Folhetim

A vida e a vida de Áurea – Capítulo final

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A vida e a vida de Áurea – Capítulo final Foto: Theo Tajes

A tabela da felicidade

No capítulo anterior: agora não havia dúvida, a Áurea e o Larry caminhavam para a grande festa das bodas de Ouro mais firmes do que nunca. Eles eram a prova de que um casal há tanto tempo junto podia, sim, se reinventar. Mas então a Áurea chegou de cara amarrada depois de uma má jornada do tricolor, dispensou arroz de leite ainda quentinho feito pelo Larry e mandou a clássica: a gente precisa conversar.

Não, o Larry diria mais tarde, ele nunca iria entender. Por que diabos a Áurea inventou aquilo?

Senta, ela disse, e estava tão séria que o Larry não ousou discutir. Sentou na cadeira do papai e esperou pela bomba. Certo que vinha bomba.

– A Zuleikinha e a Maritza, sabe? Elas moram sozinhas.

– Quantas vezes eu já te disse pra trazer as gurias aqui? Eu faço um churrasco pra vocês, tu já falou pra elas da minha coxinha da asa? E do meu matambre?

– Elas gostam de ficar na casa delas. A Zuleikinha é viúva, a Maritza nunca casou, só teve uns sem-vergonha que se encostaram pra se aproveitar. Mas agora ela não cai mais nessa.  

– Nesse ponto, tu tá bem melhor que elas.

– Sim e não, Larry.

Antes que ele pudesse replicar em causa própria, a Áurea explicou que, mesmo com toda a revolução que os dois fizeram, ainda faltava alguma coisa. Melhor dizendo: sobrava. 

O Larry.

– Às vezes eu fico com vontade de abrir a porta de casa e não ter que falar com ninguém, sabe? Eu nunca morei sozinha, Larry, nunca. Saí da casa do pai pra nossa. Eu fiz 60 anos sem passar um dia da minha vida em uma casa só minha.

– Tu quer que eu vá embora, Áurea?

Mas não era isso que ela queria. A Áurea confessou que vinha pensando há algum tempo em alugar um apartamento pequeninho, até mobiliado, para não gastar com algo que bem podia ser provisório. Ela gostaria de experimentar esse formato, morar em casas separadas, tinha pensando em procurar alguma coisa ali perto, não tão perto que os dois saíssem na rua e se cruzassem todos os dias na calçada, mas perto o bastante para um ir a pé à casa do outro sempre que desse vontade.

– É que eu tenho vontade sempre, Áurea.

– Não fala assim que eu choro.

E os dois choraram abraçados. Não era uma crise no casamento, pelo contrário. O casamento estava tão bom que, para a Áurea, fazia sentido uma tentativa para as coisas ficarem ainda mais coloridas. O Larry não se conformava.

– Para que gastar nisso? Aluguel é dinheiro posto fora. Quer gastar, faz aquele troço na cara que a tua dermatologista vive te recomendando e tu diz que não pode pagar. Gasta com isso e fica aqui comigo.

– Eu vou continuar contigo. Só não na mesma casa.

– Fala a verdade. Isso foi por que o Grêmio perdeu?

– Sim e não, Larry.

– Mas para de me responder “sim e não, Larry”, pelo amor de Deus. Se fosse  no psicotécnico, tu tava reprovada.

– Sim porque seria bom chegar em casa descornada, tomar meu banho, ligar a TV, ficar no meu canto. Não porque eu tenho vontade de fazer isso nos outros dias também. Não só quando tem jogo, sabe?

Os filhos tentaram demover a mãe, mas agora ela só fazia o que queria, nas palavras do Paulinho. O Athayde, amigo da vida inteira com quem o Larry se abriu, não amaciou. Tu amoleceu demais e ela tomou conta, não dá para abrir as pernas desse jeito, foi a opinião dele.

Quando o dia fatídico chegou, o Larry saiu de casa cedo para cuidar dos netos, já que a Dete se juntou à Zuleikinha e à Maritza para ajudar na mudança. A verdade é que o Theodoro e a Carolina já não precisavam de babá, mas ele não queria ver a Áurea esvaziar os armários e deixar a casa que os dois dividiram por uma vida. Quando voltou, no fim do dia, nem ligou o rádio para ouvir o jogo. Ela me tirou até o prazer de acompanhar o meu Inter, pensou, na cama, em posição fetal.

Se a Áurea estava feliz? Sim e não. Sim porque a mudança foi uma farra, as amigas botando o terror no Residencial Noite Azul, a cinco quadras da – agora – casa do Larry. Não porque sabia que o marido estava sofrendo. E por saber disso, e temer voltar atrás, passou dez dias sem dar notícias. Até que, em um fim de tarde em que ela via Netflix um tanto culpada, mas feliz, o porteiro eletrônico tocou e o Larry subiu transtornado.

– Eu sabia que isso de morar sozinha era desculpa pra separar de vez. Tu acabou comigo, Áurea. Eu perdi tudo, as minhas piadas, as brincadeiras, perdi o Miro e a minha dignidade. Tu tem outro, confessa, que tu conheceu algum corno na Arena! Não, o corno sou eu. O corno sou eu!

Deu trabalho para consertar a situação e, vamos combinar, mesmo para uma autora que desde a primeira linha torceu para que a Áurea se reencontrasse com a Áurea que ela havia sido, o Larry tinha razão. É que a Áurea se embriagou de liberdade, no que ela também estava certa. Sessenta anos para fazer o que se tem vontade. E o medo de permitir uma coisinha aqui, depois outras ali, e voltar ao ponto de partida?

Depois de muita DR, a Áurea continuou morando no Residencial Noite Azul, indo aos jogos com as meninas e, digamos assim, namorando o marido. Ele dorme no apartamento dela duas noites por semana, mas não noites fixas, tudo depende da programação de um e outro. O sexo ficou melhor ainda. Na sexta de noite, a Áurea vai para a antiga casa e os dois ficam juntos até a hora dos jogos do Grêmio e do Inter, quando cada um procura a sua turma. Em geral, independentemente do resultado das partidas, ficam juntos no domingo de noite e sempre rola uma prorrogação. A tabela tem funcionado que é uma beleza. 

O que balançou um pouco a relação foi o humor da Áurea quando o Luisito se mandou para Miami atrás do Messi. Ela achava que o Grêmio não traria alguém à altura, mas apostou que chegariam contratações de peso. Até o momento, para a indisfarçada alegria do Larry, está perdendo a aposta. E, nessa sua nova vida, se tem coisa que tira a Áurea do sério é deixar a felicidade dela na mão dos outros.

Com o Larry, a negociação deu certo. Mas com os cartolas, ah, daí é muito diferente.

FIM


Claudia Tajes é escritora e roteirista.

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