Folhetim

Portas Porto Alegre 3: Par e ímpar

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Portas Porto Alegre 3: Par e ímpar
A cidade grande lhe exigia muito, o tempo inteiro, e a leitora compulsiva calibrava a atenção entre o exercício diletante de ler as escritas nas ruas da capital – fartas, abundantes, brotadas, férteis e sempre sobrepostas umas às outras – e memorizar os marcos urbanos oferecidos nos percursos. Já sabia qual ônibus pegar, e a pé mais acertava do que errava, ampliando o mapa que crescia conforme se expandiam os caminhos por onde andava. Mas em menos de uma semana morando na capital entendeu ser impossível aplicar a Porto Alegre a lógica da ordenação que regia os deslocamentos na cidade pequena: depois da casa do Fulano, ao lado da loja do Sicrano, em frente ao armazém do Beltrano, nos fundos da farmácia, o colégio, a igreja, o salão paroquial, o banco, o hospital, referências provincianas acima das quais havia a cruz no alto do campanário marcando as horas e anunciando aos quatro ventos as festas comunitárias e as mortes da cidade, um toque de sino diferente para homens, mulheres e crianças que morriam.  Ao se estabelecer em Porto Alegre, nada disso lhe era útil. E já no primeiro dia na cidade entendeu que perto e longe – soube mais tarde, como em tudo na vida – seria sempre uma questão de ponto de vista. Assim, passados dois meses, não hesitava em esperar o C2 rumo à Cristóvão pra pagar aluguel e andava no território seguro mapeado por ela se achando a dona das ruas – e, no segredo atado à chave presa no sutiã, do mundo, que sabia já ser bem maior do que a vista podia alcançar. Segura no próprio mapa de traços acrescentados um pouco a cada dia, recusava-se à continência ao Gen. Auto e às asas do Espírito Santo, sempre entrando na Demétrio pela Borges, onde descia do minhocão verde ao voltar pra casa.  Com a imediata eficiência da mnemotécnica para o nome das duas ruas atravessadas no seu até então parco território, passou a decorar o nome dos prédios. Mais por manter um hábito da adolescência do que por ver nisso alguma utilidade ao se inaugurar no anonimato da cidade grande, espiava a fachada térrea pra conferir se acertava ou errava o nome de cada edifício.  A cada checagem, a atenção focada no nome deslizava então para o número do edifício, descobrindo ali uma América: a caminho de casa pela calçada dobrada no Capitólio, a numeração de todos os prédios era ímpar. Descartou se tratar de coincidência ao identificar embasbacada os números pares que a vista alcançava no outro lado da rua. E no fim de tarde daquela segunda-feira, teve uma revelação: quis mesmo abraçar quem inventara o fundamento, pois se tratava incondicionalmente de um ser solidário com gentes vindas da colônia pra cidade grande.  Descobrir o critério para a numeração dos prédios foi uma alegria e tanto: primeiro, porque não estava procurando lógica nenhuma; depois, por ter deduzido isso sozinha; terceiro, porque era extensivo a toda a cidade, reiterando seu achado ao longo do corredor […]

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