Quem quer ser a mãe do João? Cap. 3

Goiabada
Uma das maiores alegrias da vida da Mãe era a goiabada que vinha na cesta básica.
Esperava o dia 10 chegar até com certo entusiasmo, lógico que não só pela goiabada, mas também por ver as latas de mantimento meio vazias. A comida da semana do dia 30 era mais boba, como dizia o João, arroz, feijão, uma misturinha lero-lero. Mas na semana do dia 10 tinha goiabada.
Então naquele dia 10, após a novela da tarde, a Mãe botou até a blusinha boa pra ir pra fila da cesta com o João. Estava de bom humor, de unhas feitas, vermelho Rebu. O ônibus passou rápido e não parou em nenhum sinal. A fila estava vazia, tudo 100% favorável. Aguardou sua vez e de longe viu quando trouxeram o pacote pesado embalado em plástico transparente sem nenhuma goiabada em cima.
Naquele momento a alegria foi todinha embora da cara da Mãe. Esperar tanto pelo dia 10 pra vestir blusa boa, atravessar a cidade de ônibus pra ganhar uma cesta sem goiabada era como ganhar uma caixinha de O.B de presente de natal. Sentiu o pacote até levemente mais pesado, teve certeza de que a frustração lhe havia acrescentado uns gramas.
– Ai que saco, João, essa cesta não tem goiabada. Esse povo tá de miséria, já não basta o macarrão fuleiro duro quase marrom.
– Você perguntou o moço se a goiabada caiu no chão, mãe?
– Caiu nada, João, tá lacradinho. Essa veio sem mesmo.
João fez um beicinho de tristeza e ficou quieto. A Mãe, sem graça, não falou mais nada o resto da viagem de volta. Foram vendo a cidade da janela do ônibus até ficarem com sono. A mãe cochilou um pouquinho com o rosto apoiado sobre a cesta sem goiabada como quem abraça um parente que odeia.
Como todo pobre que se preza, a Mãe acordou espontaneamente na hora certa antes de descer do ônibus, bem quando passou pela padaria, e já deu sinal. Foi já arrumando a cesta pra descer e acordando o João.
– João? JOÃO? Alguém viu meu filho? Pelo amor de deus!
E não estava em lugar algum do ônibus. Uma onda do pior sentimento possível subiu em um segundo no pescoço da Mãe e ela marejou os olhos. Nunca havia perdido o João de vista nem por um segundo na vida antes.
– João! Ninguém viu meu filho? Ninguém viu o rapazinho que tava do meu lado? – gritava a Mãe pra todos no ônibus.
Entre os passageiros, nenhuma resposta. Com os gritos, alguns que cochilavam acordaram pra ver o que era, meia dúzia de rostos curiosos brotaram no corredor, mas nenhuma resposta, nenhum deles era João. A maioria voltou a não se importar com a existência da mãe logo após descobrir do que se tratavam os gritos. A Mãe ouviu alguém dizer “Que mãe é essa que dorme e perde o filho no ônibus?”, mas quando se virou não fazia ideia de quem tinha sido.
Sentia o rosto ficar quente, as lágrimas turvando a vista. Cadê a porra do menino? Só sabia gritar e pedir ajuda em vão aos passageiros que lhe olhavam como se ela fosse louca. “Que desgraça!”, pensou. Olhou depressa o número do veículo escrito acima do parabrisa e saiu correndo.
Desceu e foi correndo atrás de um posto de polícia que nunca serviu pra nada, na esquina de casa. Chegou lá aos berros, a cesta básica sacodida feito um saco de lixo.
– Pelo amor de Deus, me ajuda, moço! Perdi meu filho no 8350!
A Mãe tinha pressão alta. Quando se sentou na cadeira do policial já estava pálida e tremendo. Lhe deram um copo d’água e ela não quis.
– Meu filho é autista, moço, tem 12 anos, ele nunca andou sem mim. Tava do meu lado e eu cochilei coisa de 10 minutos e quando vi já não tava mais. Pelo amor de Deus, procura meu menino, Deus que perdoe essa merda que eu fiz.
Não havia o que acalmasse a Mãe. Quando o policial lhe disse que o protocolo pra registro de pessoas desaparecidas era de 24 horas após o desaparecimento, ela quase atravessou a mesa pra bater no homem.
– Em 24 horas meu filho sai na capa do Súper como um corpo indigente encontrado na rua, pelo amor de Deus! Eu preciso achar o João AGORA. Ele é autista, moço, tem só 12 anos, nunca saiu sozinho.
– E se a senhora sabia que ele é autista por que dormiu dentro do ônibus?
– É, quem tem criança especial não pode piscar – disse um outro policial atrás. – Bom até da senhora evitar sair com ele já que ele é assim.
Pra aquilo não tinha resposta. Abaixou a cabeça e duas lágrimas furaram a estampa de flor da blusa boa. Começou a se desculpar freneticamente entre o choro. O policial pegou o radinho e deu o aviso:
– Boa noite, central, vamos fazer contato aí com a garagem da linha de ônibus 8350 pra tá recolhendo as câmeras de um veículo pra tá visualizando o desaparecimento de um menor aí, 12 anos, portador de deficiência mental que estava ao lado da mãe. Ela alega ter dormido durante a viagem e quando acordou o menino já não estava mais no local.
A cada palavra que o policial dizia, a Mãe só sentia a cabeça afundar, afundar, afundar na linha dos ombros, de vergonha e culpa. A voz dentro da sua cabeça só sabia repetir “que mãe é essa? Você Perdeu o João. A culpa é sua.”
Lhe instruíram a voltar pra casa e esperar o João voltar. As câmeras só iriam chegar no dia seguinte pra serem apuradas. A Mãe saiu da delegacia com o papel da ocorrência na mão e nada mais.
– Ô moça, cê esqueceu aqui, ó – disse o soldado na porta apontando pra cesta básica jogada aos pés de uma cadeira.
A Mãe secou uma lágrima, voltou e pegou a cesta que agora pesava uma tonelada. Desceu a rua indignada, virou o beco bufando. Entrou em casa e desabou em choro na porta da sala mesmo. As pernas tremiam, ela se deixou cair no chão e ficou longos minutos em completo desespero, sem saber o que fazer. Olhou pro quadrinho de Nossa Senhora no relógio e prometeu com muita fé que, se o João fosse achado com vida, ela nunca mais comia goiabada nenhuma. Levantou do chão e foi ligar pro Léo, avisar os parentes, botar todo mundo doido, fazer anúncio no Facebook com a foto do João. Trabalharam a noite inteira na mesma missão, a Mãe e a Nossa Senhora da parede, sem noção do tempo passando.