Capítulo 3 – Andorinhão-do-temporal
Lúpino sobe para casa e Domingos agora se permite tirar a máscara. Pensa que é melhor que o neto seja ainda pequeno demais para sentir o que está acontecendo. Será que é? Naqueles livros todos que a filha leu enquanto estava grávida, eles aprenderam que os primeiros anos de vida de um ser humano são cruciais para a sua formação. Cruciais, pensa Domingos, que não sabe quase nada sobre a própria infância. Lembra vagamente de uma vida na roça subitamente interrompida pela mudança para a capital. Algum dia lhe contaram que enquanto a mãe saía para trabalhar, ele era cuidado pelas irmãs mais velhas. Cruciais, ele pensa, ao ver que já são sete da manhã e ele pode ir embora.
Coloca uma máscara limpa. Fecha a guarita e sai na direção contrária à do passeio noturno. Segue a Castro Alves, sobe até a Independência. Agora ele tem uma longa linha reta para o centro. Nos primeiros meses da pandemia, a avenida ficou deserta. Era até bonito de ver. Parecia que uma nuvem de calmaria tinha descido sobre a cidade. Quando a filha era criança, eles assistiam juntos à Bela Adormecida, e Domingos lembrava de uma cena em que as fadinhas voavam pelo reino e faziam todo mundo adormecer. Era nisso que ele pensava nos primeiros meses da pandemia. Já não lembrava por que as fadas colocavam todo mundo para dormir, e a filha hoje detesta aquela “história de abuso disfarçada de romance”, mas ele gosta da ideia de uma cidade adormecida em plena luz do dia. Estava acostumado a trabalhar quando todos dormiam, mas era sempre à noite, e a cidade se escondia inteira pelas sombras. Percorrer a Independência deserta pela manhã tinha sido uma sensação nova. O sol batia no rosto e ele algumas vezes até tirou a máscara para sentir o calor nas bochechas. Mas isso tinha sido no começo.
[Continua...]