Capítulo 2 – Resistiré à insana falta de uma faca de plástico que seja…
O hospital ficava em um dos morros da cidade. O mesmo onde a mãe havia sido internada quando Ella era ainda adolescente, recém ingressando na faculdade, lá na distante década de 1980. Lembrou de tudo aquilo quando chegou ali. E esqueceu logo. Havia prometido para ela mesma que nunca mais lembraria, falaria sobre aquilo. E Ella disse para Ella que ali ela, Ella, não ficaria! Nem fudendo! Mas não contou para os irmãos e nem para o companheiro…
Estacionaram dentro do pátio, e Ella esqueceu qualquer ínfima lógica que fosse, quando saiu do carro. Enxergou o portão de ferro fechado atrás dela, mas no jardim plantado morro acima parecia haver escondido um portal que salvaria seu corpo, já que cabeça não parecia ter mais mesmo, da contenção, da detenção, da retenção… E saiu correndo muito, parecia que a fome antiga fortalecia suas entranhas, um mistério da falta completa de combustível se transformando em energia. Corria, corria, corria, e os três atrás dela. E os três atrás dela e ela corria, corria, corria. Até que conseguiram encurralá-la num canto do jardim e negociaram a rendição já dada pelo esgotamento físico que Ella assumia estar quando sentou no chão desabada e quase sem ar.
Acatou a condução até a recepção do hospital. Ouviu o veredito do segundo médico do dia: internação, se o companheiro aprovasse, é claro. E o companheiro aprovou tudo com uma voz forte e fazida que nem parecia a dele. E ela, pela primeira vez em tantos anos, odiou muito, muito ele e sua covardia revelada num lugar de forças tão desiguais como aquele. Era Ella quem estava ali, sempre tinha sido ela. Ele não enxergava? E ele estava com medo dela? Sentia-se incapaz de cuidar da Ella de sempre na casa deles? Como assim? Na saúde e na doença, pois sim. Ella sempre soube que casamento era cilada, mas…
[Continua...]