Folhetim

A lenda do corpo e da cabeça – Capítulo 10: Reunião

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A lenda do corpo e da cabeça – Capítulo 10: Reunião
(No capítulo anterior, Paco encontra a cabeça no Guaíba e, entendendo-se, vão atrás do corpo) Pesava como se tivesse cabeça. Como se tivesse comido uma roça inteira de batatas-doce. Devia ser porque estava desmaiado. Ou morto de vez.  É a falta de ideias, pensou Ideralda. Um corpo sem cabeça perdia a capacidade de se manter em pé simplesmente por não ter nenhuma razão para fazê-lo. Orgulhou-se da hipótese. No giro de uma noite, ela tinha se tornado uma ótima cientista. Podia agora escrever um relatório e apresentar na escola para a professora. Bastava anexar os desenhos que tinha feito do corpo, nas pausas da caminhada. O único pesar era não ter encontrado uma cabeça digna para colocar nele. Aquela de cachorro, embora já perfeitamente destacada do respectivo corpo, não era compatível. O último recurso era pegar uma de golfinho. Esse sim, animal inteligente e sensível. Então ela carregava seu amigo nas costas, na direção do Guaíba. Se bem que não era um bom local para encontrar um golfinho. Era dia de Nossa Senhora dos Navegantes. Ideralda já estava vendo os pescadores. Uma bandeira alta, azul, surgissumia conforme o vento. Com certeza os golfinhos escapariam daquele furdunço. Deviam estar indo todos para os cursos de água mais discretos. Aí lhe deu o estalo. Sem vacilar, Ideralda dobrou na direção do Arroio Capivara. E se alegrou com a decisão, já que uma cabeça de capivara serviria direitinho aos seus propósitos.  Meia hora depois, quando encontrou de fato a cabeça que pertencia ao corpo, Ideralda se deu conta de como havia exagerado. Uma cabeça de capivara teria transformado o seu amigo em um monstro. Mas ela não ficou se recriminando muito. O justiceiro Paco, que tinha um pouco mais de experiência nessa questão, garantiu que é normal a gente imaginar saídas ruins quando, no fundo, a melhor solução está bem perto de nós. – A senhorita poderia ter simplesmente costurado parte de sua cabeça no corpo dele – explicou o justiceiro – Aí, quando um dos corpos cansasse de caminhar, podia usar o outro. Para evitar a frustração de não ter tido essa ideia antes, Ideralda escolheu não pensar nisso. Guardaria essa solução para a próxima vez que encontrasse um corpo sem cabeça. Naquele momento, ela preferiu ficar desenhando a alegria do rapaz que, ao se reencontrar, chegava a se engasgar contando suas aventuras para os próprios braços e pernas. – Como é teu nome? – perguntou Ideralda. – Eu gostaria de me chamar Paco – disse ele e, buscando o justiceiro com os olhos, acrescentou – Tu te importa? – Olha que isso dá azar – respondeu a sombra, tentando ferir seu companheiro. Mas o homem já tinha dado as costas aos demais.  Não queria que, depois de ter juntado o corpo e a cabeça, lhe cobrassem uma união mais completa com sua sombra. Paulo Damin é tradutor e escritor, autor de Adriano Chupim (Martins Livreiro).

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