Capítulo 3: Tudo vai dar pé
Um tanto adormecida, toquei uma e outra vez a pele sobre a válvula. Segui as pistas de seu contorno, da região lombar, pelo lado direito da cintura, até chegar ao peritônio, próximo ao umbigo. Parecia ter desconectado da coluna. Em quase 30 anos, desde que eu havia perdido a visão e colocado a válvula, nunca tinha causado qualquer incômodo desse tipo.
Arrumei o travesseiro, descartando aquele que só podia ser um medo infundado. Afinal de contas, eu estava bem e sem nenhum sintoma da hidrocefalia. Então, por que me preocupar? Peguei o celular. Escutei o relógio. Era cedo ainda. Dava para dormir um pouco mais.
Pela manhã, o carro chegava no estacionamento do Bourbon Ipiranga, passando devagar pelos corredores e parando no box de costume. O ruído do motor desligou. Em seguida, as batidas das portas sendo fechadas foram ouvidas e, na sequência, os sons dos passos percorrendo o caminho até a entrada do shopping se dissolviam no burburinho do sábado.
– E aí? Como é que tu tá em relação ao apartamento? – quis saber minha irmã, assim que subimos na rampa rolante
– Ah, tô tranquila – respondi apoiando o cotovelo no corrimão deslizante, a mão ocupada pela bengala.
– Tu não tem medo? – ela insistiu, já se preparando para descer.
– Um pouco. – Pensei na válvula, que naquele dia se fazia notar. Talvez ela apenas representasse o receio de um novo impedimento. – Medo mesmo eu tenho é de nunca dar esse passo – disse, me equilibrando no momento de colocar os pés outra vez em piso firme.
[Continua...]