Folhetim

Inferninho – Capítulo 7: Wandda

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Inferninho – Capítulo 7: Wandda

O show da estrela Dalva Vulva contava com demonstrações como atirar dardos em alvos, tragar cigarros e disparar bolinhas de pingue-pongue em pirâmides de copos plásticos usando os músculos da vagina. Até estourar uma garrafa de Champagne ela conseguia. Pós espetáculo, Dalva nos explicava em bom castelhano que o pompoarismo é cercado de tabus, fetichismos e achismos, que essas apresentações eram um desserviço, pouco correspondiam à realidade da prática e só serviram para vulgarizar e afastar mulheres de conhecê-la. “Pero me pagan bien y todavía me divierto mucho, así que…”. Rimos. Já me sentia alterado. “Mozo, una Cueca-Cuela, por favor!”, pedi gastando todo o meu vocabulário paraguaio. Dalva convidou para conhecer seu camarim. Ainda um pouco receoso depois de tudo que vi, aceitei. Pediu uma garrafa pra levar e avisou o garçom: “no necesitamos vasos ni abrebotellas, gracias”. Apostou que eu não bebia uma garrafa de Big Aplle no gargalo. Apostou não, duvidou, que é bem pior. Então tá, ném…

O dono do mercadinho nos pegou roubando chocolate e iogurte, prendeu a gente na dispensa perto do forno, eu via o Tropeço chorando mas não conseguia chegar até ele, dona Celeste furiosa, minha professora dando risada, as imagens se confundiam, fazia muito calor… Dessa vez acordei escorado no balcão do bar, atravessado por uma ressaca de maçã verde, todo suado. O Wandda não tinha uma boa circulação de ar, era basicamente um pavilhão, e naquele dia, ou seria noite?, estava lotado. Reconheci a dona Vanda pelo tradicional traje country. Falava com o Bombeiro Bombado em particular. Fiz um esforço tremendo para abrir os olhos. “Despacito / quiero respirar tu cuello, despacito / deja que te diga cosas al oído / para que te acuerdes si no estás conmigo”. Tá essa é Despacito, mas vai saber quem canta esse troço. O sotaque me lembrou a estrela Dalva e fui direto conferir se tava tudo certo ali embaixo. A casa era na verdade um clube para mulheres, mas a irmandade toda estava sempre lá. As atrações eram os strippers, garçons dançantes e as famosas bebidas temáticas. As paredes revestidas de couro com enormes botões, tipo cabeceiras, ornando com sofás em tecido zebrado. Maitê se aproximou. O semblante demonstrava preocupação com a minha aparência, “nossa, Di, tu tá um caco, querido…”, disse com a peculiar voz metálica de tia-avó trabalhada no tabaco. “Não tenho dormido muito bem nesses últimos dias, madrinha”, falei limpando o suor da testa e ajeitando os cabelos. Pedi ao garçom uma dose generosa de Caralitos ao Rum, “sem gelo, por favor, amigão”. Maitê pediu um Sexy on the Wandda, “Bastante açúcar, amooor, que a vida anda amarga”.   

A Maitê era uma das travestis mais antigas de Porto Alegre, mas ai de quem dissesse isso. Era mumificada, falavam os bebuns. Podia estar em qualquer faixa entre sessenta e cento e vinte anos, magérrima, cabelos descoloridos, sempre de tiara escondendo a calvície, usava uma pochete tigresa atravessada no peito, muito atenciosa com todo mundo, uma delicadeza de pessoa. Chamávamos ela carinhosamente de madrinha. “Sabe, Di, quando a coisa não tá boa eu danço pra sacudir as energias, por que tu não tenta?”, disse dando uma reboladinha na tentativa de me animar. “Não tô legal hoje, madrinha, tá ligada?, ainda tenho que encontrar o Tropeço, viu ele por aí?”. Revirou os olhos, era apaixonada pelo Tropeço, que nunca lhe deu bola. Abanou-se com um leque. “Afe, ôh lá em casa! Vi aquele gostoso no camarim com o Negão Auri, esses dois, hein, sei não…”  Engoli num trago os Caralitos e me despedi, precisávamos de um plano, e o Tropeço às vezes era bom de plano. No caminho até o camarim um solavanco, o Bombeiro me pegou pelo braço, “cara, diz pro teu amigo que o estrelo aqui sou eu, tendeu?, se ele tentar infiltrar o Negão Auri no meu show a cobra vai fumar, cupincha, papo reto”. O Bombado se achava o dono do campinho, as tiazona se atiravam no palco durante as apresentações dele, enchiam a sunga de dinheiro, dona Vanda o tratava como filho. Ele virava bicho quando tocavam no assunto, mas rolava uma lenda de que a mangueira do Bombeiro, apesar de imensa, era furada e de borracha.

Encontrei o Tropeço e o Negão Auri próximos do palco, bebiam Blow Job de maracujá. “Mano, se liga, o Bombado tá mordido contigo”. O Negão Auri se levantou de imediato “cadê esse mané que hoje eu tô louco pra mandar um pro DM…” Tropeço tratou de acalmar os ânimos, “Relaxa, capitão, já acertei tudo com a dona Vanda, esse Bombeiro é só papinho furado, não é ou não é?” “Pelo que sei não é só o papinho que é furado”, riram largado, Tropeço derramou todo o seu Blow Job no colo do Negão Auri, que foi até o banheiro se limpar. “Parça, precisamos de um plano, qual vai ser?” “Já tenho tudo bolado, só te liga”. Na teoria, meu amigo tinha umas sacadas geniais. Na prática, muitas não funcionavam como o esperado, mas quando dava certo era um golaço. A ideia era ele se disfarçar de Malllvada e assumir a mesa de som, do palco; com a visão privilegiada, tentaria perceber movimentações suspeitas, e minha missão, da pista, seria abordar a entidade. É certo que o mal-assombrado estaria ali. Na teoria, como disse, beleza, mas como identificar uma entidade se minha parte sensitiva é ainda pior que o meu portunhol? Sou praticamente um analfabeto espiritual, não tinha a mínima ideia de como se faz um contato desses. “Relaxa, mano, vou te dar a fita lá do palco e tu confere na pista, barbadinha, já te larguei mal alguma vez?”, perguntou o Tropeço. Aí começou a me dar medo. 

Tudo corria bem, a roupa de Malllvada ficou ótima no Tropeço, nem a Maitê, no palco, do ladinho dele, para chamar a próxima atração, percebeu o disfarce. A essa altura eu já tinha tomado duas ou nove Caipiranhas, estava atento aos movimentos do Tropeço no palco e ligado na pista em qualquer sinal estranho. O mais estranho que eu vi foi o seu Manso, de cantinho, cochichando com a dona Vanda. A introdução eletrônica anunciava que os shows iam começar: “Rhythm is a dancer / It’s a soul’s companion / You can feel it everywhere / Lift your hands and voices / Free your mind and join us / You can feel it in the air”. O Tropeço se puxou nessa como Dj. Maitê assumiu o microfone “Muito boa noite a todes, espero que estejam bem, felizes e com tesãããooo!” O público enlouqueceu. “Hoje teremos um duplo show especial, com dançarinos competindo ao som da Malllvada Loooucutora!”, sobe o som.  “Ooh, it’s a passion / Ooh, you can feel it in the air…”. Os dançarinos já estavam no palco, quando vi não acreditei, Bombeiro Bombado X Negão Auri. Coisa do Tropeço. Pensei: certo que vai dar merda. No mesmo instante, um vento gelado entra pela porta, que se entreabriu sozinha. Arrepiei o corpo todo. As luzes da copa piscaram três vezes. Tive a sensação de estar sendo observado. Um cheiro forte de jasmim. Senti que me tocaram, mas não havia ninguém perto de mim.Ainda consegui ouvir quando o Bombado berrou no microfone “mas sai daí, Vera Verão!”, e o Negão Auri, “larga ô mangueirinha de borracha”. Pronto. Engalfinharam-se no palco, Maitê tentava separá-los. Vi o Tropeço cair de joelhos, tirou a máscara da Malllvada lentamente, a expressão imóvel, os olhos arregalados – pasmo. A partir daí só sei o que me contaram, já na boate Dominó. Na verdade, do que o Tropeço me contou, então, não posso garantir a veracidade total dos fatos. Pra me convencer, tive que pedir pra Maitê relatar como ela mesma tinha visto toda a cena. Agora, uma coisa posso afirmar: jamais estive tão perto de um sentimento de paz do que naquele exato instante. O mergulho num silêncio sublime e aconchegante, um clarão rompeu o chão na minha frente, meus olhos reviraram e uma serenidade celestial tomou conta de mim. Senti que flutuava, gestos, trejeitos e fala não me pertenciam, meu corpo estava apossado. “Era ela, parça, eu vi, tá ligado, minha mãezinha tava ali, era tu, mano, mas era minha mãezinha, não sei explicar”, soluçava o Tropeço, emocionado horas depois, não sei precisar quantas. Maitê me contava tudo atropelando as palavras. Parece que a dona Celeste queria nos dar um recado importante do além. E me tirou pra cavalo de santo.


Tiago Maria é brasileiro, cansado, 42 anos, cardioinsistente. Profissão: esperança. Atualmente, trabalha com redação publicitária e cursa Licenciatura em Letras na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS. Autor de SEMVERGONHO, crônicas com e sem noção (Santa Sede, 2022).

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