Folhetim

Mil manhãs semelhantes – Capítulo 5

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Mil manhãs semelhantes – Capítulo 5

Voltamos para casa, tiramos os sapatos, lavamos as mãos e realizamos toda a higienização das compras. Fui para o banho sem saber ao certo o que fazer. Qual a probabilidade de Roberta ter contraído o vírus naquele único abraço? Será que era maior do que o risco de simplesmente andar na rua, ir ao mercado? Talvez o banho fosse suficiente para livrá-la dele, talvez ela fosse um desses imunes. E se ela estivesse com o vírus, provavelmente, a essa altura, eu já estaria contaminado também. Não, não. Precisava controlar os pensamentos, avaliar a situação com clareza, não me entregar ao desespero.

Deixava a água correr sobre a cabeça como se ela pudesse lavar também minhas ideias, organizá-las em um fluxo que fizesse sentido. Ouvia Roberta se movendo pela casa, indo da sala para a cozinha, abrindo um pacote de bolachas recheadas. Saí do banheiro e fui me secar no quarto. Chegando lá encontrei a gata sentada na cama, impenetrável. Desviei os olhos dela. Intuí que desconfiava do ocorrido, talvez já o soubesse e compartilhava das mesmas preocupações. Vamos esperar, disse a gata dentro da minha cabeça. A voz sempre com nitidez absoluta, grave, uma voz que não demonstrava hesitação, não chegava a ser impositiva, como se desse uma ordem, contudo tinha algo de certeza. Encarei os olhos dela, que completou:

Deixava a água correr sobre a cabeça como se ela pudesse lavar também minhas ideias, organizá-las em um fluxo que fizesse sentido. Ouvia Roberta se movendo pela casa, indo da sala para a cozinha, abrindo um pacote de bolachas recheadas. Saí do banheiro e fui me secar no quarto. Chegando lá encontrei a gata sentada na cama, impenetrável. Desviei os olhos dela. Intuí que desconfiava do ocorrido, talvez já o soubesse e compartilhava das mesmas preocupações. Vamos esperar, disse a gata dentro da minha cabeça. A voz sempre com nitidez absoluta, grave, uma voz que não demonstrava hesitação, não chegava a ser impositiva, como se desse uma ordem, contudo tinha algo de certeza. Encarei os olhos dela, que completou:

– Tenha cuidado! Não se deixe enganar.

[Continua...]

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Voltamos para casa, tiramos os sapatos, lavamos as mãos e realizamos toda a higienização das compras. Fui para o banho sem saber ao certo o que fazer. Qual a probabilidade de Roberta ter contraído o vírus naquele único abraço? Será que era maior do que o risco de simplesmente andar na rua, ir ao mercado? Talvez o banho fosse suficiente para livrá-la dele, talvez ela fosse um desses imunes. E se ela estivesse com o vírus, provavelmente, a essa altura, eu já estaria contaminado também. Não, não. Precisava controlar os pensamentos, avaliar a situação com clareza, não me entregar ao desespero.

Deixava a água correr sobre a cabeça como se ela pudesse lavar também minhas ideias, organizá-las em um fluxo que fizesse sentido. Ouvia Roberta se movendo pela casa, indo da sala para a cozinha, abrindo um pacote de bolachas recheadas. Saí do banheiro e fui me secar no quarto. Chegando lá encontrei a gata sentada na cama, impenetrável. Desviei os olhos dela. Intuí que desconfiava do ocorrido, talvez já o soubesse e compartilhava das mesmas preocupações. Vamos esperar, disse a gata dentro da minha cabeça. A voz sempre com nitidez absoluta, grave, uma voz que não demonstrava hesitação, não chegava a ser impositiva, como se desse uma ordem, contudo tinha algo de certeza. Encarei os olhos dela, que completou:

Deixava a água correr sobre a cabeça como se ela pudesse lavar também minhas ideias, organizá-las em um fluxo que fizesse sentido. Ouvia Roberta se movendo pela casa, indo da sala para a cozinha, abrindo um pacote de bolachas recheadas. Saí do banheiro e fui me secar no quarto. Chegando lá encontrei a gata sentada na cama, impenetrável. Desviei os olhos dela. Intuí que desconfiava do ocorrido, talvez já o soubesse e compartilhava das mesmas preocupações. Vamos esperar, disse a gata dentro da minha cabeça. A voz sempre com nitidez absoluta, grave, uma voz que não demonstrava hesitação, não chegava a ser impositiva, como se desse uma ordem, contudo tinha algo de certeza. Encarei os olhos dela, que completou:

– Tenha cuidado! Não se deixe enganar.

Depois do evento do gás, não voltei a meditar sobre o assunto, a considerar que a gata de fato havia falado comigo. Tinha medo de encará-la com excessiva razão e concluir que havia me enfiado em uma espécie de loucura. Talvez fosse um dom nosso, a comunicação mental. Pensava que poderia também ser um delírio, uma manobra usada para sobreviver a tempos tão extremos. A loucura pode ser, em certos momentos da história, a única condição possível. Porém, de modo quase natural passei dessas fabulações a outras mais pertinentes, tais como: de que forma monitorar Roberta e não ser contaminado? Como ser rápido o suficiente, caso ela estivesse infectada, para identificar a condição e auxiliá-la ao mesmo tempo? O procedimento era o isolamento, e como já, provavelmente, estaria também infectado, a levaria ao hospital, de maneira que eu ficasse lá igualmente. De fundo, me atormentava deixá-la simplesmente sucumbir. Ou deveria eu ver Roberta como um perigo em potencial, como uma ameaça a minha vida?

Voltava a mirar a gata e me questionava se ela tinha acesso a todos os meus pensamentos no exato momento em que os produzia. Causava-me certo desconforto imaginar-me à mercê da sua total e irrestrita consciência às minhas ideias. Havia algo de estranho nisso, como uma ameaça a espreitar-me. Ainda não havia entendido plenamente a que forças ela respondia. 

Roberta até a noite foi, rigorosamente, a mesma; bebeu algumas cervejas, fumou meia-dúzia de cigarros e deixou-se dormir no sofá. Não a acordei, lá pela madrugada se levantaria, desorientada, e encontraria a cama. Não falei nada sobre o abraço com Suzianne, aliás, pouco importava sobre o que falássemos, as conversas eram como um torneio randômico que desembocava nas mesmas observações, nessa espécie de perplexidade e repetição. Acabava quase sempre em um arremedo de frase: “quem diria que estaríamos passando por isso em pleno…”

Na cama, de olhos abertos para o silêncio quase impossível, um mosquito tentava entrar-me no ouvido. Não bastava chupar o sangue da gente, e havia toda uma área descoberta e ampla para fazer isso no meu corpo, não, não mesmo, ele precisava entrar no ouvido. Nunca soube de alguém que tivesse confirmado que um mosquito entrou na sua cabeça, de todo modo me causava aflição. A insônia fez com que eu levantasse da cama. Fiquei na soleira da porta do quarto observando Roberta, ali desamparada, a dormir. Apesar do espaço exíguo, não sabia dizer por que não conseguíamos nos encontrar. E, agora, talvez ela estivesse navegando muito próxima ao abismo, sem saber. Toquei de leve seu rosto, demorando-me nesse gesto que carregava uma carícia tímida, talvez me deixando também ser tocado por ela. “Vamos para a cama”, disse. E a conduzi pela escuridão.

Na manhã seguinte, demoramos a sair da cama, e, apesar de acordado, fiquei ao lado de Roberta. Havia uma expectativa densa no ar, de tal forma espessa que era como uma película de gelo. Cheguei a senti-la na pele. A luz do dia demorava-se em aparecer e aos poucos os sons vindos da rua, de movimentos de gente ou carros, eram como se acontecessem ali na sala, até o bater de asas dos pássaros, que nem cantar haviam cantado ainda, eu podia ouvir. Tudo esperava. A gata andava pelo quarto ao redor da cama ou indo e vindo de uma parede a outra, fazendo-se ser notada, e nenhum desses atos eram aquelas manias obtusas de bichos que são guiados apenas pela fome e outras necessidades. Tinha a nítida impressão de que ela queria confrontar-me.

Senti o corpo pesado ao colocar as pernas no chão, ele me pareceu um tanto oblíquo e gelado, tive de calcular os passos até equilibrar-me. Roberta já havia levantado, estava no sofá fumando um cigarro. Vestia uma camiseta do Beastie Boys, cuja estampa era a capa do Check Your Head. Eu comprara aquela camiseta aos dezesseis anos e a havia conservado até hoje, um feito raro de amor e devoção. E mesmo que ela não gostasse de Beastie Boys, gostava da imagem e de vesti-la para dormir. Achei algo de engraçado e estranho naquele gesto, pois não o notara na noite anterior. 

“Tô passando café”, disse Roberta. “Vou fazer as torradas”, respondi. As relações possuem inúmeras chaves de acordos que vão sendo estabelecidos pela força da repetição. Vai-se fazendo coisas, pequenos ritos, introduções, mise-em-scène que, de alguma forma, garante a realização da própria relação. E o executamos, às vezes, com a vontade de quem acredita neles, em outras, como quem acredita na força da interpretação.

Passei manteiga nos cacetinhos, coloquei queijo e pus ambos na torradeira; antes de fechá-la soltei um jorro de vômito por cima. Encostei as costas na parede sem entender o que estava acontecendo, com a surpresa inválida dos soldados americanos que pisavam nas armadilhas de bambu na selva vietnamita. Vomitei outra vez no chão, e nesse momento Roberta já me segurava pelo braço. Conduziu-me até o banheiro para vomitar mais um pouco ou lavar o rosto e a boca. Fiquei lá em posição fetal aos pés do vaso como quando estamos no ápice do inferno da ressaca, colocando a alma por todos os orifícios e nos curvamos em súplica diante de qualquer entidade com poderes divinos para que nos deixem viver. Mas era quinta-feira e não havíamos bebido na noite anterior – ou foda-se a quarta-feira e havíamos tomado um trago? Ou não era quinta, nem havia sido quarta-feira? A vertigem me tomava em uma tormenta de fúria, tal qual Netuno punia aqueles que não lhe rendiam oferendas. Lavei a boca, tomei alguns goles de água na torneira da pia e, com a ajuda de Roberta, deitei na cama. Sentia todo um conjunto indistinto de dores pelo corpo. “Eu disse que era para ter cuidado”, ouvi com clareza absurda, límpida. No entanto, para espanto meu, outro, não soube distinguir da onde vinha aquela voz, de quem era. Apenas senti, novamente, como caído em uma armadilha na selva. 


Marcelo Martins Silva é escritor, professor de Português e percussionista (repinique) no carnaval. Lançou “A matéria inacabada das coisas”, poesia, pela editora Diadorim.

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