Folhetim

Quem quer ser a mãe do João? Cap. 5

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Quem quer ser a mãe do João? Cap. 5

Fotografia

Uma hora da tarde entraram na caminhonete e foram pra delegacia de pessoas desaparecidas, onde os resultados do vídeo de dentro do ônibus seriam apurados. A Mãe tinha o coração em pedacinhos minúsculos, cascalho de coração, apenas. Seja lá o que tivesse naquele vídeo, era a única coisa tangível que sobrou do João. 

Chegaram cedo e, após se apresentarem na recepção, tomaram um chá de cadeira de mais de uma hora. A Mãe matou meio maço de San Marino na porta de pura ansiedade, até a hora que a chamaram pra entrar numa salinha. 

Na salinha havia três cadeiras daquelas de recepção de hospital que na verdade eram um único móvel, uma mesa com um computador e um rapaz pálido fardado sentado à espera. Eles se sentaram e o rapaz virou pra trás a tela do computador que exibia a filmagem do ônibus.

— Então, esse é o momento que você e o seu filho entram no veículo da linha 8350,  às 5:22 da tarde. 

A Mãe sentiu o coração apertar. Ali estava ela com sua blusa florida, a cesta na mão, e João do lado, bermuda azul, camisa vermelha. Ela viu o momento em que decidiu se sentar perto da janela porque já tinha entrado na frente do João, e com o peso da cesta, se ficasse em pé pra esperar ele passar, o balanço do ônibus a derrubaria fácil. Geralmente ela deixaria o João no canto pois tinha medo de algo acontecer se ele ficasse perto do corredor. Mas naquele dia fez vista grossa. Ao pensar nisso, seus olhos marejaram.

— Pois bem — continuou o rapaz —, aqui mais à frente, às 5:41, essa moça entra no ônibus e o seu filho parece conversar com ela. Você se lembra disso?

No vídeo uma moça de cabelos pretos entra segurando várias sacolas. João parecia se endireitar na cadeira como se tivesse visto algo interessante. Falou com ela por um minuto e desceu correndo do ônibus sem fazer nenhum barulho assim que a porta se abriu novamente. 

— E às 5:43 ele sai do veículo — disse o soldado. — Você não se lembra de nada?

“Como eu vou lembrar de alguma merda? Eu tava dormindo. Eu tava exausta”, pensou a mãe ao se ver completamente adormecida em cima da cesta básica na tela do computador enquanto o João saía do ônibus pra sumir no mundo.

— Não, senhor. Não me lembro de nada — disse ela.

— A senhora tem um sono muito pesado então, porque a moça até parece conversar com motorista sobre o menino aqui no vídeo, ela aponta pra ele enquanto ele sai. O motorista deve ter achado que ele tava dando pulão e deixou pra lá. A senhora tinha que ter olhado. 

— Eu sei que eu devia ter olhado — disse Mãe segurando o choro.

Depois de assistirem os vinte e poucos minutos de vídeo que continham alguma pista sobre o João, o policial deixou se repetindo na tela o momento em que João saía correndo do ônibus, e começou a conversar com a Mãe. Lhe deu outro sermão sobre o quão irresponsável ela era por não ter visto o menino sair. Disse que ela só não seria responsabilizada pelo desaparecimento dele porque as imagens mostram que foi apenas falta de atenção, um acidente. Sem aquelas imagens provando a inocência da Mãe, ela seria responsabilizada por abandono de incapaz, frisou o policial. A Mãe só conseguia focar a visão no João indo e voltando no vídeo. Queria enfiar a mão na tela e tirar ele de lá.

— Bom, mas e agora? O que a gente faz? — perguntou o Léo, que até agora estava mudo. 

— Agora nós vamos coletar imagens dele pra fazer o cartaz de divulgação da busca. A senhora trouxe?

A mãe acenou com a cabeça e pegou o celular. Tinha centenas de fotos do João guardadas no Google, mas é particularmente difícil de escolher qual é a foto que vai estar no cartaz de desaparecimento de um filho. Acabou escolhendo uma que havia tirado no quintal, o sol deixava a foto bem nítida, bem fácil de identificar o rosto dele.

Em 15 minutos a peça gráfica saiu da impressora. Seu menino brincando no quintal, o rosto focado, os olhos apertados pelo sol, um semi-sorriso brotando no canto da boca. A camisa interrompida pela moldura bem onde a estampa começa, uma faixa preta escrito DESAPARECIDO. 

Léo pediu pra mãe segurar o cartaz pra ele tirar uma foto pro Facebook. E ela o fez. Saiu na foto mais feia de sua vida, o olhar triste, o cabelo todo desgrenhado, olheiras, rugas. Mancha de café na blusa. E o cartaz do menino nas mãos.

Léo postou a foto no Facebook ainda na delegacia, marcando umas 100 pessoas. Na volta pra casa dirigiram com a caminhonete pelo itinerário do 8350 tentando achar uma pista. Não acharam nada.

Léo a deixou em casa e foi embora. Era novamente a Mãe e a casa, apenas, mais um dia. Umas cem pessoas já haviam compartilhado o post pela hora da janta. Gente da escola do João, professores, colegas, gente da igreja, amigos do Léo, estranhos. A mãe sentiu um meio alívio ao perceber que muita gente estava ajudando, mas sentiu o dobro de vergonha pois agora muita gente sabia que a culpa era dela. Pôs o celular pra tocar com volume máximo, tomou banho, foi dormir. 

Dormiu mal e sonhou com o João a noite inteira brincando no quintal, correndo atrás do cachorro. Era um sonho consciente e a Mãe sentia medo. Medo de acordar daquele sonho pra uma casa vazia, um monte de gente xingando e aquela culpa que cobria o teto, grossa feito a fumaça do cigarro. Ela não sabia que era possível chorar em sonhos até aquele dia.


Pieta Poeta – é professor, escritor, artista cênico e músico de Belo Horizonte, campeão mundial de poesia falada. Publicou 4 livros pela editora Venas Abiertas e 16 zines de produção independente.

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