Folhetim

Capítulo 8: Resistiré às imaginárias desventuras de uns fiéis escudeiros que se sonham cavaleiros durante o banho de sol?

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Capítulo 8: Resistiré às imaginárias desventuras de uns fiéis escudeiros que se sonham cavaleiros durante o banho de sol?

Meio da manhã. Ella e o povo do quinto andar descem rumo ao pátio bonito, muito arborizado do hospital. Momento de deixar a pele se encontrar com o sol sem o filtro do vidro e as sombras do gradil. Caminham todos juntos, guiados por um enfermeiro que chamou Ella, Bruno e mais uns dois ou três dali por seus nomes logo de cara. Diferente aquilo. Não tinham crachá nem nada. Indício de figurinhas marcadas? Bah… Mas era bacana ele, puxava assunto com todos. Auxiliava, por exemplo, uma interna mais medicada, oferecendo o braço, ajudando no equilíbrio para que ela conseguisse subir a pequena lomba que levava ao espaço destinado, no jardim imenso, ao povo do quinto andar. 

No espaço aberto, caminhavam pra lá e pra cá e podiam conversar mais sobre tudo, sem medo de terem ouvidas suas conversas quase sempre de comadre e, desse modo, pela insensatez insistente que os perseguia, perderem os tais pontos que alguns internos juravam existir. Bruno estava agitado naquele dia. Caminhava ligeiro. Ella acompanhava, mas pediu para ele desacelerar um pouco.

– Pra quê?

– Pra olhar pros lados, quem sabe? Eu quero olhar, não tá dando nesse teu ritmo. 

Bruno tinha quase a mesma idade do filho de Ella, era uns dois anos mais velho. Fazia meses que estava ali. Não sabia quando sairia. Na cidade tinha a mãe com quem morava, o pai que via muito, muito pouco, e um tio. Fora, uma irmã, que morava muito longe, em outro estado. Gostaria de morar com ela quando saísse dali. Tinha paciência com ele, ao menos tinha tido uma vez. Estava ali por uso de umas drogas das menos leves, não era a primeira vez. De novo havia interrompido o curso universitário, não terminava aquilo. 

Havia passado em pelo menos três vestibulares da UFRGS, iniciado dois dos três cursos, e não finalizava nunca o curso em curso.  Lia muito, sabia muito, entendia de uma porção de coisas, só não se entendia. No colégio era do chiqueirinho dos mais inteligentes, ria de si mesmo quando dizia isso. Explicou que o tal chiqueirinho era a turma dos portadores de altas habilidades da escola pública que frequentou no Ensino Fundamental e que era oferecida aos desavisados que, por exemplo, aprendiam a ler sem nem ao menos saberem falar direito ainda. Uma baita porcaria de cruz pra carregar, entre tantas outras. Altas habilidades em que mesmo? Pois sim… Haja planeta pra tanta gaveta, pra tanto apartheid, né… Tinha uma conversa boa, quase sempre salpicada de sarcasmo. Era difícil no trato o Bruno. 

E caminhavam, e caminhavam pra lá e pra cá. Até que numa das idas para o fundo do jardim ouvem um barulho de água, pelo jeito um córrego, e seguem animadíssimos os ouvidos em busca do que o som anunciava. Sabiam que tinha uma cachoeira por ali, história que corria entre os internos. E, juntos, encontraram a tal cachoeira, minúscula, mas cachoeira. Encontraram, juntos também, os seus nomes gritados aos quatro ventos pelo enfermeiro responsável pelo grupo.   

– Nós vamos olhar pra cachoeira lendária um pouco, né, Bruno? Azar do povo de branco… Que se rasgue um pouco berrando por lá…

– Mas é claro que sim, Ella. Tá faltando movimento nessa porra de hospital. Vamo animar isso aqui, por uns instantes que seja. 

E dê-lhe grito de enfermeiro funcionando como música ambiente…

Naqueles curtos minutos que durou a contemplação da quedinha d’água, Ella voltou uns quarenta anos atrás em sua vida e se viu ao lado de uma outra cachoeira bem maior e muito mais bonita do que aquela, em um outro morro da cidade, onde banhava sua adolescência divertida, em dias de outros verões, junto com a turma com quem cresceu naquela beirada de Porto Alegre. Bruno olhava Ella que olhava a cachoeira e ria do excesso de berros do enfermeiro indignado. Brincava que em breve a brigada antifuga seria acionada se os dois insistissem em continuar com o movimento rebelde, quase guerrilheiro. Voltaram, portanto.

Ouviram a reprimenda esperada, pediram umas cínicas desculpas e contaram pra todos a belezura que era a tal cachoeira lendária. O enfermeiro ficou atento à descrição exagerada de propósito de Ella e de Bruno, maldosamente combinada pelos dois no caminho de volta até o grupo. Precisavam levar alguma alegria aos companheiros mais catatônicos, isso era imprescindível! Diziam que lamentavam não terem um celular à mão para documentar a efeméride e poder, assim, socializar a belezura que encontraram. Merecia um belo registro fotográfico aquilo tudo, ah como merecia… E, por dentro, riam de se mijar da porcaria de cachoeira que encontraram. A expressão do enfermeiro, entre o sério e o estupefato com a tamanha cara de pau dos dois, valia todos os pontos perdidos com a brincadeira de encontrar cachoeira misteriosa e minguada no meio de jardim de doido.   

O banho de sol continuou por mais um tempo. E rendeu uma combinação que ocupou, pro bem e pro muito mal, a vida de Bruno e Ella por uns dias. Veio na forma de uma pergunta estranha:

– Ella, tu topa ser meu Sancho Pança? Tô gostando da tua parceria aí.

– Par ou ímpar?

– Pra que isso, Ella?

– Também sou o Quixote! Tu nunca desconfiou, Bruno?

– Tá, mas quem é que vai ser o Sancho? 

– Sei lá… Não querendo ser mandona, eu acho, Bruno, que eu deveria levar esta promoção, por merecimento e também por tempo de serviço. Faz um baita tempo que eu ando atacando, a grito até, gigantes que não passam de uns moinhos de vento já meio enferrujados, emperrados mesmo, por esta cidade, e vez ou outra saio provocando desatinadamente muito leão gordo, podre de acomodado, que insiste em ficar em sua jaula, bocejando, sem um pingo de vergonha que seja do seu conformismo. (Odeio os indiferentes, Gramsci!). E isso tudo não contando sequer com um mísero bondoso e prudente Sanchinho Pança tentando me convencer a não fazer ou a fazer diferente, quem sabe. Enfim, mereço bem mais ser o Quixote do que tu, eu desconfio. E olha, tem mais: faz um tempão que eu caminho sobre essas terras levando a literatura nas costas, literalmente, pra lá e pra cá, deixando até ela tomar o lugar dos meus olhos por tantas vezes. Tenho pelo menos dois dos pré-requisitos básicos para enfrentar a empreitada, o que tu acha? 

– Que pré-requisitos, Ella? Tu tem cada uma…

– O atrevimento desnorteado e a literatura nos olhos, ora bolas. 

Feliz do poeta que trazia a bandeira no nome. Eu trago a minha nos olhos, Ella.

– Isso é teu, Bruno?

– Não. É de um poeta curitibano de nome Paulo, do tempo do Leminski até, mas que não é o Leminski. Do tipo maldito também. Foram contemporâneos lá pela década de 80, conta a lenda. Uma namorada paranaense que tive, muito mais velha do que eu, num verão que passei na Ilha do Mel, disse esse poema-disparate um dia pros meus olhos verdosos e meio diferentes às vezes. Se a questão é a literatura nos olhos… eu ganho. Meus olhos, que são também os do poeta outro lá, segundo a não mais minha namorada já faz tempo, até inspiram, fazem literatura por aí, não acha? 

– Sei lá, isso aí tá parecendo mais um dos tantos ditos do Sancho que povoavam as conversas dele com o Quixote e companhia por La Mancha afora. 

– Tipo “Se outras casas não têm goteira, a minha não tem telhado.”? Ou quem sabe: “Não há estrada tão plana que não tenha algum buraco ou lombada”. Temos ainda: “A loucura deve ter mais servos e agregados que o bom senso.” Por fim: “Se o cego guia outro cego, ambos correm o risco de cair no abismo.” Que tal, Ellinha? Rebate essa agora, vai!

– Aprovadíssimo pro papel de Sancho, Bruno! Tu já decorou até uns pedaços de falas do fiel escudeiro! Que memória filha da puta que tu tem, seu doido!

– Mas é só por hoje que tu é Quixote, Ella. Amanhã eu sou o Quixote e tu vira o Sancho. Precisamos de alternância no poder e, é claro, de justiça, de direitos iguais e de democracia na gestão do pouco juízo que nos rege, tu não acha?

 E seguiram lomba abaixo atrás da pequena multidão de sem rumos guiada pelo estranho povo de branco que sabia os nomes de todo mundo. Na descida, acompanhados pelo burrico e pelo pangaré Rocinante, Quixote e Sancho, Sancho e Quixote, caminhavam e se sonhavam, alternadamente lá por dentro, cavaleiro e escudeiro, escudeiro e cavaleiro dispostos a desbravar, com seus olhos e ouvidos povoados por histórias de tantos tempos, outros dias naquela mancha de lugar nenhum. 

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