Capítulo 1 – ¿Resistiré al Diluvio?
Quando Ella se deu conta, estava caminhando, na contramão, no meio de um mundo de carros que entupiam a avenida Ipiranga, uma das mais movimentadas da cidade na hora nervosa que é o perto do meio-dia. Era agosto, vestia pouca roupa e sentia um rombo de fome antiga no estômago. Há dias quase não comia e dormia menos ainda. Lia, lia, lia, ouvia música, ouvia, ouvia… Ouve vozes? Não, só música e as gentes que cantam nelas e também umas falas de umas outras que saem de dentro dos livros e conversam comigo nas histórias inventadas por outros que eu procuro pra me distrair de tudo isso… Ouvia essa conversa futura, ou pensava que ouvia, enquanto os carros e seus motoristas desviavam dela gritando e buzinando impropérios que nem encostavam nos seus ouvidos.
Estava sem a inseparável e salvadora máscara e sentiu muita vontade de correr rumo ao fundo do Arroio Dilúvio para acabar logo com aquele vexame, quem sabe morrendo cedo… E correu, livrando o trânsito do seu atrapalho. Alguém já teria morrido afogado no Dilúvio??? Afogado talvez não, mas de doença imaginava que sim. Na sua cabeça começaram a gritar as informações arquivadas com cuidado num dia distante demais daquele dali, sobre a podridão do curso d’agua triste e sujo que cruzava aquela parte da cidade e desaguava no rio-lago Guaíba. Esgoto de não sei quantos hospitais, mais os esgotos pluvial e doméstico, enfim, dados que respingavam nela direto da sua memória bem talhada para guardar coisas desse tipo, e que faziam parte dos resquícios de uma formação da Secretaria do Meio Ambiente oferecida para o grupo de professores novos que ingressava na Rede Municipal cerca de 25 anos antes daquele momento em que ela buscava a paz que há tempo não chegava. Era bactéria e fungo pra acabar com um exército inteiro de desavisados, calculava. Haveriam de sobrar umas pra ela. É a parte que te cabe neste latifúndio…, cantarolava com Chico e com João Cabral lá por dentro. Daria certo sim, daria. E voou rumo ao Dilúvio em busca da redenção fedida e completamente apaziguadora que ele traria junto com sua água escura e peguenta.
[Continua...]
Parêntese
A revista digital Parêntese, produzida pela equipe do Matinal e por colaboradores, traz jornalismo e boas histórias em formato de fotos, ensaios, crônicas, entrevistas.
Quer ter acesso ao conteúdo exclusivo?
Assine o Premiumou faça login
Você também pode experimentar nossas newsletters por 15 dias!
Experimente grátis as newsletters do Grupo Matinal!
