Crônica | Parêntese

Euclides Bitelo: Meu avô votava na direita

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Euclides Bitelo: Meu avô votava na direita Meu avô, seu Otalício, nasceu em 1914 em um sítio no distrito de Santa Tecla,  interior de Gravataí. Descendente de portugueses, italianos e “brasileiros”, lá conheceu minha avó, dona Irma, uma “alemoa” bonita, orgulhosa, severa e religiosa. Juntos criaram quatro filhos, entre eles, minha mãe. Viveu na localidade até morrer, aos 87 anos. Só saía de lá para tratamentos médicos, para ir ao banco, ou, quando ainda na ativa como agricultor, ia de carreta até a “cidade grande” para vender parte de sua produção agrícola, negociar animais e algumas garrafas de cachaça que era destilada em um pequeno alambique no galpão do sítio. Quem bebeu garante que era a melhor “canha” da região.  Muito querido por todos na localidade, vovô era conhecido por sua gentileza, por seu trabalho e sua honestidade, que beirava à inocência. “Seu Otalício entra aqui, pega suas compras e ele mesmo anota tudo no caderninho. No final do mês, quando recebe sua aposentadoria, ele vem aqui e acerta o que está devendo”, disse o dono do armazém da localidade várias vezes para meus pais quando íamos visitá-los. Se lá em cima falei da severidade de minha avó, seu Otalício era o inverso, puro afeto com os filhos e com os netos. Para este, na época, pequeno jovem, que desde cedo decidiu-se pelo lado canhoto da política, meu avô só tinha um defeito: votava na direita.  Hoje para mim é fácil entender suas posições. Nascido em meio à Primeira Guerra Mundial, em uma localidade onde o padre mandava mais que qualquer político ou magistrado, tendo crescido sob a ameaça do comunismo soviético e casado com uma descendente de alemães que foi proibida de falar a língua de seus ancestrais durante a Segunda Guerra, ele morria de medo de qualquer estandarte com a cor vermelha. Suas tardes se dividiam entre a lavoura e a famosa produção de aguardente, e tinha sempre por companhia um rádio de pilha onde ouvia os noticiários. Quando Leonel Brizola levantou a bandeira da legalidade, ele morreu de medo de que aquelas guerras, que ele só ouvia falar, finalmente chegassem até ele. Junte-se a isso os sermões do padre aos domingos, falando de ideias avançadas e ameaçadoras de Jango tal como a temida reforma agrária, e estava feito: seu Otalício passou a votar, quando permitiam, na Arena, PDS, PFL e todas as suas corruptelas.  Meu avô, mesmo votando na direita, não era um típico eleitor da direita. Pelo menos não para os padrões atuais. Primeiro ele adorava a democracia e votar não era um dever e sim um prazer. Segundo, sua figura dócil e civilizada em nada lembra esses malucos que proliferam nas ruas e nas redes sociais pedindo intervenção militar, fechamento do Congresso e do STF, morte dos esquerdistas e de todos que pensem diferente deles. Seu Otalício tinha orgulho de suas escolhas, e muitas vezes vi ele defendê-las em rodas de chimarrão debaixo das taquareiras do sítio com meu pai e meus tios, muitos destes eleitores do terrível Brizola. Nunca alterou a […]

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Meu avô, seu Otalício, nasceu em 1914 em um sítio no distrito de Santa Tecla,  interior de Gravataí. Descendente de portugueses, italianos e “brasileiros”, lá conheceu minha avó, dona Irma, uma “alemoa” bonita, orgulhosa, severa e religiosa. Juntos criaram quatro filhos, entre eles, minha mãe. Viveu na localidade até morrer, aos 87 anos. Só saía de lá para tratamentos médicos, para ir ao banco, ou, quando ainda na ativa como agricultor, ia de carreta até a “cidade grande” para vender parte de sua produção agrícola, negociar animais e algumas garrafas de cachaça que era destilada em um pequeno alambique no galpão do sítio. Quem bebeu garante que era a melhor “canha” da região.  Muito querido por todos na localidade, vovô era conhecido por sua gentileza, por seu trabalho e sua honestidade, que beirava à inocência. “Seu Otalício entra aqui, pega suas compras e ele mesmo anota tudo no caderninho. No final do mês, quando recebe sua aposentadoria, ele vem aqui e acerta o que está devendo”, disse o dono do armazém da localidade várias vezes para meus pais quando íamos visitá-los. Se lá em cima falei da severidade de minha avó, seu Otalício era o inverso, puro afeto com os filhos e com os netos. Para este, na época, pequeno jovem, que desde cedo decidiu-se pelo lado canhoto da política, meu avô só tinha um defeito: votava na direita.  Hoje para mim é fácil entender suas posições. Nascido em meio à Primeira Guerra Mundial, em uma localidade onde o padre mandava mais que qualquer político ou magistrado, tendo crescido sob a ameaça do comunismo soviético e casado com uma descendente de alemães que foi proibida de falar a língua de seus ancestrais durante a Segunda Guerra, ele morria de medo de qualquer estandarte com a cor vermelha. Suas tardes se dividiam entre a lavoura e a famosa produção de aguardente, e tinha sempre por companhia um rádio de pilha onde ouvia os noticiários. Quando Leonel Brizola levantou a bandeira da legalidade, ele morreu de medo de que aquelas guerras, que ele só ouvia falar, finalmente chegassem até ele. Junte-se a isso os sermões do padre aos domingos, falando de ideias avançadas e ameaçadoras de Jango tal como a temida reforma agrária, e estava feito: seu Otalício passou a votar, quando permitiam, na Arena, PDS, PFL e todas as suas corruptelas.  Meu avô, mesmo votando na direita, não era um típico eleitor da direita. Pelo menos não para os padrões atuais. Primeiro ele adorava a democracia e votar não era um dever e sim um prazer. Segundo, sua figura dócil e civilizada em nada lembra esses malucos que proliferam nas ruas e nas redes sociais pedindo intervenção militar, fechamento do Congresso e do STF, morte dos esquerdistas e de todos que pensem diferente deles. Seu Otalício tinha orgulho de suas escolhas, e muitas vezes vi ele defendê-las em rodas de chimarrão debaixo das taquareiras do sítio com meu pai e meus tios, muitos destes eleitores do terrível Brizola. Nunca alterou a […]

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