Folhetim

Mil manhãs semelhantes – Capítulo 8

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Mil manhãs semelhantes – Capítulo 8

Lá estavam Motta, Suzianne, Roberta, a gata e eu dentro de um apartamento de apenas um quarto, sala, banheiro, cozinha e uma pequena área de serviço. Além disso, o banheiro ficava dentro do quarto, que até então era onde dormíamos Roberta e eu, e apesar do que afirmara Suzianne dias antes, de que Roberta era imune, ela passara a dormir com eles no acampamento em que a sala havia se transformado. Eu ficava no quarto, quase que impossibilitado de transitar nos outros espaços, e sempre havia alguém entrando e saindo do banheiro, tomando banho, fazendo suas necessidades. A gata passara a entrar pouco no quarto e me surpreendia que não se comunicasse mais comigo. Nenhuma palavra, nenhum pensamento, apenas olhares, tornara-se arredia a mim. Porém, bastante assediada e festejada pelos novos moradores e, é claro, por Roberta. Sempre que eu a via estava no colo de alguém sendo acarinhada, até mesmo quando comiam à mesa, coisa que antes não fazíamos.

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Lá estavam Motta, Suzianne, Roberta, a gata e eu dentro de um apartamento de apenas um quarto, sala, banheiro, cozinha e uma pequena área de serviço. Além disso, o banheiro ficava dentro do quarto, que até então era onde dormíamos Roberta e eu, e apesar do que afirmara Suzianne dias antes, de que Roberta era imune, ela passara a dormir com eles no acampamento em que a sala havia se transformado. Eu ficava no quarto, quase que impossibilitado de transitar nos outros espaços, e sempre havia alguém entrando e saindo do banheiro, tomando banho, fazendo suas necessidades. A gata passara a entrar pouco no quarto e me surpreendia que não se comunicasse mais comigo. Nenhuma palavra, nenhum pensamento, apenas olhares, tornara-se arredia a mim. Porém, bastante assediada e festejada pelos novos moradores e, é claro, por Roberta. Sempre que eu a via estava no colo de alguém sendo acarinhada, até mesmo quando comiam à mesa, coisa que antes não fazíamos.

    Eu participava de raros momentos em comum; o mais habitual era uma espécie de chá das cinco, em que ouvia as histórias de vida de Motta e Suzianne, de como haviam superado um número infinito de dificuldades com fé inabalável. Também ficava sabendo de como estava a rua e das mortes – as mortes que se multiplicavam e varriam a cidade numa espécie de condenação, mais do que isso, nas palavras de Motta, como uma disputa entre forças antagônicas, entre aqueles que não apenas seguiam os protocolos de segurança e os que andavam livremente desafiando os poderes da morte. A doença era uma luta. Pensava então nos soldados norte-americanos caminhando na selva vietmanita, presas fáceis de emboscadas, armadilhas, sendo dizimados por um oponente dotado de uma tenacidade que superava em muito o poderio militar dos ianques. E, no entanto, os americanos jogaram mais bombas no Vietnã do que o total jogado durante toda a Segunda Guerra Mundial. Mataram milhões de pessoas e ainda assim acabaram fugindo de Saigon de helicóptero pelo telhado da embaixada. Durante a época da doença, havia me tornado obcecado por documentários de guerras, sabia tudo sobre as duas grandes guerras mundiais e, sobretudo, de modo inexplicável, pela Guerra do Vietnã, porque, por mais que ela fosse contada e recontada, era uma história de derrota. Ainda que o número de mortos de vietnamitas, entre soldados e civis, tenha sido muito superior ao dos americanos no front, a Guerra do Vietnã é a história da derrota dos Estados Unidos. E eu não sabia dizer ao certo de que lado e contra quem estava lutando, se a doença era como as bombas de Napalm jogadas indistintamente sobre as cidades e vilarejos ou se eu era como os vietcongues escondidos pelos túneis, armando emboscadas, resistindo ao invasor.   

    Durante os dias fui tendo alguma melhora, por vezes sentia o corpo mais forte, com mais disposição, a febre com menos intensidade, ainda assim seguia a rotina de repouso, muito repouso e conversas com os novos integrantes da casa. Tinha poucos momentos de intimidade com Roberta, que parecia muito bem adaptada ao arranjo da nova ordem, aliás, era comum ouvir as pessoas repetindo a expressão “novo normal”. Além de enfadonha me parecia um tanto vazia: a que normal é que estavam se referindo? A vida antiga em que o normal é que só morriam pobres, pretos, homossexuais, gente que não fazia falta? E que durante a época da doença continuavam a ser os que mais morriam também? Essa entrega à tal nova normalidade me parecia resignação, a mesma que havia nos arrastado até aquele momento da história. De toda forma, Roberta passava bastante com Suzianne e Motta, que agora fazia tudo que era necessário fora de casa, e a mim ela tratava com carinho, um amor que havia se esgotado e se manifestava numa espécie de irmandade. Isso, como se fôssemos todos irmãos, uma família.  

Apesar da melhora havia algo estranho no meu corpo para além do vírus, um movimento duplo de cura e dor, como se viesse um adoecimento da recuperação em processos simultâneos. Porém, eu sofria de outros sintomas, sentia dores abdominais agudas e uma estranha tosse com sangue, às vezes ele aparecia na urina e até nas fezes. Certo dia, aproveitei que Motta havia saído e Suzianne estava na sala distraída lendo um livro, e chamei Roberta para ver um seriado que ela gostava. Ela entrou no quarto e sentou-se na cama como não fazia há tempos. Coloquei minha mão sobre a sua, de leve, de maneira que sentíssemos apenas o calor, ao invés do peso de uma mão sobre a outra. Roberta a deixou ali, confortavelmente. Depois de um tempo disse que me sentia bem melhor, talvez o vírus já tivesse ido embora. 

    – Ainda é cedo, ela respondeu – leva mais um tempo.

    – Sabe que eu tenho andado com muitas dores no estômago, inclusive tenho tossido um pouco de sangue?

    – É mesmo? – surpreendeu-se ao perguntar.

    – É verdade! Não sei o que é, tô preocupado – falei com voz de melancolia adoecida.

    – Deve ser o remédio.

    – Mas que remédio? Não tem remédio ainda para o vírus.

    – É o remédio que o Motta e a Suzianne fazem, quer dizer, é um remédio caseiro que cura o vírus.

    – Isso não existe! O que vocês estão fazendo? Roberta! O que tá acontecendo? – falei já com a voz alterada.

    – É que…é difícil explicar. Não foi eles que inventaram. É, eles receberam, entende?

    – Roberta! Que merda é essa??

Nesse momento a gata entra no quarto e pula na cama, um salto preciso, com intenção. Roberta emudece, quase paralisada, não a toca nem a espanta. Elas se olham, eu sei que se olharam e há algo ali. A gata está entre nós, no meio, e eu pergunto, dentro de sua pequena cabeça felina: 

    – O que está havendo?

    – Venha – diz ela.

E Roberta se levanta da cama ao mesmo tempo em que eu, como um boneco, e tudo gira dentro da minha cabeça. Sangue começa a correr de minhas gengivas e pelo nariz. Suzianne abre a porta para que a gata saia e logo atrás dela Roberta, como uma aluna constrangida. Seguro a porta com força, a que me resta e não é muita, e não deixo Suzianne fechá-la. Preciso ver Roberta, olhar seu rosto, preciso saber que ela também ouve a gata, que não é loucura ou que a loucura nos atingiu antes que pudéssemos nos dar conta. Motta sai de algum canto, de modo que me segura pela gola da camiseta até me encostar no roupeiro. Vejo o rosto de Roberta contrair-se, vejo-o novamente humano, perdido tanto quanto o meu, tanto quanto nas primeiras semanas de isolamento. Agora eu sei que ela sabe, ela também sabe. E que estamos perdidos.


Marcelo Martins da Silva é escritor, professor de Português e percussionista (repinique) no carnaval. Lançou “A matéria inacabada das coisas”, poesia, pela editora Diadorim. 

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