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Portas Porto Alegre 8: A geladeira que chegou de trem

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Portas Porto Alegre 8: A geladeira que chegou de trem
Uma geladeira na cozinha – difícil imaginar a vida sem uma, e era mesmo uma conquista. Era amarela, era linda, e o estandarte coube sob medida na minúscula cozinha, composta até então apenas pelo balcão de alvenaria como base para a pia e para o fogão de duas bocas sem forno, acomodado apertado sobre a curta bancada em inox.  “Põe na Consul”, obedeceu uma Úrsula dançante abrindo a porta da geladeira: pão, chimia, ovos e – enfim, agora dava – os perecíveis leite, manteiga, queijo – e, luxo total, Maionegg’s – acrescentados à franciscana lista de itens ajeitados sobre as prateleiras vasadas de finas hastes de inox por onde o ar refrigerado fluía a 110 volts.  Só depois de meses morando no jotacá comprou sua primeira geladeira com a grana um frila muito bem pago como recepcionista do estande do Trensurb onde apresentava a maquete da via férrea: “Como se vê aqui, o trem chegará a Novo Hamburgo nos próximos anos. Por enquanto, o trajeto de 27 quilômetros de extensão é marcado por 15 estações, ligando Porto Alegre a Sapucaia do Sul e cruzando os municípios de Canoas e Esteio”, recitava de cor e salteado entregando um fôlder, uma mesura e um sorriso à saída dos visitantes.  Sustentava a pose de recepcionista – cara bonita e porte de manequim – sobre o salto durante seis horas seguidas e jogava pra trás do sorriso o pavor daquela horda de gente que a cada tanto desemborcava em ondas da principal rota de acesso do parque de exposições de Esteio direto no estante do Ministério dos Transportes.  Nunca antes vira tantas pessoas juntas de uma só vez, mas a sensação ruim da massa de corpos humanos que pareciam desaguar em cascata até a entrada do estande do Trensurb foi desfeita: bastou Úrsula lembrar de quase mil pessoas entrando praticamente juntas pra almoçar no salão paroquial onde servia de garçonete nas festas da comunidade. Assim, na vitrine de vidro apartada do calorão, tranquilizava-se à medida que a massa de corpos rampa abaixo se esfarelava dez metros antes da estante onde ela apresentava o trem em miniatura deslocando-se de estação em estação na enorme maquete, 27 quilômetros percorridos sem sinaleira, sem rush, sem buraco na pista, pagando barato e ganhando bem.  O trem do centro à Grande Porto Alegre era uma novidade na capital, mais ainda pra ela, que desde então escolheu domingos pra embarcar na estação Mercado e ir até o aeroporto para o espetáculo perdurado de encantos desde menina: toneladas aladas de aço em movimento pra chegadas e partidas, agora também as do trem até o céu estatelado de destinos a traçar pelo ar no paralelo 30. pra não ocupar lugar na geladeira era o que a mãe repetia a cada vez organizando os alimentos saídos dos pacotes ainda sobre a mesa antes de migrarem pro território gelado mas bem longe do siberiano pra onde eu queria ir a cada vez que derretia meu ânimo sob mais outro efeito sobreposto sobre outro refeito […]

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