Folhetim

A vida e a vida de Áurea – Capítulo 2

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A vida e a vida de Áurea – Capítulo 2 Foto: Theo Tajes

Cenas de um Casamento

No capítulo anterior: Áurea, filha do gremista Osvaldo, conhece o Larry, colorado, e se apaixona. Casa com ele para desgosto de seu pai, que consegue manter uma convivência civilizada com o genro por amor à filha. Isso apesar dos netos chamados Paulo Roberto e Claudiomiro. Durante mais de vinte anos, Áurea se mantém alheia ao futebol em nome da paz na família. Até que um gatilho desperta sentimentos que pareciam rebaixados à última das divisões.

Por que as pessoas se apaixonam?

Bem que a ciência já tentou explicar, transferindo o que popularmente acontece no coração para o hipocampo, o hipotálamo ou o córtex cingulado anterior. Mas nem o mais parnasiano dos poetas conseguiria transformar essas palavras em versos, então a humanidade seguiu se apaixonando sem ligar para as descobertas da ciência.

E vivendo cada amor com o coração.

Foram justamente razões do coração que a Áurea alegou ao comunicar a seus pais que ia, sim, namorar o Larry – a quem andava vendo às escondidas nas idas ao minimercado Bonzão e ao grupo de jovens da igreja. Sem ele eu sinto um aperto aqui no peito, é como se me faltasse ar e até o sangue parece que não corre direito no corpo, ela disse.

À essa altura, o Osvaldo ainda achava que conseguiria demover a filha da, como ele chamava, paixonite. Ao ouvir os sintomas que a Áurea associou a amor, o pai fez uma das piadas de sempre, que em outras circunstâncias teria arrancado nem que fosse um sorriso da mulher e da filha, as duas paradas na frente dele. 

– Ouviu só, Ruth? Cardiopatia aos quinze anos. Nossa zagueirinha nem fardou e já vai para o Departamento Médico.

As duas paradas na frente do Osvaldo sem rir. Foi aí que ele percebeu que havia perdido a partida.

Mesmo sem grande simpatia pelo Larry, a Ruth preferia a filha namorando dentro de casa do que sabe-se lá onde, e fazendo sabe-se lá o quê. Agora eram sempre quatro pratos na mesa e, nas poucas refeições em que o Larry não aparecia, a Áurea nem comia direito, como se a carne de panela com polenta que sempre foi sua comida favorita não tivesse mais gosto.

Nos dias de jogos do Grêmio, para evitar problemas, a Áurea ia para o minimercado Bonzão com o Larry ou inventava uma súbita vontade de passear em Ipanema. O importante era não deixar o pai e o namorado diante da mesma televisão. Osvaldo sofria, o coração partido. Pior mesmo foi o primeiro Grenal depois do advento do Larry. O Osvaldo assistiu sozinho, a Ruth ao lado, fazendo sudoku, enquanto a Áurea preferiu ver o jogo na casa dos sogros.

Quando entregou a filha no altar para o Larry, o Osvaldo sentiu-se novamente com a sensação de tomar seis gols do Inter na inauguração do Estádio Olímpico. Um fracasso total.

Com o tempo, a Áurea deixou de se interessar por futebol. Logo os meninos chegaram e em breve eram três camisas do Inter na máquina de lavar. Se levasse o futebol a sério como nos velhos tempos, ela confidenciava para a mãe, viveria tão amargurada quanto o já falecido Osvaldo. Sublimar o Grêmio era o que de melhor podia fazer. 

Não que fosse tão fácil. 

O Larry era, digamos, um colorado abusivo. Brilhava a cada tropeço do Grêmio. A Glória ligou para te consolar pela derrota do teu time, ele dizia para a Áurea. E ela:

– Que Glória?

– Glória do desporto nacional, ó Internacional!

E o Larry ria.

Pior mesmo era quando ele misturava o futebol com a vida sexual dos dois. Em pleno ato, o Larry falava: é assim que eu gosto, o Grêmio embaixo do Inter. 

Pronto. A Áurea ficava só esperando para levantar e fazer alguma coisa mais excitante, por exemplo, esperar o Roletrando ou o Qual é a Música. Ela era craque nos dois.

Não que a vida conjugal fosse péssima, nada disso. É que o casamento é um eterno interceptar frustrações e decepções no meio do caminho para que elas não interfiram no placar final. E nisso a Áurea também se saía bem. Não à toa, seu pai a chamava de zagueira.

Talvez o Larry tenha exagerado quando a presenteou, nas Bodas de Prata, com uma carteirinha de sócia do Internacional na categoria Nada Vai Nos Separar. Carteirinha essa que veio dentro de uma caixa da H.Stern.

A mensagem subliminar até que era bonita, nada vai nos separar. A Áurea entendeu a intenção do Larry, mas conhecendo o marido, sabia que havia ali um quelque chose não necessariamente romântico.

E isso ela não sentiu no lado esquerdo do peito. Foi no lado esquerdo do cérebro mesmo.

No próximo capítulo: Até o sócio remido pode perder a cadeira


Claudia Tajes é escritora e roteirista.

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