Folhetim

Capítulo 4 – Bem-te-vi

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Capítulo 4 – Bem-te-vi

Lúpino acorda tarde no dia seguinte à caminhada com Domingos. Está contente. Sai da cama arrastando as pantufas e a vontade por uma torrada de queijo. Ainda está esfregando os olhos ao chegar na sala e encontrar o pai e mãe sentados muito grudados no sofá. A mãe olha para ele e enxuga os olhos. Lúpino fica parado no limiar entre o corredor e a sala com a sensação de ter interrompido alguma coisa que não era para ele ver. Mas a mãe estende o braço e o chama. Ele se aproxima devagarinho, como um filhote desconfiado, e ainda para mais uma vez, a dois passos do sofá.

– Senta aqui, filho.

Ele olha pro pai, que acena com a cabeça. Lúpino se acomoda entre os dois. Não sabe por quê, mas não está gostando nada daquilo. A mãe começa a passar a mão no cabelo dele. Fala com uma voz macia:

– Filho, aconteceu uma coisa com o teu pai. O outro, teu primeiro pai.

O outro pai raramente era assunto entre eles. Lúpino quase nunca pensava nele, aquele pai de antes. Na verdade, Lúpino nem lembrava de como era o antes. O primeiro pai era um pai que aparecia de vez em quando nas férias da escola e o levava em passeios que ele não entendia muito bem. Se Lúpino queria ir no cinema, o pai que escolhia o filme; se Lúpino queria ir no parquinho de diversões, o pai levava para jogar futebol; se Lúpino queria ir numa sorveteria, o pai sentava em restaurantes que só tinham sorvete ruim e ficava pedindo bebidas até muito depois do sorvete ter acabado.

[Continua...]

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Lúpino acorda tarde no dia seguinte à caminhada com Domingos. Está contente. Sai da cama arrastando as pantufas e a vontade por uma torrada de queijo. Ainda está esfregando os olhos ao chegar na sala e encontrar o pai e mãe sentados muito grudados no sofá. A mãe olha para ele e enxuga os olhos. Lúpino fica parado no limiar entre o corredor e a sala com a sensação de ter interrompido alguma coisa que não era para ele ver. Mas a mãe estende o braço e o chama. Ele se aproxima devagarinho, como um filhote desconfiado, e ainda para mais uma vez, a dois passos do sofá.

– Senta aqui, filho.

Ele olha pro pai, que acena com a cabeça. Lúpino se acomoda entre os dois. Não sabe por quê, mas não está gostando nada daquilo. A mãe começa a passar a mão no cabelo dele. Fala com uma voz macia:

– Filho, aconteceu uma coisa com o teu pai. O outro, teu primeiro pai.

O outro pai raramente era assunto entre eles. Lúpino quase nunca pensava nele, aquele pai de antes. Na verdade, Lúpino nem lembrava de como era o antes. O primeiro pai era um pai que aparecia de vez em quando nas férias da escola e o levava em passeios que ele não entendia muito bem. Se Lúpino queria ir no cinema, o pai que escolhia o filme; se Lúpino queria ir no parquinho de diversões, o pai levava para jogar futebol; se Lúpino queria ir numa sorveteria, o pai sentava em restaurantes que só tinham sorvete ruim e ficava pedindo bebidas até muito depois do sorvete ter acabado.

Está tentando lembrar do primeiro pai e se dá conta de que a mãe continua falando e continua passando a mão no cabelo dele. Diz que o pai tinha ficado doente, que ele já tinha uma saúde frágil. Até então, Lúpino gostava muito da palavra frágil porque ela vinha escrita em caixas que chegavam pelo correio e com frequência portavam brinquedos de montar. Mas agora a mãe fala da saúde daquele pai – frágil, ela repete – e ele pegou essa doença da pandemia, essa que faz eles ficarem em casa, e Lúpino sabe que ela é perigosa – não sabe? Então o pai precisou ir para o hospital, ele ficou internado, diz a mãe, os médicos tentaram fazer muitas coisas, diz a mãe, mas aconteceu que aquele pai já estava muito doente, e então ele morreu. Lúpino sabe o que é morrer, não sabe? Eles já conversaram sobre isso, ele tinha visto acontecer nos filmes, mas agora aconteceu com o pai, mas ele não precisa se preocupar porque aquilo não vai acontecer com mais ninguém. Só aconteceu porque o pai já estava doente desde antes e não tinha se cuidado, mas quem se cuida fica bem, e eles vão ficar bem porque estão se cuidando, e ele pode chorar se quiser.

Lúpino não entende nada.

Então aquele pai que ele quase nunca via, agora ele nunca mais vai ver? E ele pode chorar se quiser. Lúpino não sabe se quer. Ou talvez sua intuição diga que os motivos que de fato o fazem querer chorar não são os motivos que a mãe sugere. Quer chorar porque está confuso, com medo do que não entende, e com medo dessa nova versão esquisita e instável da mãe. Sabe que a morte é coisa grave e irrevogável. Sabe que um pai é coisa grave também.

Ele não terminou de pensar sobre o assunto quando a mãe joga sobre ele ainda outra novidade: vão viajar para a serra, para o funeral, porque a avó dele – a outra avó – quer muito rever o neto que ela só viu quando bebê. Tem outra avó? A mãe explica que é a mãe do primeiro pai. Ele não falava nela quando vinha visitar?, ela pergunta, e Lúpino balança a cabeça em sinal de não. O pai não falava muita coisa quando vinha visitar, ou falava e Lúpino não lembra. Ele acha que faz tempo que o primeiro pai não vem, mas não tem certeza.

– Tudo bem, Lúpino? – pergunta o pai, este pai daqui, vivo.

Agora ele balança a cabeça em sinal de sim.

A mãe se levanta anunciando que vai preparar a mala dele para saírem logo depois do almoço. Lúpino fica ali afundado entre este pai e uma almofada, perdido e diminuto, sentindo que este pai o abraça pelo ombro, beija a sua cabeça e pergunta se ele quer fazer alguma coisa antes da viagem. O menino diz quase num suspiro que vai ligar para a avó, e logo emenda, pra minha vó, ainda pasmo com o advento de uma outra avó, uma avó que, ele se dá conta agora, nem tem nome e que, portanto, até pode ser a avó de alguém, mas certamente não é a sua avó.

Ele arrasta as pantufas de volta ao quarto e procura o celular-temporário no meio dos brinquedos. A avó atende no primeiro toque. Basta ela dizer “oi” e Lúpino começa a chorar. Ela escuta em silêncio. Espera.

– Vovó – ele soluça – eu acho que eu não tô triste do jeito certo.

– E como é isso?

– Quando um pai da gente morre a gente devia ficar triste que nem o Rei Leão.

– E tu não está triste?

Ele fica em silêncio. A avó-albatroz abre as asas.

– Não tem problema, Lúpino. Cada pessoa fica triste de um jeito. Não é sempre igual. A tristeza vem do que tá perto da gente, e teu pai estava longe. Não precisa pensar nisso agora.

A avó o convence que essa é uma das muitas coisas que ele vai entender quando for mais velho. Apesar da imprecisão e do aspecto fantasioso da promessa, ela serve para acalmar Lúpino, que hoje se tranquiliza com aquele fato simples que em outras ocasiões o enerva: tem coisas que não são para crianças.

Ele não menciona a descoberta da outra avó. Lúpino sente que a existência de uma segunda avó é uma espécie de traição à primeira. Na escola, Lúpino ficava maravilhado com os colegas que acumulavam dezenas de parentes, mas também achava que ter apenas uma avó a tornava de alguma forma mais especial. Entre os colegas de turma, Tiago é quem tem mais avós. Contando os pais dos primeiros pais, os pais do segundo pai, os pais da nova mulher do primeiro pai e mais os pais do pai do meio irmão mais velho do Tiago, ele chega em sete avós. Todo mundo tem inveja do Natal do Tiago.

Lúpino ouve a avó chamando do outro lado da linha e volta do devaneio. Ela garante que vai ficar tudo bem. Lúpino acredita e, por acreditar, consegue desligar. Pede pro pai colocar um desenho na tevê. O pai não hesita e deixa ele escolher o que bem entender no menu da Cartoon. Lúpino fica contente, embora já desconfie que essa nova liberdade seja mais um indicativo da seriedade dos últimos acontecimentos. Ouve da rua os gritos de um bem-te-vi e se sente subitamente espionado. Bem-te-vi, declara o pássaro lá de fora, e Lúpino se pergunta se ele o vinha observando há tempos. Terá visto, o bem-te-vi, quando o pai apareceu pela última vez? Será possível que ele saiba mais da vida de Lúpino do que ele próprio? Bem-te-vi, ele canta sem parar, e Lúpino se debruça na janela mas não vê nada.

Durante o almoço, a mãe não para de falar sobre a rota que vão fazer até Nova Prata. Fala nomes de estradas e faz cálculos de pedágios que não significam nada para Lúpino. Ele queria fazer perguntas práticas, queria saber se podia levar o tablet, se ele ia ter que usar máscara o tempo todo, se ele ia ter que ver o pai morto. A mãe não dá chance e emenda uma frase na outra até a hora de lavar a louça.

Eles entram no carro no início da tarde. Lúpino senta no meio do banco de trás, de onde pode ver a cabeça da mãe, dirigindo, e a cabeça do pai, geralmente distraído olhando pela janela. Lúpino olha para a cidade como se fosse um recém-chegado. Faz tempo que ele não é levado para tão longe de casa. As ruas tinham sido sempre assim? Eles descem a lomba íngreme que Lúpino conhece de quando ainda tinha escola. Andar de carro sempre sacudia tanto? Ninguém está falando mais nada agora.

Lúpino vai cuidando os fios de luz, conta um poste, outro poste, mais um. Queria saber quantos postes tem até a outra cidade. Não pede o tablet. O celular-temporário está na bolsa da mãe. Ele deita no banco e observa as nuvens. Começa a sentir uma coisa parecida a quando está sozinho no quarto, tenta dormir e não consegue. Insônia, explicou o Domingos. Mas agora tem outra coisa junto. Tenta pensar mais naquele pai. Tenta lembrar das visitas. O esforço só serve para que ele se sinta ainda mais sozinho. Procura alguma coisa nas nuvens, mas não encontra.

– Mãe, a gente pode ter um sabiá?

A mãe responde sem tirar o olho da estrada.

– Da onde saiu essa ideia, meu filho?

– Os sabiás são uma boa companhia. O Domingos me disse.

– Mas tu não acha que passarinho tem que viver livre, Lúpino? Pra poder voar, cantar, viver solto. Tu não fica com pena de peixe em aquário? Passarinho em gaiola é a mesma coisa.

– Mãe, ele não precisa ficar numa gaiola. Ele pode ficar solto no apartamento.

– Mesmo assim, Lúpino. Ele vai ficar dentro de um apartamento a vida toda?

– A gente fica, ué.

O pai ri. Lúpino acompanha pelo espelhinho da frente o olhar e o sorriso enviesado que ele dá pra mãe enquanto diz baixinho:

– Ele sabe ganhar uma discussão, né?

E a mãe sorri também e chega a olhar para trás como se Lúpino tivesse feito alguma coisa especial. Bom, aquilo não serve de nada. Lúpino não quer ganhar uma discussão, quer ganhar um sabiá, mas ele sente no ar que os adultos encerraram aquela conversa. Ele sabe quando, sem palavras, os pais colocavam um ponto final em alguma coisa. E também sabe que às vezes é possível desfazer esse ponto final em outro momento, de preferência um momento em que eles estejam felizes. Então Lúpino decide deixar a conversa do sabiá para mais tarde.

Acaba pegando no sono ainda antes das curvas da Serra. Só acorda quando o carro estaciona em frente a uma casa de madeira pintada de azul. Lúpino vê o jardim de flores em frente ao portão e se pergunta se aquele é o cemitério. Mas a mãe olha para trás e diz:

– Vamos ali falar com a tua vó?


Julia Dantas é porto-alegrense, editora, tradutora e doutoranda em Escrita Criativa pela PUCRS. É autora de Ruína y leveza (Não Editora, 2015) e organizadora de Fake Fiction: contos sobre um Brasil onde tudo pode ser verdade (Dublinense, 2020).

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