Folhetim

Portas Porto Alegre 10: Uma voz para cada vez

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Portas Porto Alegre 10: Uma voz para cada vez
Os anos 1980-1990 ferviam seus ruídos, acrescentando camadas de solenes ignorâncias ao que Úrsula já sabia desconhecer, e seu sotaque de gringa da colônia perdurava à revelia do ouvido cada vez mais afinado pra música clássica e desde antes muito atento ao sotaque dos outros.  O seu, ainda bem saliente, denunciava num simples cumprimento que não era porto-alegrense. Tu não é daqui, né?, era a rotulagem que a toda hora lhe apartava da sensação de pertencimento experienciada exuberante pelo anonimato. Não, não era daqui e mais ainda demorava o tempo de sucessivos sacos de sal. Aos 13, soubera de uma outra língua the book is on the table do ginásio no encarte de LPs dos guris de Liverpool e desde os 15 dançava Santana e Bee Gees nos embalos de domingo à tarde. Encontrou a voz cantando Almôndegas – quando a meia-noite me encontrar junto a você – e desafinava todas do MPB4 e do Chico Buarque e da Elis e da Mercedes e da Bethânia, aos poucos deixados de lado conforme descobria os clássicos em coleção da Deutsche Grammophon chegados semanalmente na única banca de revista – e de livros e de discos – da cidade. E uma vez por ano acontecia o Festival da Vindima da Canção: três dias de muitos sotaques nas muitas vozes de intérpretes e compositores que tinham no Vindima um festival de música diferenciado dos demais realizados no Estado, quase todos exclusivamente nativistas.  Assim, durante três noites a cada 365 dias, Úrsula ainda adolescente apurava a escuta pras vozes que já sabia serem de fora. Com um ouvido no palco e o outro espichado para os estrangeiros no salão, por vários invernos foi ao festival como se viajasse, atenta à expressão das conversas na plateia e à interpretação das músicas no palco, em especial no que lhe era mais saliente: o sotaque.  A modulação e a prosódia saltavam aos ouvidos formados no talián, e achava bonito aquilo de genti, o quentão tá bem quenti! mi dá um refri?, pega água quenti pru chima?, que pescava das conversas conforme transitava pelo salão entre uma música e outra. No palco, “quem bati a massa tem u direitu di ter u pão”. Pão, e não pom; direitu, e não dirreito, como se ouvia entre conterrâneos oriundi. O contraste das falas estrangeiras dispersas nos diferentes grupos na plateia – a elevação vocálica do o e do e, a nasal bem formada, o erre fraco no lugar certo e apócopes aqui e ali – era o gatilho identitário, e Úrsula então vaticinava: esta pessoa também é de Porto Alegre.  No início dos 80, Úrsula exercitou essa escuta desde um lugar mais privilegiado, pois esteve quase que exclusivamente em contato apenas com os que vinham de fora durante duas edições do Vindima. Então com 17 anos, era a responsável pela colocação de banquetas e microfones no palco, ajustando posição e altura dos pedestais conforme anotava à tarde, no ensaio e passagem de som. À noite, recepcionava os músicos na coxia […]

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