Folhetim

Inferninho – Capítulo 1: Diabas

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Inferninho – Capítulo 1: Diabas

Desocupada pessoa, se queres mesmo saber o que aconteceu nesta breve passagem místico-libido-amorosa, a primeira coisa que preciso explicar é meu nome. Chamem-me simplesmente Dieison. Assim mesmo, com “D”, tá ligado? Nasci em uma sexta-feira treze chuvosa, enforcado no cordão umbilical. Parto anormalíssimo. Fórceps e tudo o mais. A pele azulada, quase sem batimentos cardíacos. Músculos flácidos e nenhum movimento. Respiração mínima. Talvez atingisse os zero vírgula cinco em uma tabela de escalada Apgar. Mas não morrer tão fácil é um dos meus pontos fortes. Também, com um nome desses. Sim, meus pais eram fãs dos filmes com o personagem assassino conhecido por usar uma máscara de hóquei no gelo. Mas isso, embora a graça tenha me atravessado a existência desde os bancos escolares, agora já não é a coisa mais estranha que incorporo.

Exponho aqui em seus pormenores, minúcias e assombros, a experiência sobrenatural que me marcou corpo, alma e espírito – amém. Só de contar me arrepia da nuca até o meio das costas. Mesmo sabendo que muitos não acreditarão, e eu os entendo, nos improváveis ocorridos desses últimos dias em meio a ambientes fumacentos, frequências radiofônicas, bebidas fortes, bocas e mãos quentes, auras cintilantes, mesas de canto, portais, garçons, shows pitorescos e canções de gosto duvidoso, tudo sob a tímida luz dos abajures lilases. Digo últimos dias porque não creio que haverá outros iguais. Aliás, não tenho certeza se os dias serão os mesmos a partir de agora, depois de tudo que vi, ouvi, provei e senti na pele. Estou na minha cama – confio que sim – deitado de bruços com o travesseiro sobre a cabeça, as lembranças me assaltam à mão armada sem o menor pudor. No rádio-relógio, quase sem volume, a Diabas permanece fora de sintonia. Rezo que para sempre. São seis horas e sete minutos. Me ocorre, ainda sonolento, uma frase de Virgílio: “É fácil a descida ao inferno”. 

***

“O meu problema, huh, huh, huh / O meu problema, huh, huh, huh / O meu problema é sexo, algemas e cinta-liga”. Essa é barbada, tá ligado? Sexo, algemas e cinta-liga – Tequila Baby. Anotei aqui. 

Até então achava que era balela isso de estação de rádio pirata, coisa de filme. Foi o Tropeço, amigo de infância e provavelmente de pregressas vidas malpassadas que me apresentou a Diabas, prefixo KYD 666.  “Só música falando de sacanagem, tu não tá ligado, parça”. “Tá, sei. Vou sintonizar lá pra tirar uma febre”. Daí fui pesquisar, porque o Tropeço, além de ser desastrado de nascença, é um baita dum trovador e mentiroso profissional. Daqueles que mentem com propriedade, tá ligado? “Mano, é um filé, precisa de resistor de um megaohm, capacitor de dez nano-farad, uns fio lá de cinquenta centímetro com aquelas capa isolante preta e vermelha, manja?, um capacitor variável de uns dois mil a dois mil e duzentos pico-farad, mais um capacitor eletrolítico de vinte e dois micro-farad, outro capacitor de trinta e três pico-farad e já eras, tá no ar”. “Ãhã, sei”.

Esqueci de dizer que o Tropeço é um cabeção, tipo esses geniozinho. Descobri então nas minhas pesquisas que a primeira rádio pirata surgiu na Inglaterra, na década de mil novecentos e cinquenta. Rádio Caroline. A terminologia rádio pirata foi usada porque suas transmissões partiam de um navio ancorado na costa britânica. É uma estação de radiodifusão em situação ilegal por não ter autorização de funcionamento expedida pelas autoridades governamentais competentes. A Diabas transmitia uma ou duas horas e desligava por um ou dois dias seguidos; depois, sem avisar, sempre exatamente as seis e dez da manhã, voltava a emitir. Mas o barato era o seguinte: dessa vez não era totó do Tropeço, só tocavam músicas brasileiras que celebram o amor e o sexo. “A tua boca me dá / água na boca / Ai que vontade de rasgar / a nossa roupa / Vamos pra qualquer lugar / Praquela gruta / Pra qualquer quarto de hotel / Praquela moita”. Oh, conheço. Tua boca – Itamar Assumpção. Anotada.  

A “sua Malllvada Loooucutora” (bordão da própria) também era uma atração. Além do timbre peculiar e uma aspereza na voz de quem fuma filtro vermelho antes do café, distribuía brindes eróticos e criava promoções do capeta! Sempre desconfiei que eram falsas, apenas brincadeira com os diabouvintes, tipo, uma vez ela sorteou um cruzeiro em um navio naturista, passageiros e tripulação peladões, numa boa, achei digno. Noutra presenteou uma diabouvinte com um boy magia durante vinte e quatro horas no motel Botafogo. As ideias eram engraçadas e tudo, mas difícil de acreditar. Até que o Tropeço apareceu com um vibrador de três velocidades dizendo que ganhou em uma das promo da Diabas. “Tá, mano, não quer acreditar não acredita, mas a mina é foda, não é ou não é?”. “E tu escolheu exatamente esse brinde, véio?”. “É que a boneca inflável já tinha encerrado, tá ligado?”. “Tá, sei”.

Outra coisa que não disse é que o meu amigo, além de desastrado, trovador, mentiroso profissional e geniozinho, é também um putanheiro de carteirinha. De carteirinha, mesmo. Uma época, chegou a ter quarto vip em simultâneo no Madrigal, no Gruta e na Tia Carmem. Isso mais recentemente, porque as farras nos brega da vida começaram bem cedo. Herança do pai, ele que nos levava em tudo que era cabaré da rota romântica ali, Farrapos, Voluntários e arredores, enquanto os nossos amigos no máximo assistiam o cine privê da Band. Por isso que a nova promoção da Diabas era, nas palavras do Tropeço, “IM-PER-DÍVEL, parça!”. Uma semana inteira rodando os inferninho de Porto sem pagar nada, zero oitocentos, tudo pela FIFA, FREE, a rádio ia bancar tudinho. E o melhor, com direito a um acompanhante. “Tá pra nóiz!”.

As condições eram as seguintes: acertar a ordem, os nomes e as bandas das três últimas músicas que tocaram na rádio. “Barbadinha!”. “Anotei em algum lugar as duas que ouvi, mas a última não peguei”. “Eu sei! Eu sei qual é, mas não sei o nome e nem quem tá cantando…é… aquela…assim… Ah, eu não sei cantar, mano, tu tá ligado, né?”. “Vai, meu, não te faz”. “Tá, era aquela assim, oh: ‘O dotadão arrastou todas as garotas para a casa dele / O dotadão arrastou todas as garotas para fora do bar / Hey rapazes / Esse cara deve morrer / Deve morrer / Deve morrer / Deve morrer…’, tá ligado?”. Claro que eu tava ligado, isso é Cascavelletes, o dotadão deve morrer, mas e cadê que eu lembrava onde tinha anotado as outras duas, e lembrar das coisas é um dos meus pontos fracos, por isso que eu anoto, só esqueço onde anotei. Lembrete: Preciso começar a anotar onde anotei as coisas.

Já era quase noite quando achei no lixo o papelzinho amassado com as músicas anotadas, coloquei na ordem certa e indicando a banda. Não tinha erro. O número do telefone da Diabas, por motivos óbvios, sempre mudava. Tropeço ficou de pegar o mais recente e enviar nossa resposta. Nem dormi direito. Coloquei o rádio-relógio pra despertar seis e sete, teria ainda três minutos para sintonizar na Diabas. Cinco e vinte toca o meu telefone. Era o Tropeço: “E aí, mano, tá ligado já?”. “Cara, faltam quarenta minutos ainda, vai dormir!”. Mal pude acreditar quando a Malllvada Loooucutora anunciou os vencedores. Tropeço voltou a ligar, desta vez não entendi nada que dizia, estava nitidamente comovido, chorava largado. Agora era aguardar as orientações. Chegariam em um ou dois dias. Foram quarenta e oito horas de aflição. Até que naquela manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, percebi que a voz da Malllvada estava mais nítida; com os olhos ainda piscos de sono, reconheci meu amigo no balcão, gesticulava para o barman, a decoração também me era familiar, sim, tenho certeza, estávamos no Kimbal, o primeiro dos inferninhos onde passaríamos os próximos sete dias. Sobreviver para contar o indizível era uma questão de honra. E com a nossa honra, tu sabe, tem que se ligar. 


Tiago Maria é brasileiro, cansado, 42 anos, cardioinsistente. Profissão: esperança. Atualmente, trabalha com redação publicitária e cursa Licenciatura em Letras na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS. Autor de SEMVERGONHO, crônicas com e sem noção (Santa Sede, 2022).

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