Folhetim

Mil manhãs semelhantes – Capítulo 9

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Mil manhãs semelhantes – Capítulo 9

Estávamos já longe nos dias e noites que haviam se passado desde o início da doença, talvez quase um ano. Os mortos eram aos milhares, e, particularmente no Brasil, pouco se fazia para tentar ordenar o caos. Agora morria-se de tudo e sem parar, de modo que qualquer morte ou todas as mortes eram em decorrência do vírus. Acidentes de carro, esfaqueamentos, ataques cardíacos, tiros disparados contra adolescentes em um beco sem saída de uma vila, tudo entrava na conta do vírus, não na contabilidade em si, mas como se uma maldição estivesse a nos assolar. 

Acordei na cama, vestido com a mesma roupa do dia anterior, e ainda tinha um resíduo da imagem de Roberta na retina, o resto do seu olhar antes que eu apagasse. Não estava machucado; sentia, porém, dores estomacais cada vez mais fortes, como se fossem cãibras, e havia sangue em meus dentes. No quarto, à minha frente, alinhados, estavam Motta, Suzianne e Roberta, todos muito solenes. Não carregavam no olhar a virulência da insanidade, tampouco vergonha, eram olhos que tentavam me envolver numa bruma de benevolência, o que parecia muito pior. Motta deu um passo à frente, ajeitou as mãos e disse:

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Estávamos já longe nos dias e noites que haviam se passado desde o início da doença, talvez quase um ano. Os mortos eram aos milhares, e, particularmente no Brasil, pouco se fazia para tentar ordenar o caos. Agora morria-se de tudo e sem parar, de modo que qualquer morte ou todas as mortes eram em decorrência do vírus. Acidentes de carro, esfaqueamentos, ataques cardíacos, tiros disparados contra adolescentes em um beco sem saída de uma vila, tudo entrava na conta do vírus, não na contabilidade em si, mas como se uma maldição estivesse a nos assolar. 

Acordei na cama, vestido com a mesma roupa do dia anterior, e ainda tinha um resíduo da imagem de Roberta na retina, o resto do seu olhar antes que eu apagasse. Não estava machucado; sentia, porém, dores estomacais cada vez mais fortes, como se fossem cãibras, e havia sangue em meus dentes. No quarto, à minha frente, alinhados, estavam Motta, Suzianne e Roberta, todos muito solenes. Não carregavam no olhar a virulência da insanidade, tampouco vergonha, eram olhos que tentavam me envolver numa bruma de benevolência, o que parecia muito pior. Motta deu um passo à frente, ajeitou as mãos e disse:

– Me desculpe por ontem, nossa intenção não era machucá-lo. Não é na violência que acreditamos.

Eu nada respondi, e me chamava a atenção o uso dos termos “nossa” e “acreditamos” na fala dele. Nós quem? Roberta fazia parte daquele “nós” que um dia antes havia tentado me esganar? Buscava seus olhos, a gota de lucidez que havia encontrado e não conseguia mais vê-la. Estava contaminada como eles. 

– Há coisas que você ainda não entende – prosseguiu Motta -, mas que são para o teu bem.

Suzianne voltou com uma bandeja com café da manhã: um copo de suco de laranja, torradas com requeijão e uma tigela de frutas cortadas e misturadas com granola e iogurte de morango. Apoiou-a na cama e me disse para comer. Havia em seus gestos um ar quase cerimonial; não era mecânico, havia estranhamente afeto, porém era como se aquela refeição, aquela ocasião, representasse algo mais, um misto de oferenda e revelação. Apesar das fortes dores estomacais e pouca fome, intuí que devia aceitá-la; comê-la era como dar mais um passo adentro do mistério que os unia.  

Eles ficaram em pé me observando comer, o que era de se estranhar, mas a comida, o ato de se oferecer ou partilhar comida é como dar um pouco de si, dividir afeto ou esvaziar o ódio. Todos comem. É uma comunhão. 

Fui lentamente bebendo o suco, comendo um pedaço da torrada, dando uma colherada no cereal. Não me sentia nada bem, mas seguia comendo aos poucos. Eles também foram ficando menos formais, conversavam entre si, entravam e saíam do quarto. Roberta olhou-me com afeto antes de abrir a janela. Uma luz amena, esbranquiçada foi invadindo a peça. A temperatura era agradável. Seguia comendo, contudo algo tinha se alterado no meu paladar, nada tinha um gosto agradável ou, mais especificamente, nada parecia ter o gosto que deveria: o suco de laranja era amargo como capim, as torradas pareciam borrachas escolares e o cereal era tão pastoso que fazia pequenas bolhas de baba nos cantos de minha boca, parecia também um pouco como engolir um punhado de terra. Dei mais uma colherada no cereal e o empurrei com um gole de suco. Comecei a sentir que estava a regurgitar, prestes a vomitar. “Calma”, disse Motta colocando a mão em meu ombro. “Calma”, repetiu mais uma vez. Lembrei de Suzianne comentando que a doença havia alterado o paladar dele, que tudo que ele comia guardava um ranço de metal envelhecido, além da perda parcial da audição. Imaginei que fosse isso, a doença, quando nos abandonava o corpo, se tivéssemos essa sorte, deixava alterações irreversíveis nele. Um preço pequeno para sair vivo, acabei pensando. Foi quando então quando Roberta entrou no quarto segurando um saco de plástico transparente com um conteúdo rosa dentro, um pó granulado.

— Esse é o remédio que estamos te dando – disse ela -; isso é o que vai te curar. Nós estamos misturando ele na tua comida, aos poucos, desde que eles se mudaram pra cá – e olhou para Motta e Suzianne.

— E o que é isso? Perguntei com a boca espumando.

— Ri-do-Rato.

— O quê?

— Sim, Ri-do-Rato.

Achei que devia ser a febre, que fosse alucinação auditiva, mas eu estava ali vendo o pacotinho rosa nas mãos de Roberta e sentindo que meu estômago era torcido por algum cabo. Ri-do-rato. Os ratos que entram em contato com o veneno morrem de hemorragia interna e leva de cinco a sete dias até a agonia acabar. Em seres humanos causa exatamente o que eu estava sentido: fortes dores estomacais, sangramentos nas gengivas e nariz, e também na urina e fezes. As pessoas que entram em contato com Ri-do-Rato, se não forem levadas a um hospital, acabam morrendo como os ratos. Não havia mais tempo para ficar incrédulo, para sentir que estava a viver a irrealidade, eu estava sendo envenenado há sei lá quanto tempo, talvez quinze dias ou um mês.

— Por quê? – perguntei. – Por que vocês estão me dando essa porra?? Isso é veneno, veneno!! Eu vou morrer.

— Não vai – disse Roberta – não vai.

— Vocês estão loucos! Assassinos!

— Não fala isso – choramingou Roberta. – Ela disse que a gente devia te dar o remédio, que você merecia, que era bom, ia conseguir sobreviver.

— Ela quem?

— A gata. Ela sabe. Os gatos sabem como curar a doença, mas não é qualquer um que pode tomar. E ela fez isso por minha causa, porque eu te amo.

— Roberta, que loucura é essa.? Vocês todos também ouvem ela?

— Não, não. Cada gato fala com seu dono. E assim uma pessoa vai passando a informação para outra. 

— Mas não faz sentido.

— Ela me disse que te protegeu do entregador de gás. Eu não sabia. E depois disse que você estava doente e que eu devia procurar o Motta e a Suzianne para te ajudar, que eles sabiam o que fazer. Foi a gata do Motta que salvou ele.

Tentei falar mais alguma coisa, mas as dores não deixaram. Roberta colocou minha cabeça em seu colo e acariciou meu rosto.

— Você vai conseguir, disse ela. Nós vamos conseguir.


Marcelo Martins da Silva é escritor, professor de Português e percussionista (repinique) no carnaval. Lançou “A matéria inacabada das coisas”, poesia, pela editora Diadorim. 

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