Folhetim

Portas Porto Alegre 4: O carteiro e a poeta

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Portas Porto Alegre 4: O carteiro e a poeta
Não conhecia ninguém em Porto Alegre. Mas sem chegar a ameaçar o tão almejado anonimato, ainda assim um personagem lhe devolvia de supetão à cidade onde todos se conheciam pelo nome: o carteiro, que devia saber de ofício o critério da numeração dos prédios.  Missivista desde sempre, adorou ter agora sua própria caixa de correspondência no 680 da Demétrio, e mais sensacional ainda era a garantia de que nem pais nem irmãos poderiam abrir suas cartas.  A primeira delas recebida no novo endereço vinha do Álvaro, bastou ver o aerograma laranja na caixa de correspondência do edifício Michigan, apartamento 704. Isso era um luxo, e o recentemente conquistado anonimato ao caminhar na cidade grande desdobrava-se na conquista da privacidade doméstica, com as chaves da casa e da caixa de correio em cópia única laçadas no sutiã.  Reservava a leitura das cartas para quando estivesse a caminho do campus: ajeitava o ombro rente à janela do ônibus, abria o envelope, e só por causa das cartas – e um pouco mais tarde e então para sempre, por causa da literatura – ignorava solenemente a escrita das ruas que lhe convocava aos gritos: pichações, outdoors, palavras de ordem, de protesto e marcadoras de territórios; as declarações de amor e as de guerra do Toniolo, onipresente na cidade quaisquer que fossem os muros, tapumes de obra, postes, abrigos de ônibus e mesmo ao olhar pro chão. Uma e apenas uma das cartas permaneceu fechada a caminho do campus. A incredulidade se instalou ao reconhecer a letra do endereçamento postal, e os mil espantos por segundo acumularam-se atordoados desde o momento que fechou a caixa de correspondência até embarcar no minhocão negando o incontornável: a carta chegara ao destino, mas o Correio havia falhado.  Úrsula creditou a excepcionalidade do acontecimento à sua confiança até então inabalável na competência dos Correios, cujos processos ao balcão de postagem tinha observado serem obedecidos à risca, várias vezes, quase uma logística de produção em série executada por uma só pessoa: 1) conferir se havia endereços nas duas faces do envelope; 2) checar se ele estava bem fechado; 3) pesar a carta; 4) calcular o preço conferindo o CEP de destino; 5) destacar da cartela os selos que totalizavam o valor da postagem; 6) passar o verso dos selos na almofadinha úmida; 7) colá-los no envelope, pressionando a colagem primeiro com a mão e em seguida com o carimbo redondo tum-tum-tum aplicado por sobre todos os selos, inviabilizando assim a falcatrua de reutilizar selos de vinte centavos em outra correspondência; 8) colocar o envelope em um dos caixotes onde se amontavam cartas da primeira triagem: com destino à Capital, ao RS, a outros estados e ao exterior, as plaquetas acrílicas organizando destinos do Oiapoque ao Chuí e para além-mar.  Nunca lhe ocorrera conferir a caixa onde a carta havia sido colocada. E nunca lhe ocorrera, sequer como mote para uma história, que um funcionário do Correio colasse os selos na face do envelope onde constava o endereço do remetente, […]

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