Folhetim

Duas Vanusas – Capítulo 10: O voo

Change Size Text
Duas Vanusas – Capítulo 10: O voo

O que sobra depois da festa? Depois que todos se encontram e dizem o que tinham de dizer, e não dizem outro tanto daquilo que não pode ser dito? O que sucede ao retorno de uma viagem, a uma visita furtiva ou a uma estadia de alguns dias? O que resta no fundo do tacho quando o tempo do doce passou e em todo paladar a sensação é um fundo rançoso capaz de ranger os molares e crescer em impaciência o vazio das mãos?

A vida de uma galinha não é fácil. Tudo começa no fato de sair do corpo da mãe num processo imaturo de vida. Um ovo. Ser um ovo. E o que afinal é um ovo? Poderíamos primeiro pensar o que não é um ovo, ou o que ainda não é, para então inferir o que ele poderia ser ou o é de concreto e abstrato sob os limites de sua casca. Um ovo ainda não é um animal. O ovo ainda não é um ser vivo. Mas o ovo é vivo? Passando dolorosamente através de um buraco com diversas funções, tanto de entrada como de excreção, o ovo encontra-se pela primeira vez sozinho no mundo. A solidão de não ser e ainda assim delimitar-se.

Vanusa já foi um ovo como qualquer outra galinha. Um ovo não é sonho, não é fantasia, não é mito nem muito menos lenda. Mas também não sendo ainda um animal, ele só pode ser o que é, apenas. O ovo é somente um ovo. Para além, e somente por isso, de sua casca, todas as negativas do que ainda não pode ser servem somente para lhe encerrar na solidão de uma existência una. Vanusa parecia se lembrar disso naquele dia de festa. Recordou-se de sua essência de ovo.

As crianças se distraíram com a bicicleta, e os adultos, por sua vez, se deixaram distrair pelas crianças. Porém, o dia, com um pouco passar de horas, logo tomba em noite, e o horário avançado é sempre a melhor desculpa para terminar todo tipo de constrangimento ou visita. Como soprados pelo vento, um a um, uma a uma foram se despedindo e se dissipando, abrindo espaços na casa que parecia ter ficado pequena para tantos encontros. O convite para o retorno do silêncio foi feito, apesar de parecer não importar muito. A mãe mais uma vez se preocupando com banho, janta e cama. Ninguém lembrou, ou quis pensar. Ou se o pensamento surgiu como uma pequena faísca, logo se apagou sem energia. Assim, mais uma vez lá estava a galinha Vanusa sozinha como um ovo no quintal.

Você já viu uma galinha voar?

Antes de ser possível seu voo, um processo muito complexo é iniciado dentro da galinha: o retorno à simplicidade. Rodeada pelo mundo infantil, Vanusa chorou, se assustou com chuva, teve medo, sonhou e brincou. Mas ela não é uma criança, ela é uma galinha, e tem de se lembrar disso. Para voar como ave que é, Vanusa caminhou pelos quatro cantos do pátio, deixando para trás as dores que não eram suas, esvaziando-se de mágoas e desejos alheios e guardando consigo, no ínfimo tutano de seus ossos, as lembranças, como faz toda galinha.

Cisca alguns cantos com mais areia, no meio da desordem humana cavouca o chão com suas unhas afiadas em busca da origem. Cisca e bate seu bico algumas vezes na lateral, deslizando-o, como faz toda galinha para limpá-lo e afiá-lo. Cisca sem pensar que está ciscando. Em poucos instantes se esquece de Verônica, de Pedro, da tia, do pai. Se esquece também daquelas outras pessoas desconhecidas. Quanto mais cisca, mais perde de sua humanidade. Encontra algo no chão. Vira a cabeça para ver o que é com o olho esquerdo. Não consegue. Vira a cabeça, como faz toda galinha, para ver com o olho direito. Consegue. Vira a cabeça mesmo assim, diversas vezes para o lado esquerdo, direito, esquerdo, direito. Bica. Bica de novo. Bica. Bica. Bica.

Não podemos mais acompanhá-la. Ela tornou-se mais uma vez animal, talvez não demore para reencontrar sua essência de ovo. Não compreenderemos os processos simples que agora permeiam seu cérebro miúdo. Pois é disso que é feito uma galinha, uma antiga lembrança do que não era ao ser apenas um ovo e miúdos. Baço, fígado, rins, coração, moela, costelas, pescoço, coxas, sobrecoxas, pés, asas. Galinha tem asa, apesar de nem ser um pedaço nobre, apesar de quase nunca voar. 

Você já viu uma galinha voar?

É um acontecimento mágico. A galinha está num pátio qualquer, as pessoas dentro de casa, adultos e crianças, dormem. Cada um preocupado em sonhar seu próprio sonho, cada um envolto de sua própria névoa de complexidade. No pátio, o ambiente das coisas não se esclarece ainda em ser dia, como na presença diurna do sol, nem se aconchegam em ser noite, durante a fuga noturna da lua. Naquele frágil momento que, como uma casca de ovo, parece dividir dois mundos, no instante de sono da consciência, a simplicidade de se ter asas e voar.  

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.