SP), se eu não me engano, apresentando A mulher que comeu o mundo, e no final do espetáculo veio um pessoal do teatro de lá perguntando: “Gente, que legal, de quem é esse texto?”. Falamos: “É nosso.” E a pessoa que perguntou disse: “Ah, pensei que fosse Qorpo Santo!”

Celina Alcântara: Acho que essa relação com o texto também tem a ver com o fato de que a gente cria aquilo que quer dizer. A gente inventa o texto não é porque a gente desmereça os demais, ou porque a gente ache que não tem nenhum texto a nossa altura. Não, não é nada disso, é porque a gente se interessa por criar o modo como a gente quer dizer, mas também aquilo que a gente quer dizer. É parte desse pesquisar.

Gilberto Icle: Nunca foi, também, um manifesto. Nós nunca dissemos assim “nós não vamos nunca montar um texto”. Não, isso nunca aconteceu. Sempre que a gente pensa em algum texto, a gente se dá conta que teríamos que mudar tanto o texto, que na verdade seria outra coisa. Então os projetos acabam sempre partindo de outro lugar que não o texto. E como disse a Gisela, o texto acaba sendo o resultado e não o ponto de partida. 

Shirley Santos Rosário: Eu entrei no grupo em 2010, e participei então já das montagens do Cinco tempos para a morte (2010) e da Dança do tempo (2015). O início, o mote, a gente se reúne e todo mundo diz sobre o que está querendo falar, e dali por diante cada um traz coisas diferentes. E a partir daí se vai trabalhando para se chegar a um senso comum, em que direção a gente vai partir para o início do trabalho. E sempre tudo é colaborativo, todos levam suas sugestões, todos trazem os temas para improvisar. Dessa grande mistura, dessa grande salada, vai se improvisando, vai se batalhando bastante, e vai se chegando a uma história, a uma narrativa que interessa a todos, e no final se tem o texto. Nos reunimos, e a partir dessa reunião de todas as vontades expostas nasce um texto. 

Gilberto Icle: E muitas vezes essas vontades já vão aparecendo no processo anterior, de outras peças. Já tem uma pista de que no futuro a gente poderia fazer alguma coisa sobre isso, às vezes está um pouco encadeado.

Celina Alcântara: Acho que os processos de criação desde um primeiro momento foram assim. E cada um foi muito característico. E tem coisas que a gente criou a partir de exercícios. Por exemplo, tem um trabalho que a gente apresentou muito, que é um espetáculo demonstração que chamamos de O Mestre ausente (1994), no qual a gente conta um pouco da própria história da UTA, desse nosso início, de quando a gente não tinha alguém que direcionasse o trabalho, quando a gente tinha esperança de que surgisse um mestre de algum lugar e se dispusesse a ser nosso guia. Então esse trabalho, por exemplo, nasce da relação com os próprios exercícios que fazíamos. Contar a história da UTA até aquele momento, a partir dos exercícios que a gente trabalhava.

Se a gente pega O ronco do bugio, por exemplo, ele nasce de várias questões, nasce da vontade das experiências na rua, nasce da vontade de trabalhar bufão – que era uma coisa que a gente já tinha trabalhado dentro do grupo, entre nós, a partir de uma experiência com o Lume –, nasce também dessa ideia de como trabalhar algo, como contextualizar uma técnica, pensando na relação com o lugar-espaço Rio Grande do Sul, com o gaúcho, com as referências gaúchas. Ele nasce de uma série de vontades e de ideias que vão constituindo o trabalho. Nesse sentido os trabalhos são muito diversos porque eles têm a ver com as circunstâncias, com aquilo que está acontecendo naquele momento e que detona ou desencadeia o próprio trabalho. 

Gisela Habeyche: E de temáticas que nos atropelam. Por exemplo, em Cinco tempos para a morte (2010), a Ciça tinha perdido o pai dela e eu tinha perdido meu pai. Estávamos as duas nas portas da entrada de um doutorado, e com esse vazio, e ao mesmo tempo estudando a presença do ator com o Gilberto (Icle) na pós-graduação. Então as questões da morte entraram em cheio no nosso trabalho. Assim como as questões da presença do ator. Afinal, o que é um ator em cena, ou o que pode ser, ou de que jeitos diferentes pode se ocupar a cena? Mas veio naturalmente, a partir de incômodos nossos. 

Cristiano: Como foi a atuação de vocês durante a pandemia?

Ciça Reckziegel: Foi acontecendo na medida em que a gente pôde. Por exemplo, na universidade, ou acompanhando os trabalhos dos alunos, dos artistas e grupos locais e do Brasil todo. As experiências das adaptações e transmissões online também se mostraram muito ricas. Talvez, como se tem discutido em vários eventos, a pesquisa e a reflexão sobre isso ainda vão se dar mais adiante. Alguns grupos realmente conseguiram trabalhar e atuar com essas ferramentas técnicas virtuais. Outros têm ou mantiveram sua característica mais voltada para a linha de um teatro que ainda era presencial, mais ou menos como experimentos cênicos virtuais, e que são ou foram igualmente interessantes. Para mim, o importante é manter-se com essa visão do investigador e do artista inquieto, e se abrir para essas novas possibilidades, aceitá-las e investigá-las.

Celina Alcântara: Nesse momento em que as pessoas estavam – e de certa forma muitos ainda estão – com problemas importantes, inclusive para se manter vivas, comendo, vivendo, eu acho que é parte do nosso fazer, já que somos professores e estamos numa condição privilegiada por isso, poder auxiliar nossos colegas, poder trabalhar para que os outros produzam. Hoje em dia estar em cena significa também as pessoas poderem continuar suas vidas minimamente. Sobretudo as pessoas que não têm outra possibilidade que não seja essa relação com a criação, com a cena.  

Nós fizemos isso, disponibilizamos a empresa que nos representa para representar outros grupos que estavam em dificuldade financeira. Nós apoiamos determinados projetos que foram feitos, inclusive botando dinheiro para que as coisas acontecessem, mesmo que fosse o pouco que a gente pudesse fazer. São modos de atuar, de fazer acontecer o teatro. 

Essa outra relação do estar em cena, do estar em relação com o público, presencial, eu acredito e espero que a gente possa tê-la de volta na sua plenitude, mesmo que agora estejamos voltando de forma tímida. Para mim, como atriz, eu espero que algum dia eu possa voltar a me reunir com os meus colegas e experimentar estar diante do mundo trocando energia. Para mim isso significa a minha volta à prática teatral como atriz. Agora estou experimentando de outras maneiras para não deixar o teatro morrer. 

Cristiano: Pra gente encerrar, quais as perspectivas para o teatro e para as artes nos próximos anos? Quais os planos ou projetos futuros da UTA? 

Gilberto Icle: Estamos concorrendo com um projeto no FAC (edital FAC das Artes de Espetáculo, da Secretaria de Estado da Cultura do RS) e esperamos ansiosos o resultado. Trata-se de uma montagem nova para espaços alternativos. Gostaríamos de fazer um novo espetáculo de rua com alguns convidados (atores e músicos). Fizemos um projeto inspirados num texto de Hermes Mancilha (1959-1996), artista negro gaúcho, diretor, ator e dramaturgo. Ficaremos muito felizes com uma nova experiência em cena. Estamos tentando reorganizar o trabalho e tentando reestabelecer uma nova ordem organizativa com uma nova produtora. Assim, estamos mesmo em um momento de reorganização para viabilizar o trabalho de cena.

De concreto temos esse projeto. Mas de toda a forma, acreditamos que, ainda que não tenhamos a mesma capacidade corporal de quando éramos jovens, ainda temos muito trabalho a ser feito. Ideias nunca faltam, tomara as condições políticas e econômicas do nosso país nos permitam.


Cristiano Goldschmidt é jornalista e pedagogo, doutorando e mestre em Artes Cênicas pela Ufrgs. Conselheiro de Estado da Cultura do RS. 

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