Folhetim

Portas Porto Alegre 2: As chaves da rua

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Portas Porto Alegre 2: As chaves da rua

Aos quatro ventos embrenhados nos limites da Serra se sabia: de geração a geração, a dona da chave seria sempre a nona, que amarrava no sutiã a da gaveta da cômoda onde guardava dinheiro vivo e outras raridades. E assim, sem hesitação nenhuma, se amparou na tradição familiar como estratégia para sempre ter à mão a chave da própria casa. 

Ali só transitariam mãos autorizadas, e tal como na intimidade do corpo ela se sentia em território seguro, ainda que não soubesse os caminhos e o nome das ruas e dos bairros e dos lugares que, já sabia, seriam para sempre os destinos da sua vida. Mal se orientava entre os eixos Sul e Norte, a costa do rio espichada no pôr do sol até Ipanema e o comércio popular no entorno do viaduto Obirici marcando destinos possíveis entre os extremos recém-conhecidos. 

Mapas de Porto Alegre, havia muitos. O seu, a ser traçado.

Reconhecendo que isso não aconteceria de um dia pro outro, fez sumir seu nome imaginado junto ao de Duby publicando novidades sobre o medievo e ao da Pesavento, na coautoria do Insurgência dos Subalternos. Relegou-se ao papel de mera leitora compulsiva, e tendo treinado nas parcas placas de trânsito e frases de caminhão em geral as mesmas ao longo dos poucos passeios pela Serra, ela mal dava conta da profusão de coisas a ler, bastava mesmo sair do elevador.

Em curtos vinte metros em frente ao 680 da Demétrio, e em solo porto-alegrense há apenas três dias, desafiou-se a perfilar de cor e salteado os nomes que, do outro lado da rua, lhe impeliam à leitura: Asteca Celibério Dom Rafael San Siro. 

Presumia biografias pros nomes dos prédios e pra narrativa da mnemotécnica fantasiou que Dom Rafael era um ricaço especialista em onomástica que, num ímpeto nacionalista, escolhera nomes de origem indígena pra vários prédios da rua, e ele, dono de todos, foi batizando os condomínios com Suzy Henriete e Ana Carolina apenas mais tarde, conforme nascia a terceira geração. 

Gostava também de pensar que os prédios sem nome da rua eram, como ela, apenas uma existência anônima no mundo, embora concreta, misturada à de quem entrava nascia morria saía vivia nas calçadas da Demétrio entre as mesas dos botecos de rua que trocariam de nome a cada zero a mais ou a menos entre cruzeiros e cruzados certeiros à louca vindos sempre da direita, mesmo depois de o real dar as cartas.

Ao pisar na calçada em frente ao Michigan em direção à Borges, já sentia o cheiro de mofo do casarão vizinho muito antigo e espremido entre os oito andares do 680 e os cinco do 700. Ao passar do Michigan ao Serra Dourada, a velha casa espirrava um bafo de umidade na nuca mesmo que os únicos moradores negros da rua mantivessem a janela sempre aberta. Era a primeira família negra que conhecia, e soube sê-lo porque era tão assídua no orelhão que, em diferentes horários, assistia da fila a entrada e a saída do pai, da mãe e de duas gurias adolescentes com uniforme do Paula Soares. 

Dali pra diante, Suzi, Difler, Irupê até a Gen. Auto, depois Júnior, Jandiá, Lery. E então cruzava a Demétrio um pouco antes do Andiara – as sacadas em curva apreciadas de frente ao atravessar a rua para um Melhoral na farmácia e seguir pelo muro amarelo da garagem do Bolinha, já então coroado de arabescos craquelados pelo descuidar do tempo. 

A altura do muro era instransponível para pernas humanas, e a largura correspondia à extensão do Ravena ao Ibiá no outro lado da rua. A cada vez em quando, acrescentava um enredo evocado pela extensão do muro: Dom Rafael seria dono também dessa área desde aquele tempo da Varginha, né?, nome depois trocado para Dona Isabel. Cai a placa dos monarquistas, entra a dos republicanos: Don Rafael, homem forte do Partido Republicano Riograndense, teria sido quem decidiu nomear a própria rua em homenagem a Demétrio Ribeiro, seu amigo e cofundador do PRR. No trato menos formal, chamava-o por Nunes. 

Num abanar de mão diante do rosto, desmontava a história e afugentava o calor que perdurava – o verão parecia não ter fim em Porto Alegre – a caminho do seu já boteco preferido.

Como se fosse um rito de passagem, sentava-se sozinha no bar – sim, na capital, ela podia – para um perfeito à la Cavanhas, e sempre de costas pra tevê, observava o que acontecia pela janela ao rés do chão que o Boca-Loka lhe oferecia: cinco metros delimitados nas laterais apenas pela aresta das mesas, através das quais espichava o olho perscrutando o estado de ânimo menos óbvio de quem passava por ali, fosse o motorista transitando em Marraquexe, o pedestre sorumbático ou a passageira atordoada desembarcando do C2. 

Faceira da vida, contava as evidências: estudava na UFRGS, morava sozinha na Demétrio onde abriram uma lavanderia com autosserviço: “minha Paris!”, deslumbrou-se, atravessando o Atlântico, dias depois de ela se dar conta que, ora veja, não havia tanque no minúsculo jotacá, enorme como a área de serviço da casa dos pais. 

Não ter onde lavar roupa no apartamento 704 e não ter dado falta disso ao definir pelo aluguel deste jotacá equivaliam ao prenúncio de uma autodeclaração de princípios que vigoraria a partir de então: nunca mais quarar panos de prato, nunca mais passá-los a ferro, a cada vez devolvendo ao bico de crochê o rendado talhado ponto a ponto pro enxoval tirado aos poucos do baú da casa dos pais conforme organizava a sua.

Mas bem poucas vezes destinava os parcos recursos pra lavar roupa em Paris, ali, bem na esquina com a Espírito Santo: economizava onde podia para garantir o Capitólio e o Boca-Loka, duas outras casas suas na mesma rua.


Ester Mambrini responde quem ela é nessa pequena entrevista dada para a Parêntese número 144.

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